Na ponta dos pés

                                                                             


Marina Amaral (*)

O sentimento é comum: não tem como evitar a tristeza e a indignação assistindo aos depoimentos na CPI. O festival de mentiras e ignorância por parte das autoridades desse país faz arder as feridas abertas pelas centenas de milhares de mortes, muitas por falta de UTI, de oxigênio, de políticas de confinamento social e - a cada dia mais - pelo descaso com que foram e são tratadas as vacinas que salvariam vidas no governo Bolsonaro. 

Nós, que somos obrigados a ouvir os absurdos de um presidente sem qualificação mínima para o cargo, que assistimos ao acintoso desfile de motos por ele liderado, zombando da gravidade da situação do país doente e faminto, estamos nos sentindo humilhados e desamparados. 

E como se a nossa cota de escárnio não estivesse completa, vemos a cada dia mais indícios de que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, está envolvido com o tráfico internacional de madeira em parceria com o diretor do Ibama, Eduardo Bim, afastado pelo STF. 

Ao que tudo indica, o desmatamento em alta - outra vertente da violência brasileira - não é fruto de incompetência, mas do apoio decidido do governo ao crime organizado - do contrabando de toras às balas disparadas nos Yanomami pelos que invadem seu território.  

A impressão é que estamos mergulhados em um pesadelo sem fim, com requintes de crueldade, em todos os campos da vida nacional. Foi o que senti ouvindo os depoimentos dos presos que sobreviveram à chacina do Jacarezinho, agredidos pelos policiais com fuzis e chutes, na cabeça, na cara, e obrigados a carregar os corpos - foram 28 - dos mortos pela polícia. 

Isso sem falar na violência a que toda a comunidade foi exposta. Se fosse convidada a depor, o que teria a dizer, por exemplo, a mãe de uma menina de 8 anos que viu o quartinho da filha se transformar em cenário de assassinato diante dos olhos da criança? Que tipo de sociedade tolera uma barbaridade dessas? 

A “guerra contra a infância”, como qualificou a jornalista Cecília Olliveira no levantamento que fez para o El País no mês passado, mostrando que pelo menos 100 crianças foram baleadas nos últimos 5 anos no Rio de Janeiro, talvez seja o sintoma mais evidente de que o Brasil está doente. E só a sociedade tem o poder de reagir às mortes por descaso ou intenção que estão destruindo nosso futuro - das aldeias dos Yanomami aos meninos e meninas mortas nas periferias das grandes cidades.

Ontem, junto com 20 colegas, recebi uma das homenagens mais comoventes dos meus 40 anos de profissão: o diploma de Jornalista Amigo da Criança e do Adolescente, apelidado carinhosamente de JACA, concedido pela Andi - uma das mais respeitadas ONGs brasileiras em defesa do direito da infância. Uma alegria ter o trabalho de toda a equipe da Agência Pública em prol dos direitos humanos reconhecido nesse gesto. 

Depois dessa celebração da sinergia do jornalismo investigativo com a sociedade civil na defesa dos mais vulneráveis, porém, uma notícia explodiu como uma bomba na tela do meu computador. A sede do projeto “Na Ponta dos Pés”, que há 8 anos transforma a vida de meninas no Morro do Adeus, no Complexo Alemão, através do balé, foi invadida por policiais encapuzados durante uma operação. Pode existir uma imagem mais simbólica da brutalidade do Estado nesse país que se tornou tão triste?

Só posso desejar que cada um de nós seja tão corajoso como as pequenas bailarinas do Morro do Adeus, e sua professora, Tuany Nascimento, que construíram um espaço de imaginação e futuro entre os destroços do Complexo do Alemão. A elas, toda a nossa solidariedade e respeito.

(*) Marina Amaral, é diretora executiva da Agência Pública 

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