Argentina: Títulos de dívida pública a 100 anos

                                                           

 Julio C. Gambina (*)     

Na Argentina o governo Macri procura desenvolver o seu caminho de retrocesso num quadro social e político complexo marcado pela perspectiva de eleições parlamentares. Enquanto as forças da burguesia disputam entre si – em ambiente de crise - quem estará em melhores condições de tornar governável o capitalismo no país, a incerta alternativa popular dificilmente encontrará a curto ou médio prazo condições para enfrentar as dificuldades que aí vêm.

O governo de Macri colocou 2.750 milhões de dólares em títulos de dívida pública com vencimento em 2117, o que mostra a decisão de resolver os problemas económicos com recurso ao endividamento público e implica uma hipoteca sobre o conjunto da sociedade.

A taxa de juro é de 7,9%, e pode variar para cima ou para baixo de acordo com a sua evolução no tempo. A valores atuais o pagamento actual de juros atinge um montante de 200 milhões de dólares, com o que em 14 anos se terá pago o equivalente ao capital do título pelo que, nos restantes 86 anos o país continuará a pagar aquela quantia e na altura do vencimento será pago o capital.

Trata-se de um negócio chorudo para os investidores que poderão aguentar o vencimento cobrando os juros ou negociar os títulos no mercado secundário do casino do mercado especulativo mundial. Além disso, os bancos transnacionais que colocaram os títulos receberam uma comissão de um pouco mais de 3 milhões de dólares.

Deve ficar claro que aqueles 200 milhões de dólares deverão figurar no orçamento de despesas de cada ano e, consequentemente, eles devem ser sair de uma outra qualquer rubrica que imaginemos, como a educação, a segurança, o emprego, a segurança social, etc.. Ganham os credores e especuladores e perde o povo argentino.

Entre os argumentos do governo estava a passagem de uma classificação de país na fronteira a emergente, o que implica melhores taxas de juro nos empréstimos internacionais e um maior acesso ao crédito externo. No entanto, as consultoras não favoreceram a alteração daquela qualificação, adiando mais um ano para alterar a definição e, com isso, pressionam o governo para uma maior radicalidade no ajuste.

Os capitais globais pretendem melhores condições para os seus investimentos de risco ou especulativos e exigem que se avance com um choque de ajuste, acelerando o que denominam como um ajuste gradual. Dizem gradual, mas os despedidos de Atucha [1] e muitos outros constatam uma persistência no ajuste que se tornou política normal do governo de Macri.

Acontece o mesmo com a recusa de negociar paritariamente com os trabalhadores judiciais ou regateio com os docentes das Universidades Públicas, que avançam com medidas de força para não iniciar as aulas no segundo quadrimestre do presente ano. O conflito docente, dos trabalhadores judiciais e dos trabalhadores da Função Pública em geral mostram as dificuldades para concretizar o ajuste, independentemente da gradualidade ou do choque. O problema está associado à força dos sindicatos junto destes trabalhadores.

O endividamento e o crescimento do conflito social apresentam-se no quadro da dinâmica eleitoral para a renovação parlamentar e o que se joga na política tem dois âmbitos de confronto.

Um é de carácter institucional e verifica-se no confronto entre o governo e a oposição, com duvidosas possibilidades de polarização. O governo aponta para não perder peso parlamentar para cumprir o mandato até 2019 e se puder avançar com o choque no ajustamento.

O outro está na capacidade de mobilização e de organização popular para além dos partidos e da disputa eleitoral, principalmente a crise de alternativa política que deixa uma faixa importante da sociedade sem representação política elegível.

A crise é em cima e dá-se entre quem pode tornar governável o capitalismo na Argentina. Quem assegura a estabilidade política e o consenso para fazer chegar o investimento externo? É a discussão entre a ortodoxia discursiva do governo e a sua proclamação contra os direitos sociais e sindicais e a ortodoxia discursiva do kirchnerismo (particularmente na Província de Buenos Aires) e da Aliança Massa-Stolbizer.

Mas ela é também em baixo, onde a disputa do consenso entre o povo entre os que imaginam que a estratégia popular se esgota no possível dentro da hegemonia capitalista, e entre os que pretendem ir além da ordem do capital. Este debate verificou-se por exemplo num encontro que reuniu em Buenos Aires a ministra do Trabalho da Alemanha com um público diverso e representativo das diferentes centrais sindicais de trabalhadores e intelectuais e estudiosos da questão laboral no país.

A reunião verificou-se na Fundação Estratégias e sob os auspícios da Fundação Ebert [2], onde com a ministra alemã esteve como comentadora a deputada socialista Alicia Ciciliani. O motivo do conclave era a digitalização na produção e os desafios para o movimento operário. As diversas posições balançaram entre a procura da adaptação dos trabalhadores, e a denúncia do capital e a sua ofensiva contra o trabalho e a natureza.

Estão claras as duas opções. Uma forte pressão do poder local e mundial para restringir os direitos sociais e melhorar a rentabilidade dos investidores, com a dívida como lubrificante mesmo quando isso retarde a reactivação económica. Por outro lado, uma mobilização eleitoral e social à volta de expectativas de alterações dentro do sistema, e finalmente uma lógica de confronto contra e para além do sistema capitalista.

São opções não necessariamente complementares e que auguram dificuldades económicas, sociais, culturais e políticas no curto e no médio prazo, com um desenlace incerto.

Notas do tradutor:
[1] Central nuclear Argentina onde, em meados do ano passado, se verificou um despedimento de 2.400 trabalhadores!
[2] A Fundação Friedrich Ebert é bem conhecida dos portugueses e financiou prodigamente o PS logo após o 25 de Abril e o seu combate contra a revolução de Abril.

(*) Economista, Prof. da Universidade de Rosário (Argentina)

Este texto foi publicado em:
http://www.resumenlatinoamericano.org/2017/06/27/argentina-bono-de-deuda-publica-a-100-anos-julio-gambina/

Tradução de José Paulo Gascão

(Com Odiario.info)

Comentários