Resistências às propostas do governo Temer terão de derrubar os muros da esquerda
Rachel Sanz
Gabriel Brito (*)
Sete dias depois de as mulheres tomarem as ruas do Brasil para afirmarem as pautas feministas, o país voltou a ver grandes manifestações em suas principais cidades, desta vez a partir da proposta de Reforma da Previdência apresentada pelo governo Temer, que unificou manifestações de diversas categorias de trabalhadores.
No caso de São Paulo, a maior de todas as marchas, com no mínimo 200.000 presentes na Avenida Paulista, tivemos uma junção do ato dos professores que saiu da Praça da República e foi de encontro aos grupos ligados às centrais sindicais, o que garantiu musculatura e vigor ao massivo protesto.
No entanto, e para além das análises e posições que visam influenciar a política macro, novamente se evidenciou o distanciamento da chamada esquerda tradicional, capitaneada pela CUT e setores lulistas, da nova geração, que passou a ser considerada a partir de 2013.
“Não podemos direcionar nossas lutas para a disputa eleitoral de 2018, como quer fazer o PT. Tampouco podemos aceitar o caminho que leva à divisão da classe, com propostas de emendas pontuais ao projeto do governo. É preciso derrotar as reformas da previdência e trabalhista”, afirmou ao Correio Paulo Pasin, presidente nacional dos metroviários, dando ideia da sinuca em que se encontram aqueles que desejam virar a página do lulismo.
Se na internet os defensores do ex-presidente ofendem e tentam desmoralizar os novos movimentos e seus componentes, com o pueril e autoritário discurso de “vocês fazem o jogo da direita”, nas cenas reais da luta de classes brasileira tais setores necessitam desesperadamente da dita “nova esquerda anticapitalista” para animar seus atos e marcações de posição.
“Unir a esquerda”. Agora?
Porém, as próprias dinâmicas de cada lado são notoriamente distintas e ambos se afastam naturalmente, apesar de as fotos aéreas sugerirem grande comunhão.
Em torno dos caminhões da velha burocracia sindical, que desde o ajuste fiscal de 2015 comandado por Joaquim Levy fez pífias manifestações próprias de repúdio à austeridade, ficam os militantes mais antigos, dos 40 anos em diante. Ouvem os mesmos dirigentes de sempre fazendo discursos relativamente manjados e calculados, ao lado de jovens pagos pra segurar bandeiras sem compromisso militante algum.
De outro lado, as parcelas que dispensam caminhões de som em manifestações que se convencionaram chamar de autonomistas, o que não deve ser confundido com exclusivamente anarquistas, ignoram solenemente tais discursos. Primeiro por falta de fé naquelas figuras que praticamente hibernaram as lutas sociais que antecederam a chegada do PT ao poder federal; em segundo lugar também porque priorizam questões pouco trabalhadas pela esquerda tradicional, sindicalista e partidária, como o próprio feminismo evidencia (e os transportes em 2013 também).
Um dos carros de som da manifestação da Paulista, que não estava identificado com nenhuma central sindical ou a Apeoesp (sindicato do professorado Paulista), era dominado por mulheres sexagenárias que passaram no mínimo uma hora bradando “Volta Dilma”, sem serem acompanhadas pela turma do chão em momento algum. Um papel e uma oratória que chegam a soar folclóricos para a juventude que conforma o chamado “precariado”, como definem análises da atual classe trabalhadora brasileira.
Essa juventude que foi às ruas em 2013 e defende pautas antimercado ignora o discurso de “defesa da democracia” tão propalado por aqueles que participaram da (fracassada?) transição da ditadura nos anos 80. Para esses novos militantes, soa quase como ofensa à inteligência a defesa de um governo que ajudou a criminalizar as lutas das quais participaram em 2013 e 2014, inclusive por meio de leis, decretos e militarização.
Como defende o filósofo italiano Antonio Negri, trata-se de uma geração que, mundialmente, trocou a defesa por processos constituintes (como o de 1988 no Brasil) por “destituintes”, simbolizados nas lutas associadas à ocupação de praças públicas e grandes assembleias, como as do Sol (Madri), Tahrir (Cairo) e Taksim (Istambul).
Tais movimentos, frise-se, não possuem relação alguma com as reações conservadoras contra a globalização e sua crise econômica, marcadas pelo Brexit, a eleição de Trump e a retomada da popularidade da extrema-direita em diversos países. Basta ver o perfil social, laboral, cultural e geracional de cada processo para escapar das falsas análises de uma esquerda que parou no tempo e tenta vender tudo e todos que escapam de seu controle como farinha do mesmo saco.
Em meio a toda essa complexidade, aqueles que desejavam colocar Lula nos atos em São Paulo tiveram constrangedora cautela em não anunciar sua presença. Nos estertores da jornada, quando o grosso das pessoas já rumava para casa, eis que o ex-presidente aparece e discursa de cima do caminhão da CUT, em frente ao MASP, para seus fieis seguidores.
Aliás, falando em postes pagos para levantar bandeiras da maior central sindical, uma lamentável agressão de capangas da CUT foi registrada contra um cinegrafista independente, no ato do Rio de Janeiro. Poucas informações se seguiram, mas uma postagem dos ditos “sindicalistas” na internet dá noção de grupo similar a uma milícia paramilitar, o que não é novidade para aqueles que conheceram e viveram algumas disputas do sindicalismo brasileiro.
“O PT enquanto partido de esquerda, popular e de massa, francamente, não tem possibilidades de ressurgir. O PT no poder sempre recusou um debate pela esquerda. Não lembro de uma única vez o Lula, em todos os seus anos de presidente, fazer qualquer menção positiva às esquerdas, inclusive de dentro do PT. Uma desconsideração cabal.
Claro que ao PT interessava preservar seus setores de esquerda, mas o lulismo sempre o aceitou como margem, nunca como centro, uma vez que de fato o lulismo visava a conciliação de classes. E, em última instância, acabava na personificação da política, onde o líder sempre tem a última palavra”, disse o sociólogo Ricardo Antunes em novembro de 2015, quando o governo Dilma II já era um desastre irreversível e a direita capitalizara a revolta.
Fato é que essa esquerda acusou o golpe e compreendeu que o ex-presidente não goza de nenhuma admiração dos mais jovens, que não tiveram a oportunidade de conhecer o partido de militantes de ruas e bases que um dia o PT foi.
“Primeiro é necessário apontar que a articulação da sua presença causou mal estar em outros setores organizadores dos protestos. Este oportunismo foi calculado pelo petismo para fazer o enquadramento de defesa dos pobres e das causas sociais e já adiantar o debate presidencial de 2018. Se a presença de Lula agradou militantes petistas, por outro lado desagradou alguns ativistas que estavam nas ruas”, escreveu Paulo Spina, do Fórum Popular da Saúde de SP, neste Correio.
Para além da rejeição e diferenças político-ideológicas, a análise que muitos fazem é que atrelar essa e qualquer pauta ao PT encontra um limite em termos de adesão popular. No fim das contas, ficaria tudo entre aqueles que já fazem parte dos círculos tradicionais da militância, alienando o cidadão médio, galvanizado pelos conservadores de verde e amarelo.
“O maior erro daqueles que lutam contra a reforma da Previdência será aceitar a identificação desta importante reinvindicação ao PT, pois isto impedirá uma maior adesão daqueles que ainda não foram para as ruas protestar contra a reforma”, defendeu Spina.
O “Fora Temer” está muito além da política pura
Neste cenário de confusão também se encontra o “Fora Temer!”, que, tal como posto em matéria do 8 de março, não significa “Volta, Dilma”. Governo identificado como símbolo da sociedade branca, hétero, patriarcal, o repúdio aos seus membros transpassa qualquer conjectura política e toma contornos de “movimento cultural”. Brados contra a figura do novo presidente foram marcantes em momentos como a Virada Cultural de 2016 em São Paulo e o Carnaval das ruas neste ano.
“O núcleo dominante do PT, que está em parte encarcerado, em parte processado, não tem mais como chegar no PSOL, no PSTU, nos diversos grupos e movimentos, e dizer ‘vamos costurar, agora que estamos morrendo, uma Frente de Esquerda’.
Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. O PT de 2015 tem muito pouco a ver com o PT de 1980. A CUT perdeu, ao longo dos anos 2000, um conjunto enorme de tendências e militantes sociais que estavam lá desde sua formação, em 1983.
Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação”, também dissera Antunes, provavelmente o maior conhecedor do mundo do trabalho brasileiro.
Dessa forma, fica o desafio, quase certamente de longo prazo, de reorganizar uma alternativa que apresente outro projeto ao país, distinto daqueles que serão requentados em 2018; seja o bate-estaca neoliberal que visa financeirizar tudo, seja o neodesenvolvimentismo que consagrou os “campeões nacionais”, desmoralizado exatamente quando publicamos este texto, por conta do escândalo da Friboi, além do aniversário de três anos da Operação Lava Jato.
Para aqueles que não se identificam com nenhum dos projetos dominantes, basta o noticiário deste último fim de semana.
(*) Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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