Contra racismo, Suprema Corte dos EUA abre brecha na soberania do júri
João Ozorio de Melo
Em nome do combate a preconceitos raciais na Justiça criminal, a Suprema Corte dos EUA decidiu anular decisões de três tribunais estaduais que consideraram aceitáveis algumas manifestações racistas de um jurado, durante as deliberações do júri. A Suprema Corte abriu uma exceção ao princípio da soberania do júri, de mais de dois séculos, ao qual se refere nos EUA como “regra do não impedimento legal” (no-impeachment rule) do jurado.
Uma das justificativas técnicas da decisão da Suprema Corte é que a animosidade racial do jurado foi um fator que motivou significativamente o veredicto do júri, desfavorável ao réu. Para a corte, o direito do réu a um julgamento justo, garantido pela Constituição, foi surrupiado. A par disso, a corte entendeu que é preciso limpar urgentemente a Justiça criminal de preconceitos.
“A nação precisa promover avanços mais rápidos no combate à discriminação baseada em raça. O progresso que já foi alcançado sustenta a insistência da corte de que o preconceito racial grosseiro é antitético ao funcionamento do sistema de júri e deve ser confrontado em casos clamorosos como esse, apesar da proibição geral da regra do não impedimento legal”, escreveu o ministro Anthony Kennedy, no voto da maioria.
O “caso clamoroso” a que o ministro se refere é o do cidadão de origem mexicana Miguel Angel Peña-Rodriguez. Em 2007, ele foi acusado de assédio sexual, depois de ser denunciado por duas irmãs adolescentes. Elas disseram à polícia que o mexicano as molestou sexualmente no banheiro do hipódromo onde trabalhava. O réu foi sentenciado a dois anos, com suspensão condicional da pena e foi obrigado a se registrar como criminoso sexual.
Depois do julgamento, dois jurados esperaram pelo advogado de defesa na sala de deliberações. Eles relataram que, durante as discussões, um jurado, identificado no processo como H.C., fez declarações racistas contra o réu, e a testemunha que lhe deu um álibi. Ele disse que, na condição de ex-policial, sabia que o mexicano era culpado.
“Os mexicanos têm essa bravata de que podem fazer o que querem com as mulheres. O réu é mexicano, e os homens mexicanos pegam o que querem. E nove em dez mexicanos são agressivos com as mulheres e meninas”, ele teria dito, segundo uma declaração juramentada escrita pelos dois jurados. Quanto à testemunha, disse aos demais jurados que ela não era confiável porque era um imigrante ilegal (o que não era verdade).
Com a declaração dos dois jurados, a defesa pediu a anulação do julgamento. O pedido foi negado pelo juiz de primeiro grau, por um tribunal de recursos e pelo tribunal superior do Colorado.
Nessas três cortes, prevaleceu a tese de que os jurados são imunes a questionamento depois que um veredicto foi anunciado. A lei do Colorado, como a lei federal, “geralmente proíbe um jurado de testemunhar sobre qualquer declaração feita durante as deliberações, em um procedimento que examina a validade do veredicto”.
“Essa versão da regra do não impedimento legal tem um mérito substancial. Ela estimula a discussão aberta entre os jurados, com uma garantia considerável de que, depois de terminado o julgamento, eles não serão intimados para relatar suas deliberações e de que não serão atormentados ou incomodados por litigantes que não se conformam com o veredicto. A regra dá estabilidade e finalidade aos veredictos”, escreveu o tribunal superior do Colorado, em sua decisão.
A tese da imunidade dos jurados, no que se refere a suas deliberações, precede, na common law, à aprovação da Constituição dos EUA, em 1787. Em 1785, Lord Mansfield, um dos mais famosos juristas da história inglesa, excluiu o testemunho de um jurado de que o júri havia decidido um caso através de um jogo de azar. A “Regra de Mansfield” proibiu os jurados, após o anúncio de veredicto, “de testemunhar sobre seus processos mentais subjetivos ou sobre eventos objetivos ocorridos durante as deliberações”.
Os EUA adotaram versões adaptadas dessa regra. Algumas jurisdições estaduais estabeleceram que os jurados só são proibidos de testemunhar sobre suas crenças, pensamento ou motivos subjetivos durante as deliberações. Outras adotaram a regra do não impedimento legal, mas estabeleceram exceções para casos em que eventos externos interfiram no processo deliberativo.
Esse é um sistema que prevalece em quase todo o país. Um veredicto pode ser comprometido — e o julgamento pode ser anulado — se for descoberto que um ou mais jurados, para deliberar sobre um caso, se basearam em informações externas (como as obtidas em jornais, sites, livros etc.) ou em investigações pessoais dos fatos.
Na Suprema Corte, o ministro Anthony Kennedy abriu seu voto com uma defesa solene da instituição do júri.
“O júri é uma fundação essencial de nosso sistema de Justiça e de nossa democracia. Apesar de suas imperfeições em casos particulares, o júri é um freio necessário ao poder governamental. O júri, através dos séculos, tem sido um instrumento inspirado, confiável e eficaz para resolver disputas factuais e determinar questões de culpa ou inocência em processos criminais. Ao curso do tempo, seus julgamentos são aceitos pela comunidade, uma aceitação que é essencial para o respeito ao estado de Direito. O júri é a implementação tangível do princípio de que a lei vem do povo.”
Mas lamentou que, como todas as instituições humanas, o sistema de júri tem suas falhas. Uma delas é histórica: a da interferência de preconceitos raciais nos julgamentos criminais. “Quase que imediatamente após a Guerra Civil, o Sul iniciou uma prática que se perpetuou por muitas décadas: júris compostos apenas de brancos punindo réus negros duramente, enquanto deixavam de punir a violência praticados por brancos, incluindo os membros da Ku Klux Klan, contra negros e republicanos”, escreveu o ministro.
“Para dar apenas um exemplo, em 1865 e 1866, júris formados só de brancos, no Texas, decidiram um total de 500 processos de réus brancos acusados de matar afro-americanos. Todos os 500 foram absolvidos”, acrescentou Kennedy.
Para o ministro, a tradição do país tem de mudar, para se elevar acima das classificações raciais que são tão inconsistentes com o compromisso de garantir igualdade a todos os cidadãos perante a lei. “Esse imperativo de expurgar o preconceito racial da administração da Justiça ganhou mais força e direção com a ratificação das Emendas Constitucionais da Guerra Civil”, ele disse.
O combate à animosidade racial não é um dever apenas do Legislativo. O Judiciário tem de se esforçar, seguidamente, para garantir a proteção constitucional do réu contra a discriminação racial, de certa forma patrocinada pelo estado, no sistema do júri, segundo o ministro Kennedy.
A decisão foi tomada por 5 votos a 3, com o ministro Kennedy, conservador, se juntando aos quatro ministros liberais da corte. Em seu voto dissidente, a minoria defendeu a imunidade dos jurados (com base na regra do não impedimento legal) e a ideia de que os jurados têm de poder discutir, durante as deliberações, como o fariam em casa, no trabalho ou na rua. Para os três ministros, essa vontade da maioria de buscar a perfeição no júri descaracteriza a instituição em sua essência.
O ministro Kennedy disse que não há conflito entre preservar a imunidade (ou a soberania) do júri e eliminar o preconceito racial da Justiça criminal. As duas coisas têm de conviver, e os juízes podem ajudar nisso, tentando eliminar potenciais preconceituosos na seleção do júri e nas instruções que dá aos jurados, antes de eles se recolherem à sala de deliberações.
O voto da maioria concluiu que, quando os esforços do juiz, do promotor e do advogado não forem suficientes para evitar o preconceito e que declarações racistas de um jurado possam influenciar a ele mesmo e a outros no veredicto, a corte tem de interferir para garantir ao réu o direito constitucional a um julgamento justo e imparcial. “Nesse caso, a regra do não impedimento legal deve ceder lugar à garantia constitucional”, diz o voto.
(Com o Consultor Jurídico)
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