Como fazer frente ao atual sistema



"O que permite a ascensão da ultradireita não é um fenômeno superficial. A produção e as relações sociais estão, há décadas, em transformação veloz. Este processo se acelerará, com o avanço da inteligência artificial, da robótica, das edições genéticas, da nanotecnologia", escreve Antonio Martins, jornalista, em artigo publicado por Outras Palavras, 09-01-2019.

Eis o artigo.

Um enigma crucial, sobre a figura e o papel de Jair Bolsonaro, tormenta e ameaça boa parte dos que se opõem e tentam resistir a ele. O que representa, afinal, o presidente? O homem despreparado e patético, que chegou ao poder por circunstâncias extraordinárias e dele poderá ser expelido a qualquer momento, assim que o jogo político tradicional se reorganizar? Ou o poderoso representante do capitalismo contemporâneo – brutal e avassalador, capaz de transformar para pior a face do país e impor seus desígnios por largo prazo? Há vestígios destes dois personagens nos dez dias iniciais de governo, que se completam amanhã.

Talvez valha mais a pena apostar nestes embriões de alternativa real ao sistema, do que numa improvável regeneração dos partidos institucionais, para enfrentar Bolsonaro


Mas este aparente poço de incompetências age com força destrutiva superior à esperada, em múltiplas frentes. Os bancos públicos têm agora dirigentes claramente empenhados em liquidá-los, abrindo ainda mais espaço e negócios para a oligarquia financeira privada. Uma nova onda de privatizações – incluindo a Eletrobrás e o manejo dos rios – está a caminho, apesar das pesquisas que revelam oposição da sociedade a elas. 

O Consea, um raro espaço de participação social na definição das políticas públicas, foi extinto com uma penada. A demarcação de terras indígenas e quilombolas ficará bloqueada, no ministério da Agricultura, por uma líder ruralista. Os LGBT estão excluídos da política (?) de Direitos Humanos e a educação sexual nas escolas pode ser banida, também em confronto com a maioria. O sistema S e sua vasta ação cultural permanecem por um fio. Haverá “monitoramento” das ONGs. A lista amplia-se a cada dia.

Qual dos Bolsonaros é o real? – pergunta-se. Mas talvez a dúvida decorra da falta de um elemento, na equação. É impossível conhecer a força de um governo sem testá-la. E a característica mais notável dos primeiros dez dias não está nos atos do capitão – mas no campo aberto que ele parece ter à sua frente, para agir. 

Os partidos da ordem tradicionais encolheram-se naturalmente, como era de esperar. 

A mídia e os barões das finanças fazem jogo duplo, atiçando o fúria ultraliberal do governo e buscando, ao mesmo tempo, encabrestar seus ímpetos antiestablishment. (Estas duas atitudes merecem ser analisadas em textos futuros). Porém, o mais notável é: a vasta galáxia que se opõe ao conservadorismo e ao ultracapitalismo permanece desarticulada. 

A esquerda institucional parece incapaz de representá-la e mesmo de dialogar com ela. Não surgiram formas alternativas de construção de solidariedades, resistências comuns e alternativas. Enquanto esta ausência persistir, será impossível tanto encarar as (anti)políticas do bolsonarismo quanto reconquistar os vastíssimos setores do eleitorado que votaram por ele sem compartilhar seu programa de retrocessos.

A força do governo Bolsonaro está no colapso do sistema político, evidente desde 2013. É um fenômeno global, aliás. As instituições e as políticas que mantinham a coesão social, e a força dos partidos de centro ou adjacências, esgotaram-se


Mas talvez tenha escapado a Marcos Nobre uma dimensão que revela a real profundidade do problema. Ele propõe, como saída, uma Concertação Democrática que, a exemplo da frente de oposição à ditadura pós-64, esteja fortemente ancorada nos partidos. Nobre fala no PT, em Ciro, em Marina, talvez num novo “centro” armado em torno de Luciano Huck. Sugere que estes partidos “abram-se para a sociedade” por meio de instrumentos como as prévias. E frisa que esta concertação não deveria apenas defender as instituições – mas, ao mesmo tempo, consertá-las.

Há algum sinal, no Brasil, de que os partidos, da esquerda ao centro, estejam dispostos a deixar a pequenez de seus assuntos internos e a se lançar à aventura de desbravar e enfrentar o capitalismo contemporâneo?

Neste cenário totalmente reconfigurado, os velhos programas de enfrentamento do capital tornam-se ineficazes. E é precisamente o impulso do capital para se expandir, para quebrar as velhas regulações que lhe impõem limites, que dá origem a fenômenos como Bolsonaro. Trump. O aumento contínuo e brutal das desigualdades humanas, que em breve chegarão à esfera biológica. A redução da internet a máquina de vigilância, comércio e controle. As execuções de milhares de adversários sem julgamento, por meio de drones, e a destruição de Estados nacionais como a Líbia – perpetradas por “centristas” ou “centro-esquerdistas” como Barack Obama, Hillary Clinton e François Hollande.

É possível reverter esta ofensiva, que às vezes parece tão alucinante? Decerto, inclusive porque ela devasta os direitos e condições de vida das maiorias, liquida as classes médias, favorece no máximo uma minoria de 1%. Mas é preciso ter determinação para rever, de alto a baixo, os antigos programas e métodos políticos. A luta contra a opressão capitalista é cada vez mais atual. Muitas das formas que ela assumiu nos séculos XIX e XX, não.

A luta contra a opressão capitalista é cada vez mais atual. Muitas das formas que ela assumiu nos séculos XIX e XX, não


A renovação já está em curso – mas de maneira muito embrionária. Pense no ar que se respirou nas ruas do Brasil, em centenas de cidades, em episódios como o Ele Não, os protestos contra a execução de Marielle Franco ou muitas das manifestações que tentaram impedir o golpe de 2016. Foram multidões que se autoconvocaram, provenientes de muitas constelações sociais e políticas, que se reconhecem todas em lógicas pós-capitalistas. 

Entre elas, a distribuição radical de riquezas, em vez do acúmulo. A reflexão sobre as relações sociais e o planeta, no lugar do trabalho e consumo alienados. Cooperar, cuidar e colaborar, muito mais que competir. O respeito às múltiplas formas de afeto. A cultura de paz.


Para mudar o mundo, não basta a enunciação de novas lógicas. Mas é delas que partem a construção de outras políticas e a formulação teórica. Talvez valha mais a pena apostar nestes embriões de alternativa real ao sistema, do que numa improvável regeneração dos partidos institucionais, para enfrentar Bolsonaro. 

Como no pós-64, a resistência foi tramada nas bases da sociedade, enquanto a oposição institucional rendia-se (o jornalista e ex-deputado Freitas Nobre, pai de Marcos Nobre, é uma saudosa exceção). O então MDB, único partido oposicionista tolerado, incorporou-se à luta contra a ditadura muito mais tarde, quando o ambiente social já havia mudado.

Um dia, quando tal processo avançar, surgirão aqui um Podemos, uma Frente Ampla (como a do Chile), um Bernie Sanders, um Jeremy Corbyn. Mas nenhum destes existiria sem que houvesse antes os Indignados espanhóis, os Pinguins de Santiago ou o Occupy. 

O Brasil, pleno de contradições e de energia, precisa criar as condições que permitirão a emergência de algo assim. Um jornalismo crítico e de profundidade pode ter um papel, neste processo.

(Com o IHU)

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