O voto de mais de 8 milhões de venezuelanos diz que as classes populares não querem retroceder

                                                                            

Geraldina Colotti é jornalista de “O Manifesto” e viajou a Caracas para cobrir a votação de 30 de junho e lá se encontrou com a realidade de que suas notas chocavam não apenas com o discurso único como também com certa imprensa que se manifesta como frente progressiva, mas não concordava com suas abordagens. As notas de Colotti têm sido publicadas por Resumen Latinoamericano e por L’Antidiplomático, portal italiano independente. Estes últimos realizaram com ela a seguinte entrevista que reproduzimos abaixo.

Como você vê o voto histórico para a Assembleia Constituinte?

Um resultado histórico, de fato, os mais de 8 millhões que votaram pela ANC representam 41,5% dos que possuem o direito ao voto. Nas últimas eleições legislativas de 2015, a oposição totalizou 7.771.076 votos, e o chavismo, 5.628.044. As direitas, então, haviam crescido um pouco, mas o chavismo perdera dois milhões de votos: devido à abstenção, em meio a uma crise aguda e uma guerra econômica. 

O voto de hoje indica que o chavismo, em um ano e meio, recuperou 2.477.000 de preferências. Ademais, se miramos na relação entre o número de habitantes e a porcentagem de votos, se consideramos que a porcentagem mais alta de consenso obtido por Chavez foi de 55%, com o atual número de habitantes, os 41,5% de Maduro resultam no consenso mais alto obtido pelo chavismo. Um resultado histórico, de fato, que legitima a proposta de relançar o socialismo bolivariano: sem concessões, senão com um renovado entusiasmo. A Assembleia Constituinte é uma espécie de “reiniciar” do socialismo bolivariano, que não quer trocar de computador, mas limpar a sujeira para fazê-lo funcionar mais velozmente.

Qual clima se respira?

É necessário olhar com atenção aqueles vídeos amadores que mostram as peripécias implementadas em Táchira por grupos de cidadãos que deviam administrar as mesas eleitorais, ameaçados pelos “guarimberos”. Eles fazem como se estivessem subindo a montanha para lutar na guerrilha, e com efeito estão também fugindo de agressores armados de machete dispostos a queimá-los vivos para impedir que fossem votar. 

Uma técnica de informática de apoio à votação foi despida e ameaçada junto ao restante das pessoas por um grupo armado de pistola e machete que queria saber onde se encontravam as máquinas eleitorais para destruí-las. “Terão que me matar”, foi o que respondeu a mulher. Naquele gesto de dignidade havia muito mais que uma máquina para o voto. 

Maduro resumiu nestes termos, mandando uma mensagem a Trump: “O que o povo está disposto a fazer pelo voto saberá fazer com as armas”. É este o clima que se respira aqui, sobretudo após as sanções que Trump impôs a Maduro. A alma desta “revolução” é a participação popular, a democracia “participativa e protagonista” que é a base da avançadíssima Constituição de 1999. Sobre isto apostou Maduro para relançar os termos: para romper o assédio dos poderes fortes e para enfrontar de modo mais apropriado os problemas que se evidenciaram em quase vinte anos.

Então é esta a razão profunda que está por detrás da Assembleia Constituinte?

Sim, com esta intenção foram convocadas as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, que está sendo instalada neste momento. Pondo sobre a mesa as grandes questões econômicas, políticas, ambientais, sem deixar de lado a ótica de gênero que levou as mulheres a todos os níveis do poder popular. Uma das candidatas à ANC è Rumi Quintero, histórica dirigente trans do Movimento LGBTI, que se apresenta como porta-voz de uma organização popular que tem muita clareza acerca da insterseção entre a ótica de gênero e a luta de classes. 

Não se trata de “um setor”, mas de uma visão de mundo que atravessa todos os âmbitos da vida e que deve ser assumida em cada espaço social. A dimensão da liberdade. O socialismo bolivariano se define “humanista” gramsciano. Trata-se de pôr no centro o ser humano como ser social e sexuado, capaz de entender a pluralidade das diferenças sem perder de vista a necessária articulação no interior de um projeto coletivo. 

No Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), fundado por Chavez em 2007, fluem todas as correntes do socialismo, do mutualismo ao leninismo, passando pelo aporte indígena e afrodescendente, desde Guaicaipuro ao primeiro Negro, à Teología da Libertação. Para alguns, um “caldeirão caribenho”, para outros um laboratório que se definirá na concretude histórica, no processo de luta de classes da forma como se apresenta hoje, após a queda do bloco socialista e a ascensão de um mundo multipolar.

Frente às reações das direitas e à negativa de reconhecer a ANC por parte da “comunidade internacional”, como reagirá o governo?

Estamos frente a um primeiro grande momento de redefinição. O problema, em essência, é sempre o mesmo: a correlação de forças entre as classes, a resposta ao ataque da burguesia, que deve resolver com a guerra (em todas as suas formas) a crise estrutural em que se debate o capitalismo. Deve-se encarar frente a frente a questão do poder, para pôr em marcha um projeto político alternativo que as classes dominantes queerem impedir de todas as formas. Que fazer nestes casos? Deixar que as direitas tomem conta de tudo? Evidentemente que não.

Até as consequências extremas?

O voto de mais de 8 milhões de venezuelanos diz que as classes populares não querem retroceder, que querem decidir por si mesmas como seguir adiante. Não se trata de “basismo”, mas de redefinição do consenso, pensado a partir de Guaicaipuro, Manuelita Saenz e Toussaint Louverture. Para de fato se chegar a uma transformação estrutural, para além da mera palavra “democracia”, é necessário assumir – com inteligência e consequência – o cerne da relação entre legalidade e legitimidade, como se reconfigura hoje e como temos herdado do “balanço distorcido” do conflito social e armado dos anos 70 e 80 na Itália. Seria preciso recordar a Itália dos massacres de estado, colocados em ação pelo sistema toda vez que os setores populares estavam no ataque. O que sucederia hoje na Itália dos Minniti e do “equilíbrio orçamentário” se fosse posto em marcha um projeto de transformação estrutural?

O que poderia suceder?

Podemos nos basear na Venezuela, que diz: “estamos vivendo uma Revolução pacífica, mas também armada”, para entender o modo justo dos termos da dignidade e da organização de classe. Porém, até um certo ponto, porque na Venezuela há “a união cívico-militar” e um povo predisposto à autodefesa. Nós aceitamos que os africanos ocupem as ruas gratuitamente para conquistar o “direito” a mendigar… Somos prisioneiros do paradigma da “vítima merecedora”, do “reconhecimento” pelo patrão, do “cérebro em fuga” que baba por ser acolhido num belo salão. 

Lamentavelmente, a reconstrução de um bloco social anticapitalista deve pôr em consideração também um profundo caminho de realfabetização sobre os fundamentos da luta de classes, do sentido das eleições, da responsabilidade, da consequência entre o dizer e o fazer, da solidariedade até quando se deve pagar un preço, etc. 

De outra forma, retomar os dizeres do Papa Bergoglio de “moradia, terra, trabalho”. Estas coisas nos chegam da Venezuela, onde o “partido dos subúrbios” age verdadeiramente, com limites e riscos, dando passos adiante e retrocessos, a sua maneira. Da Venezuela nos chega a mensagem de que devemos olhar cara a cara a luta de classes, fora dos esquemas, porém também sem medo do Esquema, 100 anos depois da Revolução Soviética.

Nesta noite foram presos Leopoldo López e Antonio Ledezma, que se encontravam em prisão domiciliar após pesadas condenações por uso de violência política e apelos ao golpe….

Sim, o Tribunal Supremo de Justiça revogou a prisão domiciliar. Já circulam vídeos enviados por Lilian Tintori, esposa de Leopoldo Lopez, que se encontra en Miami com a família. O povo reconquistou a confiança no presidente – não ao “ditador” – como dizem os grandes meios de comunicação – para resolver os problemas enfrentando os projetos e as ideais. O mandato é: não queremos ser queimados vivos enquanto buscamos resolvê-los. 

Quem quer confrontar-se – também a oposição – que o faça na Assembleia Constituinte (e muitos oposicionistas foram votar). Aqui está em jogo o que foi instituído contra os líderes de extrema direita que, como Leopoldo Lopez e Antonio Ledezma, estavam em prisão domiciliar como gesto de boa fé, mas continuaram a fazer apelos ao golpe e a apoiar o “governo paralelo” posto em marcha por Washington e pelos países vassalos, seguindo o modelo sírio. Alguns anos atrás, na França, o militante da Ação Direta Jean Marc Rouillan, que estava em semiliberdade, havia regressado ao cárcere logo após ter dado uma entrevista a um jornal diário. 

Há alguns anos na Itália, Bruno Seghetti, depois de decênios de cárcere especial, teve revogada a prisão, em troca de três anos de semiliberdade por haver participado do funeral de um companheiro. A democracia burguesa se defende com bombas, com a subversão das classes dominantes, com a tortura e o 41 bis. Desrespeita as regras e distorce os conceitos quando lhe convém, escondendo a agressão por detrás de paradoxos como “guerra humanitária”, etc, mostrando assim sua verdadeira natureza. 

É preciso desmascarar a hipocrisia burguesa porque isto serve, como se diz certa vez, “para fazer crescer a consciência das massas” e a organizá-las. Queremos recordar, por exemplo, que antes da repressão de Gênova havia a de Nápoles. E quem governava Nápoles então? Quem aprovou as leis especiais nos anos 70, quem promoveu a “guerra humanitária”, quem são os Minniti de hoje? Esses mesmos “legalistas” que dão lições de democracia ao governo Maduro. 

Para nós, que não somos “legalistas” e que continuamos a considerar pertinente a oposição revolucionária mesmo que sem fetichismo das formas, a questão vai além da defesa do governo Maduro – apesar de absolutamente necessária neste momento. Para os comunistas, trata-se de defender um projeto que vá na direção de atender os interesses das forças populares. Agora as direitas querem ocupar o Parlamento, encerrando-se dentro dele para impedir que se instale a Assembleia Nacional Constituyente. As organizações do poder popular estão pensando em impedi-las. Sobretudo, ameaçam com uma intervenção armada guiada pela CIA.

Redação de L’Antidiplomático

Tradução do Partido Comunista Brasileiro (PCB)

“El voto de más de 8 millones de venezolanos dice que las clases populares no quieren retroceder”

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