Ricardo Antunes: “A ideia de eleição geral precisa vir acompanhada de fortes rebeliões sociais”


                                                                            
Gabriel Brito e Raphael Sanz

Já es­tamos no se­gundo mês de 2017 e o quadro de de­pressão geral con­tinua a do­minar todo o ce­nário bra­si­leiro. Com a eclosão da crise car­ce­rária e as mais de 100 mortes cau­sadas em di­fe­rentes mas­sa­cres, dentro de um pro­cesso de re­or­de­na­mento econô­mico que atinge até o crime or­ga­ni­zado, veem-se con­tornos de bar­bárie total. Di­ante de ta­manho de­sa­lento, en­tre­vis­tamos o so­ció­logo do tra­balho Ri­cardo An­tunes.

“Há um des­tro­ça­mento das re­la­ções de tra­balho as­sa­la­riado de tal modo que temos no Brasil hoje um de­sem­prego real maior que 12 mi­lhões de pes­soas. A si­tu­ação bra­si­leira é tão trá­gica que até na in­for­ma­li­dade está tendo de­sem­prego. A in­for­ma­li­dade tende a se ex­pandir nas crises, mas dada sua pro­fun­di­dade co­meça a re­tro­ceder, pois já es­tamos vendo di­mi­nuição do cha­mado ‘tra­balho autô­nomo’. 

Temos também uma massa de ter­cei­ri­zados que são bur­lados co­ti­di­a­na­mente por este sis­tema. O ‘em­pre­en­de­do­rismo’ é um mito atin­gido por muito poucos – a grande mai­oria só perde o pouco que con­se­guiu criar com seu FGTS – e tudo isso tende a se tornar ‘coisa do pas­sado’”, ana­lisou.

An­tunes prevê fortes ten­sões so­ciais no país, mo­ti­vadas por “ques­tões li­te­ral­mente vi­tais”, nas quais se in­cluem as re­formas do sis­tema pre­vi­den­ciário e da le­gis­lação tra­ba­lhista. Uma guerra de classes aberta, como de­finiu, que visa “des­truir tudo o que a classe tra­ba­lha­dora cons­truiu no sé­culo 20”. 

Afirma que o velho mo­delo pe­tista de con­ci­li­ação de classes está no “ce­mi­tério po­lí­tico” e aposta que uma nova es­querda deve ser rein­ven­tada to­mando como norte a de­fesa da vida, ou seja, das ques­tões vi­tais que elencou, e co­locar os em­bates ex­trains­ti­tu­ci­o­nais acima de todas as pri­o­ri­dades.

“Há uma certa ilusão ins­ti­tu­ci­onal par­la­mentar de es­querda no Brasil. Os par­tidos à es­querda do PT têm mos­trado di­fi­cul­dades em per­ceber que o eixo da luta so­cial e po­lí­tica é ex­tra­par­la­mentar. Não é an­ti­par­la­mentar, não se trata de negar o par­la­mento, mas de não de­pender dele e de fazer dele a pri­o­ri­dade da ação dos par­tidos de es­querda.

Estes pa­recem ter di­fi­cul­dades de per­ceber que não devem lutar no ringue do ca­pital. A ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade é um es­paço do ca­pital e não de­veria ser a nossa pri­o­ri­dade. A pri­o­ri­dade das es­querdas deve estar ca­na­li­zada para a luta ex­trains­ti­tu­ci­onal, a luta so­cial, para a luta po­lí­tica das mai­o­rias, fora do es­paço da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade onde tudo pa­rece mudar para nada efe­ti­va­mente se trans­formar”, ex­plicou o autor de Adeus ao Tra­balho. 

Apesar de tudo, aposta que o go­verno Temer, dada a sua “ile­gi­ti­mi­dade con­gê­nita, será de­vas­tado pela Lava Jato” e en­trará para a “lata de lixo da his­tória” como um go­verno ter­cei­ri­zado. Um dos mai­ores es­tu­di­osos con­tem­po­râ­neos do mundo do tra­balho, ele vê com oti­mismo um fu­turo es­go­ta­mento da cha­mada “ofen­siva con­ser­va­dora”. 

No en­tanto, não deixa de rei­terar que não há qual­quer pos­si­bi­li­dade de re­verter o pro­cesso de re­ti­rada de di­reitos sob a égide do lu­lo­pe­tismo, o qual já con­si­dera en­ter­rado no “ce­mi­tério po­lí­tico”.

“A cha­mada Nova Re­pú­blica acabou! E ela co­meçou com o Sarney. É tão gro­tesca essa nova re­pú­blica que co­meçou com um ve­lhaco que ex­pres­sava a velha re­pú­blica. Ima­gina se esse par­la­mento sem cre­di­bi­li­dade e le­gi­ti­mi­dade for in­dicar um pre­si­dente que vá su­ceder o Temer? As elei­ções ge­rais são um im­pe­ra­tivo so­cial e po­lí­tico ina­diável. E, de pre­fe­rência, que ocorram em pa­ra­lelo a um pro­cesso ex­trains­ti­tu­ci­onal de fortes re­be­liões po­pu­lares em todo o Brasil”, sin­te­tizou. 

A en­tre­vista com­pleta pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Que aná­lise você do mo­mento po­lí­tico bra­si­leiro, mar­cado por um 2016 que viu uma trinca, mesmo in­com­pleta, pra­ti­ca­mente iné­dita: queda da pre­si­dente da Re­pú­blica, do pre­si­dente da Câ­mara e do pre­si­dente do Se­nado – neste caso re­ver­tida no STF?

Ri­cardo An­tunes: 2016 é um ano que talvez não de­vesse ter exis­tido. Seu ce­nário é de­sas­troso no plano in­ter­na­ci­onal, bas­taria si­na­lizar a vi­tória do Trump nos Es­tados Unidos e uma ofen­siva muito forte da ex­trema-di­reita em es­cala mun­dial. Um pe­ríodo que nos per­mite lem­brar aquela con­cei­tu­a­li­zação do Flo­restan Fer­nandes de con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva, adi­ci­o­nando, ainda, sua am­pli­tude global.

Nos anos 2010 a 2013, com ma­ni­fes­ta­ções muito im­por­tantes no ce­nário mun­dial, vi­ven­ci­amos a era das re­be­liões. Co­meçou com a re­be­lião na Tu­nísia e chegou ao Oc­cupy Wall Street, as re­be­liões da ju­ven­tude na Es­panha, as ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares na Grécia, entre ou­tras. Essas re­voltas nos seus di­versos países tra­ziam um avanço na di­nâ­mica das lutas e mar­caram a cha­mada era das re­be­liões. A partir daí, do fim mar­cado por suas der­rotas, en­tramos em um pe­ríodo de con­trar­re­vo­lução aberta e cres­cente. 

Um mo­mento im­por­tante neste ce­nário de re­be­liões foram as ma­ni­fes­ta­ções no Brasil, de junho de 2013 até o final da Copa do Mundo de 2014. La­men­ta­vel­mente, as re­be­liões de junho não ti­veram des­do­bra­mentos po­lí­ticos ra­di­cais, mas ao con­trário; as di­reitas con­se­guiram de certo modo ca­na­lizar o des­con­ten­ta­mento de um setor con­ser­vador de classe média contra a tra­gédia que mar­cava aquele mo­mento do go­verno Dilma. 

Após as elei­ções de 2014, as me­didas to­madas pelo go­verno já no início de 2015, em es­pe­cial a di­reção do ajuste fiscal, se­laram este pe­ríodo que chegou ao te­ne­broso ano de 2016. Um ano em que um go­verno le­gal­mente eleito foi de­posto. In­de­pen­den­te­mente da aná­lise crí­tica que pos­samos fazer do go­verno Dilma (e minha aná­lise é muito crí­tica), não paira dú­vida de que ela so­freu um golpe de tipo par­la­mentar e ins­ti­tu­ci­onal e sua queda foi ar­qui­te­tada pelo pre­si­dente da Câ­mara – que só foi cas­sado de­pois, ou seja, só perdeu seu man­dato de­pois de ter co­man­dado com mão de ferro o pro­cesso de im­pe­a­ch­ment. 

No pre­sente mo­mento, vemos o agra­va­mento de uma crise pro­funda que teve, talvez, seu ponto cul­mi­nante no plano ins­ti­tu­ci­onal. No final de ano vimos o Se­nado en­trar em choque com o Poder Ju­di­ciário, en­quanto o go­verno Temer não con­se­guia fugir da sua crise de origem, um go­verno ver­da­dei­ra­mente ter­cei­ri­zado e for­mado pelo pior da oli­gar­quia bra­si­leira das úl­timas dé­cadas. Que foi im­posto para eli­minar de vez a po­lí­tica lu­lista da con­ci­li­ação. 

O re­sul­tado é a si­tu­ação atual do go­verno Temer, que na mesma pro­porção da sua ile­gi­ti­mi­dade e perda com­pleta de apoio – mais de 63% ma­ni­fes­taram em pes­quisas de opi­nião pú­blica a de­sa­pro­vação ao go­verno –, vem de­sen­ca­de­ando uma série de con­trar­re­formas, na eco­nomia e na le­gis­lação so­cial pro­te­tora do tra­balho, que nos apro­xima a uma re­gressão pro­funda, uma es­pécie de re­torno à es­cra­vidão do tra­balho no Brasil, ainda que uma es­cra­vidão mo­derna. 

Este pa­cote da re­forma tra­ba­lhista, por exemplo, junto com a pro­posta de des­tro­ça­mento da pre­vi­dência, acaba mos­trando que o go­verno tenta su­perar a crise da sua com­pleta falta de le­gi­ti­mi­dade na me­dida em que se agarra no colo das classes do­mi­nantes para fazer tudo o que essas classes não es­tavam con­se­guindo fazer na in­ten­si­dade que que­riam. Por isso o ca­rac­te­rizo como um go­verno ter­cei­ri­zado. Se os go­vernos Lula e Dilma fi­zeram muitas con­ces­sões às classes do­mi­nantes, o que agora está evi­dente, elas, em um con­texto de crise, querem ainda mais. Agora chegou a hora da de­vas­tação, em que todos os de­sejos desta classe devem ser aten­didos. 

E a hora da de­vas­tação impõe um go­verno ter­cei­ri­zado. Ter­cei­ri­zado para des­troçar tudo o que foi con­quis­tado nos úl­timos 60 ou 70 anos no campo das re­la­ções so­ciais de tra­balho, das leis tra­ba­lhistas, dos avanços sin­di­cais, e assim por di­ante; 2016 marcou o co­ro­a­mento deste pro­cesso. 

O trá­gico é que há uma crise econô­mica, so­cial, po­lí­tica e ins­ti­tu­ci­onal. E a si­mul­ta­nei­dade desses quatro ele­mentos crí­ticos acaba fa­zendo com que um ele­mento re­tro­a­li­mente o outro, e sua con­sequência mais brutal é uma massa imensa de tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras de­sem­pre­gados. O IBGE fala em 12 mi­lhões, 11,8% da Po­pu­lação Eco­no­mi­ca­mente Ativa, mas esses, sa­bemos, são dados in­fe­ri­ores aos dados reais. Se olharmos para o de­sem­prego por de­sa­lento dá mais de 5%, se olharmos ainda o su­bem­prego temos mais uma outra par­cela imensa. 

Em uma volta hoje pelo centro de São Paulo, pelo Rio de Ja­neiro, Porto Alegre e pelas grandes ca­pi­tais do Nor­deste, é pos­sível vermos ima­gens que as­se­me­lham o Brasil à Índia. Ten­demos para um ar­rui­na­mento so­cial de pro­funda di­mensão se não houver um pro­cesso de re­volta e re­be­lião po­pular. No Brasil tudo é tardio e acen­tuado. 

Aqui a farsa, a tra­gédia e a co­média se mis­turam, e o re­sul­tado desta trí­pode ne­fasta é jo­gado pra cima da classe tra­ba­lha­dora. A única classe que não é res­pon­sável pela crise é aquela que deve pagar em sua to­ta­li­dade pelo ônus da crise. En­quanto isso uma junta fi­nan­ceira he­gemô­nica que agrega grandes se­tores do ca­pital, sob he­ge­monia das fi­nanças, en­feixa, co­manda e im­pul­siona essa ver­da­deira con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva, que para o mundo do tra­balho re­pre­senta um quadro de de­vas­tação total. 

É o quadro em que nós nos vemos na vi­rada de 2016 para 2017. Por isso que ini­ciei di­zendo que 2016 era o ano que não de­veria ter exis­tido.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como avalia todas as ten­ta­tivas de re­or­ga­ni­zação da eco­nomia bra­si­leira em­pre­en­didas, em es­pe­cial a partir da en­trada em cena de Hen­rique Mei­relles? 
                                                              
Ri­cardo An­tunes: Há um ajuste fiscal de­vas­tador que po­deria se re­sumir em al­guns pontos. Pri­meiro: o su­pe­rávit pri­mário tem de ser pre­ser­vado a qual­quer custo para ga­rantir os juros da dí­vida pú­blica, mesmo que sub­meta o país a cha­furdar no vo­lume morto do pân­tano, onde es­tamos hoje, en­quanto os bancos con­ti­nuam ga­nhando muito di­nheiro.

Se­gundo ponto: há uma queima pro­funda da ati­vi­dade pro­du­tiva, para haver, em um se­gundo mo­mento, uma con­cen­tração maior de ca­pi­tais da­queles se­tores ca­pi­ta­listas que vão in­cor­porar ou­tros mais fra­gi­li­zados, au­men­tando um pro­cesso de con­cen­tração de renda em um ce­nário de di­visão in­ter­na­ci­onal do tra­balho em que o Brasil apre­senta traços de re­gressão “ne­o­co­lo­nial”. 

Digo isto de forma me­ta­fó­rica, mas o país que Lula e Dilma acre­di­tavam como o país do mi­lagre, do agro­ne­gócio, das com­mo­di­ties etc., a ima­ginar que ca­mi­nhá­vamos para o pa­raíso, co­lapsou. O que temos hoje é uma si­tu­ação de re­gressão pe­ri­fé­rica e com um go­verno como este do Temer, em que os li­mites mí­nimos de ex­plo­ração do tra­balho – e é disto que se trata – estão sendo im­postos cru­el­mente. Aden­tramos, por­tanto, numa era de ex­plo­ração e su­pe­rex­plo­ração ili­mi­tada da classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira. 

Já citei al­gumas vezes em ar­tigos e en­tre­vistas que quando co­nheci a Índia, em 2014, o pri­meiro-mi­nistro in­diano dizia o se­guinte: “a China ce­le­brizou-se pelo made in China; tudo o que se compra no mundo hoje é pro­du­zido na China; a Índia deve ce­le­brizar-se pelo make in India, pro­duza na Índia”. Qual é o “dis­creto charme da bur­guesia in­diana”, para fazer um pa­ra­lelo com o Buñuel, bri­lhante ci­ne­asta es­pa­nhol? O dis­creto charme da bur­guesia in­diana é que a classe tra­ba­lha­dora tem um nível de ex­plo­ração e su­pe­rex­plo­ração do tra­balho muito além de todos os li­mites. 

O Brasil da era Temer é, no­va­mente, a Be­líndia: uma bur­guesia com pa­drão belga e uma classe tra­ba­lha­dora que ca­minha de modo cé­lere para o ce­nário in­diano. Um lugar onde a massa mar­gi­na­li­zada, pre­ca­ri­zada e in­formal é com­pleta. Mas é im­por­tante dizer também que há poucos meses a Índia teve uma greve com 180 mi­lhões de tra­ba­lha­dores en­vol­vidos. E assim como a China (e o Brasil), é um país imenso e con­ti­nental. Há re­sis­tência. 

Cor­reio da Ci­da­dania: O que falar deste quadro para o campo do tra­balho, con­si­de­rando esse “li­berou geral” que se tenta em­placar?

Ri­cardo An­tunes: É im­pe­rioso que a luta de con­fron­tação so­cial ao go­verno Temer ganhe mais vi­ta­li­dade agora, já que neste mo­mento esta luta não gira mais em torno de evitar ou re­verter o im­pe­a­ch­ment, mas com­bater o go­verno Temer porque ele está des­truindo ques­tões vi­tais da classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira no pouco que ela con­se­guiu con­quistar nos úl­timos 60 ou 70 anos. Esse é o ta­manho da tra­gédia em que es­tamos en­vol­vidos. 

E no plano da eco­nomia, a pro­posta fun­da­mental é: pri­va­tizar tudo o que não foi pri­va­ti­zado, fi­nan­cei­rizar tudo que se puder e impor a cor­rosão do tra­balho em todos os ní­veis, plano e di­men­sões. E são todas im­po­si­ções da classe do­mi­nante sob he­ge­monia do mundo fi­nan­ceiro. O mundo fi­nan­ceiro não pode pres­cindir do mundo do tra­balho. Não existe só ca­pital fic­tício. O mundo fi­nan­ceiro é o ca­pital fic­tício, mas não só isso. É também – e de­ci­si­va­mente - o ca­pital da fi­nança co­man­dando a ló­gica da pro­dução e da to­ta­li­dade do mundo ne­go­cial. 

Dou um exemplo ele­mentar: quando o tra­ba­lhador(a) vai com­prar nas Casas Bahia, a loja pre­fere vender não à vista, mas a pres­tação, porque aí ela sur­rupia du­pla­mente o sa­lário dos tra­ba­lha­dores: no preço do pro­duto que já traz em­bu­tido seu lucro e também no quanto o com­prador e sua fa­mília vão pagar de juros em­bu­tidos na me­dida em que o pro­duto é pago à pres­tação.

Isso exem­pli­fica de modo cabal o que é o co­mando fi­nan­ceiro no mundo pro­du­tivo. O uso es­ti­mu­lado e com­pul­sivo do cartão de cré­dito, ou seja, do di­nheiro sim­bó­lico, faz com que hoje um con­tin­gente enorme da classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira es­teja en­di­vi­dada. 

E aqui temos um se­gundo ele­mento cen­tral da con­jun­tura atual: impor um pro­grama que não tem le­gi­ti­mi­dade das urnas, mas é um em­buste, um ver­da­deiro es­te­li­o­nato par­la­mentar e mi­diá­tico. Por isso es­tamos pre­sen­ci­ando o se­gundo golpe do go­verno Temer. Uma es­pécie de 18 Bru­mário do pe­queno e ar­di­loso Mi­chel!

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais as ex­pec­ta­tivas para 2017, tanto na eco­nomia como no mundo do tra­balho e em­prego, em meio a uma nova onda de bar­bárie nos pre­sí­dios?
                                                                     
Ri­cardo An­tunes: A pri­meira coisa im­por­tante é que o go­verno Temer, dada a sua ile­gi­ti­mi­dade con­gê­nita, vai ser de­vas­tado pela Lava Jato. É muito di­fícil, a esta al­tura, que a Lava Jato seja trun­cada. Com de­la­ções que chegam ao nú­cleo atual do Pa­lácio do Pla­nalto. E não são apenas os mi­nis­tros di­retos que con­duzem po­li­ti­ca­mente o go­verno Temer estão en­vol­vidos, não só o alto co­mando da Câ­mara, do Se­nado e uma massa imensa de par­la­men­tares que se en­contra en­vol­vida, mas o pró­prio Temer – esta fi­gura tíbia – apa­rece em vá­rias de­la­ções. 

Ele di­rigiu o PMDB du­rante um longo pe­ríodo, in­clu­sive quando es­tava na vice-pre­si­dência. E na­tu­ral­mente a Lava Jato chegou ao PMDB do Rio de Ja­neiro com o ex-go­ver­nador Ca­bral preso, ao PMDB de Ala­goas com o Ca­lheiros; todo o PMDB – este Par­tido do Pân­tano Bra­si­leiro – está com­pro­me­tido. E, por certo, Temer está di­reta e in­di­re­ta­mente en­vol­vido, se­gundo o que a im­prensa diz. 

Temos, assim, na re­a­li­dade da crise bra­si­leira um pro­cesso dú­plice: há ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica e po­li­ti­zação do ju­di­ciário, que se ex­pressa, por exemplo, nesta es­tranha “in­ca­pa­ci­dade” de o ju­di­ciário chegar até o PSDB. Quem é o Santo? O co­di­nome é atri­buído na im­prensa es­crita e fa­lada ao go­ver­nador de São Paulo. Onde estão as tantas de­nún­cias contra Aécio Neves? Onde estão os sutis ma­la­ba­rismos feitos por FHC, desde o amplo pro­cesso de pri­va­ti­zação em seu go­verno até o pa­ga­mento no ex­te­rior de em­presas que de­ti­nham os con­troles dos free shops de ae­ro­portos du­rante seu go­verno. Tudo isso ainda não chegou pra valer no PSDB.

Se o Temer mostra essa fra­gi­li­dade – pois o se­gundo par­tido a ser de­vas­tado pela Lava Jato é o PMDB – isso atinge a me­dula do go­verno. E abre um 2017 muito in­certo, ou seja, é di­fícil ima­ginar que esse go­verno so­bre­viva até 2018. Ele mesmo disse que nunca pensou na re­núncia. Mas se disse é porque está pen­sando na re­núncia. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Como avalia os erros do go­verno Dilma e a atu­ação dos pro­ta­go­nistas pa­la­ci­anos em sua queda? Como essa cor­re­lação de forças pode afetar o go­verno Temer?

Ri­cardo An­tunes: Fui crí­tico duro do go­verno Dilma, pois na minha opi­nião foi um go­verno in­de­fen­sável. Mas a forma como o caiu, também na minha opi­nião, foi um golpe. Ou seja, não me en­caixo na tese de que quem acre­dita que houve golpe é pe­tista. Vejo duas coisas di­fe­rentes. Quando se depõe um pre­si­dente da Re­pú­blica for­jando um pro­cesso com apa­rência de le­ga­li­dade, mas ines­cru­pu­loso em sua es­sência, não pode ser algo po­si­tivo para o país. Ainda que o go­verno do PT, em seu con­junto, tenha sido uma der­rota para a classe tra­ba­lha­dora, pois acre­ditou na con­ci­li­ação entre entes so­ciais e po­lí­ticos in­con­ci­liá­veis. 

Como pode o Edu­ardo Cunha, afun­dado no pân­tano até o pes­coço, ter le­gi­ti­mi­dade res­pal­dada pelo STF para co­mandar um pro­cesso de im­pe­a­ch­ment e logo de­pois ter sido posto fora pelo mesmo tri­bunal? O fato de ele ter sido posto fora mostra que o pró­prio pro­cesso de im­pe­a­ch­ment teria que ser re­visto, can­ce­lado e re­feito. Po­lí­tica, ju­rí­dica e eti­ca­mente fa­lando, está com­pro­me­tido. Em ou­tras pa­la­vras, se há sus­peita de que tem um “ban­dido” to­mando de­ci­sões de­fi­ni­tivas e fun­da­men­tais, com­pro­vada a ban­di­dagem, todas essas me­didas devem ser re­vistas. 

Soma-se a isso um par­la­mento sem a menor le­gi­ti­mi­dade para es­co­lher, e há uma pos­si­bi­li­dade do Temer cair ou re­nun­ciar em breve. O pró­prio STF já devia ter ava­liado. Afinal, já que as contas da cam­panha estão com­pro­me­tidas, o Temer era a cauda do go­verno Dilma. Por aí vemos a po­li­ti­zação do ju­di­ciário. 

Há um pro­cesso com­plexo e apa­ren­te­mente con­tra­di­tório no Brasil: há uma ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica em que tudo que é de­cisão po­lí­tica tem de passar pelo ju­di­ciário; e há também uma po­li­ti­zação do ju­di­ciário. O ju­di­ciário tem se ar­vo­rado em de­se­nhar le­gal­mente o país e esta não é sua função. Já ima­ginou se o país for de­se­nhado se­gundo as re­fe­rên­cias que existem na ca­beça do ju­di­ciário? Es­tamos ani­qui­lados. Seria um or­ni­tor­rinco: braço de um, ca­beça de outro, perna de um ter­ceiro... 

Cor­reio da Ci­da­dania: Como ima­gina que este go­verno fi­cará na his­tória?
                                                                 
Ri­cardo An­tunes: O go­verno de Mi­chel Temer está se­lado, é questão de tempo, mas seu fu­turo é estar na lata de lixo da his­tória. Isso pode durar mais tempo do que muitos de nós gos­ta­ríamos. Ele não se aper­cebeu ple­na­mente, mas olhando ao redor vê o rabo de todo mundo quei­mado pela Lava Jato. E não adi­anta fazer o que os ca­pi­tais exigem, para açulá-los, porque os ca­pi­tais são des­tru­tivos. Feito o “jogo sujo”, des­tro­çados os di­reitos so­ciais e do tra­balho, pri­va­ti­zado o que ainda resta, o go­verno ter­cei­ri­zado de Temer será ali­jado, como Cunha foi ontem, o PT an­te­ontem e Renan Ca­lheiros será amanhã. 

Con­tra­tado para fazer o jogo mais vil, que é des­montar tudo o que a classe tra­ba­lha­dora criou no sé­culo 20, é im­pre­vi­sível a forma como ele vai sair, apenas sa­bemos que ele é sério can­di­dato à lata de lixo da his­tória. 

Porém, é sempre bom lem­brar: o Temer é uma cri­ação do lu­lismo, é um tíbio que não tinha ne­nhuma in­fluência na­ci­onal e foi la­çado pelo Lula para ser o vice da Dilma. Mais uma das tra­gé­dias do lu­lismo e sua po­lí­tica de con­ci­li­ação de classes, do ad­mi­rável mundo novo em que ca­pital, tra­balho, di­reita, es­querda, centro es­ta­riam todos ir­ma­nados, em um pro­jeto ma­ra­vi­lhoso em que o Brasil che­garia a ser a quarta eco­nomia mun­dial. A po­lí­tica de con­ci­li­ação de classes fi­nal­mente en­con­trou seu ce­mi­tério po­lí­tico. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais saídas po­de­riam ser ten­tadas, para além da ra­di­ca­li­zação das po­lí­ticas ne­o­li­be­rais? Que de­sa­fios estão co­lo­cados?

Ri­cardo An­tunes: Se pe­garmos a Re­forma da Pre­vi­dência, pre­cisa ter 65 anos de idade e 49 anos inin­ter­ruptos de pre­vi­dência. Por­tanto, você tem de co­meçar a tra­ba­lhar com 16 anos e não pode ficar um dia de­sem­pre­gado para se apo­sentar com 65. Mas como o co­ti­diano hoje é o do de­sem­prego, po­demos dizer que não ha­verá mais o sis­tema de pre­vi­dência pú­blica no Brasil. Aqueles que con­se­guirem irão buscar uma pre­vi­dência pri­vada e os po­bres estão ani­qui­lados. Tem ci­dades no país que a idade média de vida está em torno de 66 anos. E como se não bas­tasse, o go­verno Temer está des­lan­chando a des­truição bom­bás­tica da le­gis­lação tra­ba­lhista, ao am­pliar o prazo de tempo de con­trato tem­po­rário que po­derá passar de três para seis meses ou mais. 

Há um des­tro­ça­mento das re­la­ções de tra­balho as­sa­la­riado de tal modo que temos no Brasil hoje um de­sem­prego real maior que 12 mi­lhões de pes­soas. A si­tu­ação bra­si­leira é tão trá­gica que até na in­for­ma­li­dade está tendo de­sem­prego. A in­for­ma­li­dade tende a se ex­pandir nas crises, mas dada sua pro­fun­di­dade co­meça a re­tro­ceder, pois já es­tamos vendo di­mi­nuição do cha­mado “tra­balho autô­nomo”. Temos também uma massa de ter­cei­ri­zados que são bur­lados co­ti­di­a­na­mente por este sis­tema. O “em­pre­en­de­do­rismo” é um mito atin­gido por muito poucos – a grande mai­oria só perde o pouco que con­se­guiu criar com seu FGTS – e tudo isso tende a se tornar “coisa do pas­sado”. Quer dizer, no pas­sado re­cente a in­for­ma­li­dade crescia no pe­ríodo de de­sem­prego, exa­ta­mente para dri­blar esta con­dição. Agora ela também está so­frendo uma re­tração; há, pasmem, au­mento do de­sem­prego até na in­for­ma­li­dade!

No campo das lutas so­ciais, sin­di­cais e po­lí­ticas de es­querda não são poucos os de­sa­fios. Há desde logo um pro­blema quase con­gê­nito, que é a di­fi­cul­dade que os mo­vi­mentos so­ciais, os par­tidos de es­querda e os sin­di­catos têm. Pri­meiro, em ter uma po­sição mais uni­tária na­quilo que é fun­da­mental. Se­gundo: há uma certa ilusão ins­ti­tu­ci­onal e par­la­mentar de es­querda no Brasil. 

Mesmo agru­pa­mentos e par­tidos à es­querda do PT não con­se­guem ca­li­brar a ação sem ter a eleição e o par­la­mento como pri­o­ri­dade. A po­pu­lação está exau­rida e faz uma aná­lise muito crí­tica da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade. Por exemplo, que ins­ti­tuição bra­si­leira se salva hoje? Par­la­mento? Nota zero! Exe­cu­tivo? Nota zero! Ju­di­ciário? Zero! Por­tanto, a coisa está com­pli­cada. 

Os par­tidos à es­querda do PT têm mos­trado di­fi­cul­dades em per­ceber que o eixo da luta so­cial e po­lí­tica é ex­tra­par­la­mentar. Não é an­ti­par­la­mentar, não se trata de negar o par­la­mento, mas de não de­pender dele e de fazer dele a pri­o­ri­dade da ação dos par­tidos de es­querda. Estes pa­recem ter di­fi­cul­dades de per­ceber que não devem lutar no ringue do ca­pital. A ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade é um es­paço do ca­pital e não de­veria ser a nossa pri­o­ri­dade. A pri­o­ri­dade das es­querdas deve estar ca­na­li­zada para a luta ex­trains­ti­tu­ci­onal, a luta so­cial, para a luta po­lí­tica das mai­o­rias, fora do es­paço da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade onde tudo pa­rece mudar para nada efe­ti­va­mente se trans­formar. 

Por exemplo, mo­vi­mentos so­ciais como o MST, o MTST e o Mo­vi­mento Passe Livre si­na­lizam que existe uma re­be­lião das pe­ri­fe­rias, da po­pu­lação rural em­po­bre­cida e ex­plo­rada, no dia a dia da vida co­ti­diana. Uma re­be­lião da classe tra­ba­lha­dora pre­ca­ri­zada, da ju­ven­tude que tra­balha e acre­ditou num mito de que tinha de es­tudar e tra­ba­lhar para ter bons em­pregos e, assim, es­tudou em es­colas pri­vadas des­pro­vidas do mí­nimo, que na ver­dade são mer­cados de en­sino. Hoje essa ju­ven­tude não tem em­prego e está en­di­vi­dada, pa­gando as fa­cul­dades pri­vadas. Ou seja, não so­brou nada do pro­jeto. Não tem em­prego en­quanto se ima­gi­nava que tra­ba­lhando e se qua­li­fi­cando te­riam em­pregos me­lhores. E agora, como se faz e se re­de­senha este ce­nário? 

E quais são as saídas? Essas me­didas que o go­verno está to­mando tocam em ques­tões vi­tais. Jor­nada diária de 12 horas é uma bru­ta­li­dade. Nossa pes­quisa apre­sen­tada nos vo­lumes de Ri­queza e Mi­séria do Tra­balho no Brasil mostra que existem tra­ba­lha­dores(as) do etanol e da cana de açúcar que não ga­nham mais por jor­nada de 8 horas, mas por pro­dução. Com isto, re­duzem o tempo de ali­men­tação para o mí­nimo. Muitos desses tra­ba­lha­dores que vêm de ou­tras re­giões do país e mi­gram sem suas fa­mí­lias também tra­ba­lham nos seus dias de folga para po­derem pegar um pouco mais de grana. Com uma dé­cada de tra­balho nesse ritmo, eles estão des­tro­çados. Eles não vão poder se apo­sentar, pois morrem. 

Estas ques­tões li­te­ral­mente vi­tais, como pre­vi­dência, jor­nada diária de tra­balho, des­canso se­manal, fé­rias e assim por di­ante tocam o co­ti­diano da classe tra­ba­lha­dora. Não é por acaso que o go­verno Temer já tem ín­dices de im­po­pu­la­ri­dade mai­ores do que a Dilma quando so­freu o im­pe­a­ch­ment. A po­pu­lação per­cebe que esse go­verno é, por­tanto, ainda mais ne­fasto. 

Qual é o de­safio maior? Temos sin­di­catos, temos mo­vi­mentos so­ciais e par­tidos. Temos ques­tões vi­tais. Além disso, a ação de con­fron­tação não pode ser dentro dos marcos da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade. Este é um jogo per­dido. Só é pos­sível ter re­pre­sen­tação par­la­mentar se houver uma base so­cial que ga­ranta tal re­pre­sen­tação. Não adi­anta ter uma ban­cada nu­me­rosa no par­la­mento sem força so­cial real, de base e pela base. 

O par­la­mento é uma má­quina po­de­rosa e só con­segue re­sistir lá dentro quem tem muito vín­culo com as lutas so­ciais. É por isso que lá está cheio de ex-lu­ta­dores so­ciais. É ver­dade que há gente boa e lu­ta­dora, mas são ex­ceção. Tem muito ex-lu­tador so­cial que aprende “a boa vida par­la­mentar”. É pre­ciso criar uma nova ge­ração de lu­ta­dores so­ciais nos mo­vi­mentos, na pe­ri­feria, nos sin­di­catos e nos par­tidos. Essa nova ge­ração pre­cisa estar nas ruas.

Cor­reio da Ci­da­dania: E como as or­ga­ni­za­ções da so­ci­e­dade e dos tra­ba­lha­dores devem lidar com essas ques­tões vi­tais que estão em jogo em um mo­mento com­ple­ta­mente ad­verso? 
                                                         
Ri­cardo An­tunes: Es­tamos numa onda de con­tra­o­fen­siva bur­guesa muito po­de­rosa. Mas não eterna. É uma con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva, para dar con­ti­nui­dade a uma ter­ceira fase do longo pro­cesso ne­o­li­beral. Co­meçou com o ne­o­li­be­ra­lismo de FHC nos anos 90, so­freu a va­ri­ante al­ter­na­tiva do so­cial-li­be­ra­lismo de Lula e Dilma, e agora pas­sará pela me­ga­de­vas­tação ul­tra­ne­o­li­beral. Mas isso tem fô­lego curto. 

A po­pu­lação per­cebeu o golpe dado na Dilma, mas ao mesmo tempo olhava e se per­gun­tava: “mas por que a Dilma ga­nhou a eleição em 2014 di­zendo que não iria des­troçar nossos di­reitos e assim que foi eleita reviu o se­guro-de­sem­prego e tudo aquilo que pro­meteu ga­rantir?” E ainda, na sequência, co­locou o Levy lá para con­trolar o “botim anô­malo”, ou seja, o sis­tema da dí­vida pú­blica que ga­rante a he­ge­monia do sis­tema fi­nan­ceiro que dita a po­lí­tica dos go­vernos? 

Vamos re­tomar uma era de muitas re­be­liões so­ciais – e sem hi­e­rar­quias. Não tem mais hi­e­rar­quia. Aca­baram as li­de­ranças ins­ti­tuídas pela ordem. Acabou aquela coisa da li­de­rança “eterna”. Ela pre­cisa ser rein­ven­tada. A luta so­cial, sin­dical e po­lí­tica na pro­funda im­bri­cação entre si pre­cisa se rein­ventar, for­ta­le­cendo suas ten­dên­cias pela base, fora dos marcos da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade do­mi­nante. 

E há um es­paço real. A cha­mada Nova Re­pú­blica acabou! E ela co­meçou com o Sarney. É tão gro­tesca que co­meçou como uma Velha Re­pú­blica. Ima­gina se esse par­la­mento for in­dicar um pre­si­dente que vá su­ceder o Temer? As elei­ções ge­rais tornam-se um im­pe­ra­tivo so­cial e po­lí­tico ina­diável. 

Se o Temer cai, não é pos­sível aceitar que esse par­la­mento que já perdeu – para lem­brar o Marx quando fa­lava do par­la­mento francês – o mí­nimo de cre­di­bi­li­dade que ainda tinha junto à opi­nião pú­blica. Perdeu toda a cre­di­bi­li­dade, já está no vo­lume morto, no fundo do pân­tano. Ou seja, não é pos­sível que es­co­lham um “Temer 2” caso o Temer perca o man­dato. É vital que, neste caso, te­nhamos novas elei­ções ge­rais e, de pre­fe­rência, que elas ocorram em pa­ra­lelo a um pro­cesso de fortes re­be­liões po­pu­lares em todo o Brasil. 

Por sua vez, a classe do­mi­nante acha que já ga­nhou o jogo porque o par­la­mento está no seu colo! To­tal­mente a seu favor. Também é di­fícil para a po­pu­lação pobre en­tender o que está acon­te­cendo no par­la­mento, porque a mídia diz que a Re­forma da Pre­vi­dência e a Tra­ba­lhista são boas. Ne­nhum órgão da grande mídia mostra quanto do pro­duto in­terno bruto bra­si­leiro é des­ti­nado para pagar os juros da dí­vida pú­blica. Isto é in­to­cável. E isso é a ex­pressão viva do he­ge­mo­nismo po­lí­tico, ide­o­ló­gico e va­lo­ra­tivo do mundo fi­nan­ceiro.

Não mos­tram que a san­gria nossa é para pagar os juros da dí­vida pú­blica. No pas­sado eram os juros da dí­vida ex­terna, agora são os juros altos da dí­vida in­terna. É claro que es­tamos num pe­ríodo di­fícil e de con­trar­re­vo­lução, mas este ce­nário não é eterno, não tem vida longa. Tudo hoje é mais vo­látil do que ontem. O que pa­rece só­lido também der­rete. O go­verno não tem le­gi­ti­mi­dade, um outro go­verno eleito pela via in­di­reta também não terá le­gi­ti­mi­dade e nós vamos en­trar em 2018 no meio da tur­bu­lência. 2017 e 2018 apre­sen­tarão um quadro con­ti­nuado de ter­re­moto, ma­re­moto, tsu­nami e fu­racão, um atrás do outro, econô­mico, so­cial e po­lí­tico.

Cor­reio da Ci­da­dania: É pos­sível haver em 2017 um clima de “di­retas já”, com uma forte onda po­pular no sen­tido de se pro­mo­verem novas elei­ções?

Ri­cardo An­tunes: Eu não sei é pos­sível esse clima de di­retas já. Temos hoje uma coisa que não tí­nhamos na época: as di­reitas rai­vosas e or­ga­ni­zadas. A pos­si­bi­li­dade de um mo­vi­mento amplo e uni­tário – como o das Di­retas Já – talvez seja di­fícil, pois te­remos mais con­fron­tação so­cial aberta entre as classes e seus an­ta­go­nismos. 

Isso porque aden­tramos numa era de luta de classes aberta e a única cer­teza que temos é que o tempo lu­lista de con­ci­li­ação acabou. Está no ce­mi­tério po­lí­tico. Agora, como Flo­restan fa­lava, é a era da con­trar­re­vo­lução. Essa é a en­ge­nharia po­lí­tica da nossa classe do­mi­nante. Vamos en­trar em 2017 com esse ce­nário de con­fron­tação acir­rada. As lutas so­ciais, os mo­vi­mentos, par­tidos e sin­di­catos de es­querda (que não foram par­tí­cipes da po­lí­tica de con­ci­li­ação de classes) têm de re­tomar a luta e ação pelas ques­tões vi­tais. 

E quais são elas? Desde logo, uma luta in­ces­sante pelo di­reito ao tra­balho, pelo sa­lário digno, pela pre­ser­vação de todos os di­reitos do tra­balho. Por um tra­balho com um mí­nimo de dig­ni­dade e não de des­truição. 

É ou não uma questão vital hoje a luta contra a des­truição da na­tu­reza? Quando houve, há um ano, a tra­gédia da Sa­marco em Ma­riana-MG, es­tava sendo vo­tada no par­la­mento uma fle­xi­bi­li­zação ainda maior do có­digo am­bi­ental, que con­trola a ati­vi­dade das mi­ne­ra­doras. Este é outro ponto ab­so­lu­ta­mente vital. 

Outra questão vital: há um mo­vi­mento hoje da bur­guesia rural, do agro­ne­gócio e de seu go­verno ter­cei­ri­zado e de seu par­la­mento de­gra­dado para acabar com as terras in­dí­genas, pelas co­mu­ni­dades in­dí­genas. E é por isso que existe uma luta muito im­por­tante das co­mu­ni­dades in­dí­genas pela pre­ser­vação de suas re­servas.

E mais: nós es­tamos hoje num mo­mento em que a xe­no­fobia, o se­xismo e a ho­mo­fobia estão res­sur­gindo for­te­mente. É pre­ciso res­gatar uma luta pela igual­dade subs­tan­tiva em todas as di­men­sões efe­ti­va­mente hu­manas, de gê­nero, de etnia e raça. Ainda temos que dis­cutir as formas de pro­pri­e­dade. A pro­pri­e­dade in­te­lec­tual não pode estar à mercê das grandes cor­po­ra­ções. Não é pos­sível que uma grande cor­po­ração venha aqui e se torne dona das pro­pri­e­dades in­te­lec­tuais in­dí­genas, como muitas vezes ocorre. 

Temos aí quatro ou cinco pontos vi­tais. Por que o MTST é forte? Porque luta por mo­radia, uma questão vital. O tra­ba­lhador(a) sabe que, sem um teto, a con­dição de vida piora muito, como es­tamos vendo aos mi­lhares nas ruas de São Paulo. O mesmo do MPL em re­lação ao trans­porte, outra questão vital e cada ano mais cara e de di­fícil acesso. O MST faz o mesmo quando luta pela terra, pelo fim dos trans­gê­nicos etc. etc. etc. 

Em termos de re­sis­tência, a es­querda que foi he­gemô­nica e es­tava até o ano pas­sado no poder não tem mais ne­nhuma “au­to­ri­dade po­lí­tica” para dizer que ainda é a es­querda do­mi­nante. Acabou. Tudo tem que ser re­cons­ti­tuído a partir de um ca­minho fora do re­lógio e do pon­teiro da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade. É o pon­teiro da ex­trains­ti­tu­ci­o­na­li­dade que deve dizer para onde nós vamos.


(*)  Ga­briel Brito e Raphael Sanz são jor­na­listas do Cor­reio da Ci­da­dania

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(Com o Correio da Cidadania)

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