3,4 milhões crianças trabalhando no Brasil: ''É inaceitável''
Criança trabalhando em carvoaria ABr/Divulgação
Em entrevista, a secretaria do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Isa Maria de Oliveira, afirma que a prevenção e eliminação do trabalho infantil “tem que se dar no contexto da proteção integral dos direitos da criança e do adolescente”
“Se analisarmos que em uma década pouco mais de meio milhão de crianças foram retiradas do trabalho infantil, e que ainda há um universo de 3,4 milhões crianças trabalhando, isso revela claramente que as políticas e os programas adotados e implementados no Brasil não estão dando conta da gravidade do problema”. A análise é de Isa Maria de Oliveira, secretaria do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, referente aos dados do censo sobre o combate ao trabalho infantil no país. Para ela, esse “resultado é inaceitável”, porque “em comparação ao universo de crianças que ainda estão trabalhando, esse número ainda é pouco expressivo”. E acrescenta: “É inaceitável que o Brasil, apontado como uma referência para os outros países nessa área de enfrentamento do trabalho infantil, tenha um resultado tão pequeno”.
De acordo com Isa Maria, cerca de 132 mil crianças e adolescentes entre 10 a 14 anos ainda “são responsáveis pelos seus domicílios”. Para ela, a impossibilidade de erradicar o trabalho infantil no país está relacionada à ineficácia das políticas públicas, que não conscientizam as famílias sobre o tema. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Isa comenta o impacto dos programas de transferência do governo no controle do trabalho infantil. Apesar de terem contribuído para garantir o acesso das crianças à escola, os programas não contribuíram “para que as famílias tivessem uma compreensão sobre o trabalho infantil”. Isa também destaca a omissão dos gestores públicos, que não denunciam casos em que as famílias recebem um valor em dinheiro e mantêm as crianças trabalhando. “O governo municipal não identifica e não reconhece que há trabalho infantil, ou seja, não faz esse cofinanciamento. Enquanto isso, o Programa de Transferência de Renda está aí, cobrindo mais de 14 milhões de famílias”.
Isa Maria de Oliveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás, e pós-graduada na mesma área pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Em dez anos aproximadamente 530 mil crianças e adolescentes brasileiros deixaram de trabalhar no país. O que esse dado significa e representa considerando a trajetória brasileira em relação ao trabalho infantil?
Se analisarmos que em uma década pouco mais de meio milhão de crianças foram retiradas do trabalho infantil, e que ainda há um universo de 3,4 milhões crianças trabalhando, isso revela claramente que as políticas e os programas adotados e implementados no Brasil não estão dando conta da gravidade do problema. Quando falamos de crianças e adolescentes, nos referimos a uma fase na vida muito breve. Então, se em uma década milhares de crianças não foram retiradas do trabalho infantil, na próxima década elas não serão mais crianças, e legalmente poderão trabalhar e perderão a oportunidade de viver plenamente a infância e de ter assegurado todos os direitos fundamentais para o seu pleno desenvolvimento cognitivo, físico e emocional.
Do ponto de vista da avaliação do Fórum Nacional, esse resultado é inaceitável. É uma redução muito pequena. Claro que felizmente pouco mais de meio milhão de crianças foram retiradas do trabalho infantil, mas em comparação ao universo de crianças que ainda estão trabalhando, esse número ainda é pouco expressivo. É inaceitável que o Brasil, apontado como uma referência para os outros países nessa área, tenha um resultado tão pequeno.
Quais foram as políticas públicas de combate ao trabalho infantil que não foram eficazes? Qual é o problema e como o Estado aborda essa questão?
A primeira observação que faço é a de que o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI foi instituído em 1996, quando trouxe um impacto forte e positivo. Tanto é que a maior redução do trabalho infantil aconteceu até 2001 e 2002. Retiradas as crianças da cadeia formal de trabalho, permaneceram trabalhando as crianças que trabalham com as próprias famílias, tanto na área rural como na área urbana. Essas são formas de trabalho infantil que requerem uma articulação e uma integração das políticas públicas.
Nesses casos, as famílias precisam receber um atendimento especial. O início dessa atenção pode ser a transferência de renda, mas isso não é suficiente. É preciso que as famílias tenham a oportunidade de serem informadas e de compreenderem que a inclusão precoce de crianças e adolescentes no trabalho infantil não é uma solução, mas um fator determinante de reprodução da pobreza e da exclusão social no Brasil.
Quais são as outras políticas que precisam funcionar e estarem articuladas? Sem dúvida nenhuma, a política de educação. As crianças que estão trabalhando têm direito a uma educação de qualidade, que passa necessariamente por aprender no tempo certo e por ter todas essas oportunidades de práticas esportivas, culturais, para que se tenha uma educação, e não somente uma escolarização. É preciso garantir uma escola de qualidade e, preferencialmente, em tempo integral, com foco nas áreas e nos municípios, nos territórios onde há realmente maiores focos de trabalho infantil. Além disso, deve haver, por parte do Estado, seja municipal, estadual ou federal, uma responsabilidade no sentido de informar e sensibilizar a sociedade de que o trabalho infantil traz inúmeros prejuízos e riscos para as crianças, além de comprometer o desenvolvimento humano do país. Isso é importante, porque mudar valores culturais é um dos maiores desafios, ainda mais em um país que tem um legado escravocrata, uma percepção equivocada e desumana de que o trabalho é bom para as crianças pobres. 132 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos são responsáveis pelos seus domicílios. Esse é um indicador forte de trabalho infantil.
As políticas públicas deveriam ter sido acompanhadas mais de perto ao longo dessa década?
É importante ressaltar que, quando se fala de direitos de crianças e de adolescentes, de proteção integral, a prioridade tem de estar posta e assumida por todas as políticas públicas – e isso não acontece no Brasil. Por exemplo, ainda não temos a educação básica, aquela que cuida da fase pré-escolar, do ensino fundamental e ensino médio. Da mesma forma, o combate e à prevenção ao trabalho infantil não é uma prioridade. Então, a atuação das políticas públicas ainda está muito ligada à escolarização, e o foco é sempre a taxa de escolarização, ou seja, “o estar matriculado”.
Quando analisamos os indicadores de frequência e de rendimento escolar, vemos que essa taxa tão positiva de matrícula cai drasticamente. Dados do próprio MEC demonstram que, quando a criança ou o adolescente estuda e trabalha, o rendimento escolar é 10 ou 12 pontos percentuais abaixo daqueles que só estudam.
Violações
O trabalho infantil é uma porta aberta para as outras violações. Nós temos registros de que adolescentes privados da liberdade, porque cometeram um ato infracional, trabalharam quando crianças. O trabalho infantil nas ruas é um caminho aberto para que se deem a exploração sexual comercial, o abuso e outras inaceitáveis violações, como o espancamento, o xingamento, humilhações. É preciso refletir sobre isso. O resultado dessa década evidência realmente que o Brasil não está respondendo a todas essas graves questões. Quando falamos em trabalho infantil, entendemos que sua prevenção e eliminação têm que se dar no contexto da proteção integral dos direitos da criança e do adolescente. Tem que proteger a vida dessa criança, a saúde, o direito à educação de qualidade, o direito ao lazer e à convivência escolar.
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT, 40% das crianças que trabalham atualmente não são de famílias que vivem abaixo da linha da pobreza. Dizem que se trata de um novo perfil do trabalho infantil. Essa mudança acompanhou a ascensão econômica do país, e por isso as crianças não pertencem a famílias que estão abaixo da linha da pobreza? Comparando os anos 1990 e início dos anos 2000, como descreve hoje o perfil do trabalho infantil no Brasil?
Esse dado requer uma maior análise. O perfil apontado pela OIT está aliado muito a que situações de trabalho as crianças estão submetidas. Aí eu aponto o seguinte: o corte de renda para que uma família seja incluída no programa Bolsa Família é de 140 reais per capita, mas uma família que tem uma renda dessas não será atendida pelo programa. Apesar disso, não posso afirmar que essa família não está em uma situação de pobreza. Então, precisaria analisar qual é a faixa de renda desses 40%.
O que esse dado pode trazer é o seguinte: como o maior abandono da escola é na faixa de 15 a 17 anos, na adolescência, e como nós vivemos numa sociedade do consumo, todos os adolescentes, independente de cor e de situação econômica, têm aspirações materiais, e essas aspirações, muitas vezes, motiva os adolescentes a trabalhar, mesmo que a família não esteja precisando daquela renda para sobreviver. É um trabalho que ele realiza para lhe dar direito a uma aspiração de consumo. Então, se tem uma família que não está em situação de extrema pobreza, mas ela não pode realmente dar ao seu adolescente, por exemplo, um celular, um tênis de marca ou algum bem que ele considera importante, ele trabalha para poder comprar. Então, esses 40% podem representar, em parte, esses adolescentes que estão trabalhando e que querem realmente garantir as suas aspirações de consumo e que não necessariamente estão determinados pela extrema pobreza da família. Todavia, avalio que esses 40% ainda estão na faixa da pobreza.
As crianças trabalham por necessidade?
Exatamente! E aí você não pode reduzir a necessidade à sobrevivência somente. Há outros bens que estão disponíveis na sociedade e que são privilégios de poucas crianças e adolescentes. Por um lado, essa questão do consumo é muito forte entre os adolescentes, e eles são os que mais abandonam a escola.
Se dividir por faixas etárias, sim. A faixa etária de 13 e 14 anos tem maior incidência de trabalho infantil na área rural. A faixa etária de 15 a 17 anos tem maior incidência urbana. Não há dúvidas. Isso está se confirmando. Quando se olha, por exemplo, nessa faixa de 15 a 17 anos, no Brasil e em todas as regiões, a maior incidência é urbana. Quando se pega nessa faixa até 14 anos, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Sul, é na área rural.
Apesar das suas críticas aos programas de distribuição de renda, é possível fazer uma avaliação de como eles incidiram no sentido de prevenir o trabalho infantil?
Quando se faz um acompanhamento das famílias que recebem transferência de renda, faz-se o acompanhamento de duas condicionalidades. Entre elas estão a condicionalidade da frequência à escola – e volto a dizer que frequência à escola não é rendimento escolar. Sem dúvida, porém, nenhum programa de transferência de renda contribuiu para a maior frequência escolar, até porque, se a criança não tiver 85% de frequência, a família corre o risco de receber uma advertência e até de perder a bolsa.
De todo modo, não podemos aceitar que 571 mil crianças estejam fora da escola. Percentualmente esse valor é “pequeno”, mas, quando se vê o universo de crianças fora da escola, o número é inaceitável, sobre tudo nessa faixa de 6 a 14 anos. Já é de longa data que está posto na Constituição e no Plano Nacional de Educação que a escola é obrigatória, tem que ser ofertada e tem de se garantir a frequência e o sucesso escolar. Então, é inaceitável que se registrem números tão elevados.
O Programa de Transferência de Renda impactou na frequência escolar e no melhor acompanhamento da saúde da criança. Mas temos muitos depoimentos de quem trabalha nos municípios segundo os quais é comum que famílias recebam o benefício, a criança frequente a escola, a criança cumpre o calendário vacinal, faça o acompanhamento de saúde e, ainda assim, trabalhe. Então, para o trabalho infantil o impacto do programa de distribuição de renda não foi o desejável e nem o esperado. Em nossa avaliação, há uma coisa mais grave: o Programa de Transferência de Renda não contribuiu para que as famílias tivessem uma compreensão sobre o trabalho infantil, e o poder municipal também se omite em relação a ele. A família pode receber a transferência de renda por uma situação de pobreza e manter a criança no trabalho infantil. E o município não precisa cofinanciar, porque existe o financiamento do governo federal para os chamados serviços socioeducativos. Então, o governo municipal não identifica e não reconhece que há trabalho infantil, ou seja, não faz esse cofinanciamento. Enquanto isso, o Programa de Transferência de Renda está aí, cobrindo mais de 14 milhões de famílias. É muito preocupante, porque esse programa deveria impactar diferentemente no dia a dia das crianças.
Em que estados é possível perceber o predomínio do trabalho infantil?
Nos três estados do Sul os percentuais de trabalho infantil são elevados, estão acima da média nacional. As regiões Sul e Norte, de acordo com os dados do último censo, são as que têm maior incidência do trabalho infantil. Então, o Nordeste apresentou realmente resultados positivos, embora a situação ainda seja grave, mas a diferença de percentual da região Norte para a região Sul é de 0,1%.
Como se tem uma densidade populacional muito maior no Sul, o percentual fica mais elevado do que no Norte. No Sul essa situação precisa ser ressaltada, porque se têm mais desenvolvimento econômico, mais escolas e os percentuais de trabalho infantil são muito elevados.
Como avalia o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA?
Este Estatuto é um marco, apesar de ainda não estar plenamente implementado. Defendemos que um dos artigos – o de n. 248 – seja imediatamente revogado. Ele trata da vinda de adolescentes de outras comarcas, e a família que busca ou que recebe esse adolescente tem um prazo de cinco dias para informar a autoridade legal sobre a guarda dessa criança, que irá prestar serviços domésticos. Esse artigo é um claro incentivador do trabalho infantil, e isso se agrava mais porque o Brasil, em 2008, aprovou um decreto que define o trabalho infantil doméstico como uma das piores formas de trabalho.
Esse artigo está na contramão, sobretudo porque o trabalho infantil doméstico, como todos sabem, é oculto, de difícil fiscalização. Essa é uma das formas de trabalho que mais traz prejuízos para o rendimento escolar, porque a jornada é atenuante; muitos não têm nenhum descanso semanal; em muitos casos a jornada se estende, porque o trabalho é quase que ininterrupto. Em alguns o adolescente frequenta a escola, mas ele chega exausto para acompanhar as aulas; ele não tem como preparar as tarefas.(Com o Brasil de Fato/Irã News)
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