Amanhã*

                                                              
 Anabela Fino    

Instalou-se o coro mediaticamente ampliado do «vai ficar tudo bem», do «temos de estar unidos», do «toca a todos», juntamente com os cada vez mais apocalípticos cenários do que aí vem (que visam sobretudo instalar a ideia de que será tão mau que tudo deverá ser aceite pelos trabalhadores). 

A realidade já está à vista, nos despedimentos selvagens, no lay-off à medida do patronato, no condicionar dos direitos de acção colectiva dos trabalhadores, a começar pelo direito à greve e, por outro lado, nos salamaleques ao grande capital e à banca. A luta de amanhã terá de estar à altura desta ofensiva.

Primeiro condicionou-se os direitos de greve, de manifestação e de resistência; depois foi suspenso o direito das comissões de trabalhadores e associações sindicais de participação na elaboração das leis do trabalho. Mas dizem-nos que vai ficar tudo bem.

Primeiro cortou-se um terço ao salário dos trabalhadores, mantendo-se no entanto o desconto de 11% sobre o salário para a Segurança Social; depois facilitou-se o lay-off, deixando nas mãos das empresas o poder de despedir os trabalhadores não abrangidos, ao mesmo tempo que eram isentadas do pagamento de contribuições para a Segurança Social, a famosa TSU aplicada a cada salário. Mas repetem-nos que temos todos de estar unidos.

Em poucos dias, quase 32 mil empresas mandaram mais de 500 mil trabalhadores para casa, e o próprio Governo estima que haverá em breve um milhão de trabalhadores na mesma situação, pelo que os encargos chegarão aos mil milhões de euros mensais. Mas dizem-nos que temos de ser resilientes.

Mais rápido do que a própria epidemia espalha-se o vírus da dispensa de trabalhadores em período experimental, da não renovação de contratos a prazo, dos despedimentos e da antecipação forçada de férias, ao mesmo tempo que o patronato exige ajudas a fundo perdido e defende o endividamento (ainda maior) do Estado para acorrer aos seus privados negócios. Mas repetem-nos que a crise toca a todos.

Enquanto isso, o Presidente da República conferenciou nesta segunda-feira com os cinco maiores bancos a actuar em Portugal para lhes pedir o favor de serem sensatos e se lembrarem que receberam dezenas de milhares de milhões de euros do erário público, ou seja, dos portugueses, pelo que devem fazer o obséquio de agilizar os empréstimos às empresas e às famílias. 

Bonito. Mas não me lembro de alguém me ter perguntado, a mim e aos milhões de portugueses como eu – trabalhadores, reformados, pensionistas, desempregados, homens e mulheres – se aceitava ser espoliada a favor da banca. Fomos todos, como sempre, voluntariamente obrigados a pagar uma factura que não era nossa.

E eis que de novo – ou não fora essa a essência do capitalismo – os poderes instituídos equiparam os cêntimos do trabalho aos milhões dos banqueiros, como se um terço do salário a menos fosse um azar na bolsa.

E eis que de novo, como sempre, se faz de conta que o dinheiro do Estado não é o dinheiro de todos nós, trabalhadores com cortes salariais incluídos, e sobra em benesses ao privado o que escasseia à causa pública.

Não, não vai ficar tudo bem. Não adianta repetir os mesmos erros na esperança de um resultado diferente. Com ou sem epidemia, é a sociedade que está doente, vítima de um sistema tão desumano que não tem remédio. Amanhã, que é já hoje, o tempo será de luta.

*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2419, 8.04.2020

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