VIOLÊNCIA RECORRENTE
IHU
Para o morador do sertão, o filme não mostra o futuro, mas um presente cruel. Há selvageria, mas também insubmissão. Nas entrelinhas, uma mensagem ao Nordeste: há força possível a ser levantada de um povo abandonado a si mesmo.
O artigo é de Renan Porto, ensaísta, poeta, mestre em filosofia do direito pela UERJ e autor de O Cólera A Febre (Urutau, 2018), publicado por Outras Palavras, 06-09-2019.
Eis o artigo.
"Que Bacurau seja uma crítica ao governo Bolsonaro e ao imperialismo americano é a interpretação mais rasa possível do filme.
Para quem cresceu numa pequena comunidade no interior do Nordeste, Bacurau é de partir o coração. Com dez minutos de filme, eu já estava quase chorando. Era muito difícil assistir fazendo um esforço pra não se identificar demais e ter uma perspectiva mais distanciada. A paisagem é a mesma. O povo é o mesmo. O jeito do povo é o mesmo. Não foi fácil ver esse filme. Saí abalado.
Na zona rural no interior da Bahia, aquela violência não é futura. Sempre existiu de modo recorrente sem ser muito relatada. Cresci sabendo de casos assim. Muita gente que eu conheci se foi assim. Mas o carinho, a força e insubmissão do povo também são reais.
Que muita gente tenha detestado Bacurau e muita gente tenha adorado, é o que há de mais interessante. Acho que há alguma verdade nisso. A verdade tem esse efeito antagonista. Não traz a paz, mas a espada. Não numa lâmina pura, mas ambígua. Lança uma contradição e agita pensamento e discurso.
Fiquei pensando Bacurau como uma mensagem criptografada ao Nordeste, que diz sobre a força possível quando o povo abandonado a si mesmo é levado a encontrar. Há muitas contradições internas difíceis de equacionar nesse povo. Bacurau tenta fazer essa equação sem apaziguá-la ao todo.
Bacurau tem o mesmo espírito do Grande Sertão: Veredas. A selvageria em torno de pactos de poder, mas também a insubmissão popular a estes pactos.
A crítica política de Bacurau é retrospectiva e atual. Quanto ao futuro, Bacurau é um quadro que espero estarmos à altura de recusar. O sentimento de autopertencimento e desconfiança que o filme suscita em relação a brancos, gringos e Sudeste é terrível e toca nos nossos instintos mais baixos. Mas também toca nossos conflitos mais reais.
Por isso, nossos instintos quanto a isso são tão agudos, por que aquele jeito de ser visto e ser tratado pra quem é pobre, negro, nordestino é recorrente demais e acontece nas relações mais inesperadas. No entanto, a provocação possibilita a discussão sobre isso e coloca uma série de questões a serem encaradas.
A força do filme reside em tudo que ele expele monstruosamente, tirando nossa paz e nos forçando a pensar sobre todos esses problemas. Não é um filme que apela para concordar com ele. Também não é uma história de heróis. E assim como aquele romance de Rosa, invoca fantasmas que vão assombrar nossas conversas por muito tempo.
(Com o Instituto Humanitas Unisinos)
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