Mais um avião caiu: somos todos Chape, Rafael Braga não é ninguém

                                                                

Mauro Luis Iasi (*)

Publicado originalmente em 21/12/2016 no Blog da Boitempo

(Para Rafael Braga, porque é sobre ele, e para Rafinha, porque a ideia é dela)

Lamentamos informar que neste terrível ano que parece não acabar nunca, tivemos a notícia de mais um terrível acidente envolvendo uma aeronave. As informações ainda são muito desencontradas uma vez que grandes redes de televisão insistem em dizer que o acidente não ocorreu, distorcem e ocultam os fatos, prejudicando muito a compreensão do ocorrido.

Ainda não sabemos ao certo o número de vítimas e sobreviventes. O avião caiu em um lugar de difícil acesso. As equipes de salvamento tiveram que pegar vários ônibus, fazer baldeação para pegar o trem e se demoram a chegar ao local que ainda sofre, nesta época do ano, com inundações frequentes.

Sabe-se, entretanto, que a maioria das vitimas é jovem e negra. As causas da morte são estranhamente bizarras: muitos morreram porque foram atingidos por balas perdidas, outros têm marcas de tiro pelas costas ou na nuca, numa evidência de que pode ter havido execuções. Uma mulher parece ter sido arrastada ao ser presa no compartimento de bagagem quando ainda estava viva. Muitos corpos estão desaparecidos e outros aparecem com claros sinais de tortura.

A polícia que investiga o estranho ocorrido afirma que há fortes indícios de que todas as vitimas resistiram ao acidente, o que acabou levando-as à morte.

Outro aspecto que nos chama a atenção é a quantidade de mulheres entre as vítimas. Apesar de serem um pouco mais da metade do número de passageiros, foram elas que ficaram mais machucadas com a violência da queda. Apresentam hematomas, braços quebrados, marcas de queimadura pelo corpo e, em muitos casos, a alma partida e o coração despedaçado. Estranhamente, entre as sobreviventes, muitas negam que tenham se machucado no acidente, alegando que caíram da escada ou outro motivo improvável.

Para agravar ainda mais este terrível sinistro, o avião parece ter caído em várias escolas e hospitais. As autoridades alegam que não poderão investir recursos para a reconstrução dos serviços nos próximos vinte anos, uma vez que o dinheiro está comprometido com o pagamento dos juros da dívida pública, com altos salários do judiciário, subsídios vultuosos para empresários, o perdão da dívida do agronegócio e para um suntuoso jantar que o presidente vai dar em homenagem a si mesmo no final do ano.

Além da evidente dor das famílias com a perda de seus entes queridos, há muita preocupação, também, entre os sobreviventes e seus familiares. As viúvas não receberão mais sua pensões integrais e só as terão por um tempo bem menor. Sobreviventes, por vezes mutilados pelo acidente, terão que continuar trabalhando até a idade mínima de 65 anos e contribuir por 49 anos, o que, em muitos casos, os forçará a trabalhar até depois dos 70 anos.

O Ministério Público investiga as denúncias de que alguns setores se beneficiaram com o acidente e que esperam ganhar fortunas com o ocorrido. As suspeitas recaem não apenas sobre a companhia aérea, mas nos fornecedores, bancos, empresas de seguro e uma infinidade de políticos. 

As investigações vão durar anos até que se apure tudo, mas a polícia já prendeu uma pessoa que passava pelo local do acidente portando um recipiente plástico contento um suspeito produto de limpeza. Apesar de não haver nenhuma relação plausível entre o desinfetante líquido e a queda do avião, o moço negro e pobre foi condenado e já se encontra preso.

Diferente de um recente acidente aéreo envolvendo uma equipe de futebol, a respeito do qual nos solidarizamos com as vítimas e seus familiares, este parece ter provocado reações díspares. Ao contrário daquele que motivou uma intensa solidariedade e consternação geral, levando a atos inusitados de equipes abrindo mão de títulos, adversários emprestando jogadores e recursos, cartolas fazendo de conta que se preocupam com jogadores, este acidente não gerou uma empatia unânime.

Muitos foram às ruas protestar e demonstrar seu inconformismo com tudo isso, mas outros, estranhamente, festejam a catástrofe. Alguns dos passageiros, mesmo entre os mortos destroçados por partes do avião que lhe atravessavam o corpo, vestem camisas da seleção brasileira e batem panelas afirmando que, apesar da dureza da queda, alguma coisa precisava ser feita. O avião não podia continuar voando daquele jeito, alegam, pois poderia acabar pousando na Bolívia, na Venezuela ou, pior ainda, em Cuba.

Com razão, ficamos abalados com o acidente que vitimou toda uma equipe de jovens esportistas que, saindo das divisões inferiores, estavam bem perto de um titulo inédito. Mas, por que esta indiferença com as vítimas desta catástrofe que se abate cotidianamente sobre nós? Talvez porque sejam pessoas que nunca sairiam das divisões inferiores, porque são muitas, porque são pobres, porque são negros, porque nunca iriam ganhar nada mesmo. Sei lá.

Quem se importa com esta gente, se é que é gente mesmo isso aí? Quem se importa com um filho de marceneiro, com uma mãe doida que está grávida e acha que é virgem? Quem se importa com uma família perdida no deserto ou à deriva num mar de indiferença, fugindo de governos que matam crianças? Quem se importa? Que morram…

Os sobreviventes tentam racionalizar com aquelas coisas de costume, dizendo que se atrasaram para aquele vôo, podiam estar mortos, mas escaparam. Outros falam de sua sorte porque estavam na única cadeira de toda uma fila que foi dizimada, ou porque entraram na regra de transição e vão se aposentar assim mesmo, ou porque não são líbios, nem sírios, não moram em Mariana nem na baixada fluminense. Conversamos a respeito deste comportamento com Mario Benedetti, que escapou de um acidente similar no Uruguai, porque os poetas nunca morrem, e ele nos disse o seguinte:

“Cuando en un accidente
una explosión
un terremoto
un atentado
se salvan cuatro o cinco
creemos
insensatos
que derrotamos a la muerte
pero la muerte nunca
se impacienta
seguramente
porque
sabe
mejor que nadie
que los sobrevivientes
también mueren.”

(*) Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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