EUA: o horror em política externa



O debate sobre política externa entre Obama e Romney, segundo o professor de Assuntos Internacionais da Universidade de Pittsburgh Michael Brenner, foi a figuração do horror. Uma disputa entre quem mete mais medo ao mundo, quem mente mais ao povo estadunidense, quem omite mais os verdadeiros interesses de seu país. Veja no original em Counterpunch aqui e na tradução (revista) de Vila Vudu a seguir.

“A verdade é que o Irã foi declarado estado pária nos EUA, e está sob sanções pesadíssimas, apenas porque perdeu um prazo no processo de apresentar documentos à Agência Internacional de Energia Atômica, AIEA, documentos que, embora com atraso, foram apresentados e considerados regulares. É uma espécie de caso AL Capone (que os EUA condenaram por evasão de impostos –  não por seus muitos crimes de assassinato, extorsão, jogo, tráfico etc.) ao contrário –, porque o Irã jamais foi acusado de outro ‘crime’ além do ‘crime’ de ter atrasado a entrega de alguns documentos.

Por tudo isso, por que os cidadãos estadunidenses nos deveríamos dar por satisfeitos com um falso debate sobre ‘táticas’ para derrotar um regime suposto-bandido, suposto-criminoso, suposto-hostil e suposto perigosíssimo?”
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O que se aprendeu do debate entre candidatos à presidência dos EUA, sobre política exterior? Nada de específico, nada que tivesse qualquer conteúdo ou substância. A China nem sequer foi lembrada durante a primeira hora de debate. Não surpreende – por três razões. São debates mais para apresentação ‘coreografada’ de candidatos, que ocasião para declarações ponderadas (sequer para declarações sinceras!) das posições e ideias de cada um sobre questões internacionais. 

As palavras são usadas para projetar imagens que ressoem entre os eleitores, ou para ‘ganhar pontos’, não para ilustrar, para iluminar ou para persuadir pela inteligência. E assim se torna absolutamente impossível tratar, nas circunstâncias desses debates-circos televisionados, com alguma consistência, dos problemas complexos, das complexíssimas negociações e dos reais perigos aos quais está necessariamente exposto quem se proponha como única “potência mundial indispensável”.

Essa tendência é ainda mais reforçada, nas eleições de 2012, pela evidência de que nenhum dos candidatos sente-se confortável no trato de assuntos internacionais. Os saberes de Mitt Romney, nessa especialidade, cabem em meia casca de noz; só repete clichês, o que é sinal sempre eloquente de falta de capacidade para tratar temas complexos, baixa inteligência ou desinteresse – e, isso, apesar de já se estar preparando para ser presidente há, no mínimo, seis anos. Dizer que a Rússia seria a maior ameaça que pesa hoje contra os EUA é coisa de cabeça petrificada, que parou no tempo há 30 anos, no mínimo.

Quanto a Barack Obama, o tempo que habitou a Casa Branca deu-lhe a experiência de sobreviver a  quatro anos cheios de surpresas e novidades, mas deixou-o absolutamente sem projeto estratégico ou qualquer noção ponderada do que sejam, hoje, os interesses dos EUA. Obama é especialista em escapar, com ginga, dos golpes. Assim prossegue, saltitando sobre a superfície das relações internacionais dos EUA.

Também assim Obama reproduz o velho padrão das elites políticas estadunidenses, inigualáveis, no planeta, quando se trata de não ver e de ocultar os fracassos estadunidenses (Iraque, Afeganistão), sempre à procura de estrada que não leve a lugar algum, onde as mesmas elites consigam implantar fantasias e delírios novos ou requentados, cujo palavreado novidadeiro mascara a nenhuma novidade e o nenhum rumo (para hoje, inventaram a Guerra Global ao Terror); sempre impulsivas, aquelas elites, convidando para alguma próxima guerra (Irã); sempre cegamente confiadas, aquelas velhas elites políticas, na fé cega de que os EUA “excepcionais” cumprem destino traçado por Deus e sempre liderarão o mundo.

Nem Obama nem Romney preocuparam-se com oferecer qualquer detalhe de precisão, qualquer qualificação, qualquer nuance crítica – nem sequer alguma nuance explicativa – desse simulacro de visão histórica da história dos EUA que ensina(ria) que os EUA “devem” governar o mundo. Obama, no “Discurso do Estado da União”, em janeiro de 2012, anunciou, sem qualquer atenção aos fatos, que “America is back!” [Aproximadamente “os EUA voltaram ao jogo!” Foi frase cunhada nos governos Reagan (1981-1989) (NTs)]. 

Esperava, com o anúncio, estabelecer para sempre o seu próprio reinado indiscutível, “rei do pedaço”, depois de vencer algumas escaramuças com gangues rivais em becos pelo mundo, todos bem distantes de Washington. E assim continuamos, os EUA, a fazer exatamente a mesma coisa, disputando escaramuças pelos becos do mundo, sempre contra adversários pobres, até hoje.  É exatamente o que estamos fazendo hoje. E nenhum dos candidatos soube dizer sequer uma palavra sobre o quanto essa movimentação sem propósito nem rumo, sempre bélica, arranha o status e compromete a influência que os EUA tenham (se ainda tiverem) no resto do mundo.

Obama jamais diz palavra, tampouco, sobre o que o tal “excepcionalismo” significa em termos de mais sacrifícios para o povo dos EUA e outros povos, sobretudo quando seu governo cogita de novas intervenções do Oriente Médio Expandido. Jamais diz palavra, silêncio absoluto, sobre o quanto os estadunidenses teremos ainda de pagar por tantas guerras.

Romney, por sua vez, zomba do presidente pelo suposto pecado mortal de considerar a possibilidade de negociar com governos mais fracos (no caso presente, com o Irã) e dá seu espetáculo preventivo de músculos & armamento pesado, e fala de como tem planos para fazer & acontecer contra a China. Mas não diz palavra sobre o $1,2 trilhão do Tesouro dos EUA, bem guardado nos cofres chineses; finge que não existem.

Obama estava obrigado a não dizer mais do que o mínimo do que poderia ter dito, porque ainda carrega a responsabilidade de conduzir as relações externas dos EUA por, no mínimo, mais três meses. Por isso, teve de evitar respostas específicas sobre questões hoje em curso, o que se pode entender.

Mas… e Romney?! Romney deu-se por liberado de qualquer responsabilidade presente ou futura. Sentiu-se livre para dizer o que lhe viesse à cabeça. Sentiu-se livre para criticar Obama por uma suposta disposição para negociar diretamente com os iranianos. Nem sequer pensou, por um segundo, que qualquer ato do governo Obama nessa direção abriria vasta avenida para negociações futuras, que muito beneficiariam, também, se algum dia acontecerem, algum possível governo Romney.

O que, nesse ou em qualquer outro mundo, levaria alguém a acreditar que o que sai pela boca de Mitt Romney quando fala em público representaria alguma convicção refletida, se Romney é homem que se contradiz e se desmente, que se desdiz a cada frase, homem capaz de dizer absolutamente qualquer coisa e também o contrário?!

Romney tem mentalidade de investidor/batedor de carteiras, de bucaneiro sem lei, que, hoje, só tem um objetivo: entrar na Casa Branca. Romney porá suas fichas políticas em qualquer buraco que encontre com aparência de lhe render algum lucro, com vistas àquele seu único objetivo.

Bill Keller escreveu na 2ª-feira, no The New York Times, antes do debate, sobre “o que Romney pode dizer, como comandante-em-chefe em que o país pode confiar”.[1] Aí está, precisamente aí, o xis do problema: para que o eleitor consiga saber se Romney algum dia poderia ser comandante-em-chefe confiável, o eleitor teria de ouvir manifestação clara, objetiva, do pensamento de Romney, não de suas qualidades de encenação. Atualmente, mesmo observadores supostamente astutos ignoram a diferença entre as duas coisas.

Um prenúncio dos verdadeiros sentimentos de um candidato são os conselheiros de que ele se cercou. Romney optou por cercar-se de todo o pacote de neoconservadores que Donald Rumsfeld, antes, oferecera a Rick Perry. São os sócios fundadores da gangue que governou os EUA durante o governo Bush, a mesma gangue que arrastou o país à tragédia e à ruína no Iraque. Com efeito, Romney passou o final de semana trancado com Dan Senor seu principal mentor político de campanha. Senor foi porta-voz de L. Paul Bremmer III na “Zona Verde”, conhecido então como possível sucessor do “Baghdad Bob” e por seus supostos vastíssimos conhecimentos de “política exterior”.[2]

Mas há também razão mais profunda que explica o modo vicioso como toda a campanha eleitoral e os dois candidatos tratam das grandes questões internacionais.

Os dois candidatos partilham a mesma idêntica inabalável certeza de que os EUA devem continuar a agir, pelo mundo, como se fossem a última e melhor esperança para a salvação da humanidade. Porque creem nesse postulado de fé, os dois candidatos dispensam-se do dever de dizer coisa com coisa aos cidadãos e dispensam-se, inclusive, do dever de dizer claramente quais, afinal, seriam os tais “interesses dos EUA” cuja ‘defesa’ tanto custa, em vidas e em dinheiro, ao povo dos EUA. 

Tampouco se sentem obrigados a conciliar aqueles seus tais ambiciosíssimos interesses, apresentados aos eleitores como se fossem interesses dos EUA, com os limitadíssimos recursos do país. Nem dão qualquer atenção à urgente necessidade de reaprender, para voltar a usá-las, as artes da diplomacia. São artes absolutamente indispensáveis a quem busque a paz e a reconciliação, muito mais que guerras sem fim, miséria sem fim para os norte-americanos e degradação diária, continuada, do mais valioso patrimônio que os EUA algum dia tiveram para mostrar ao mundo: o prestígio da democracia estadunidense e alguma autoridade moral.

Pois nenhum dos dois candidatos, no debate de deu qualquer sinal de qualquer atenção à dura nova realidade dos EUA. Provavelmente entendem que dizer coisa com coisa e não mentir tão vasta e completamente seria suicídio eleitoral. Além disso, nenhum dos dois refletiu, de fato, sobre qualquer coisa, sobre implicações do que digam ou façam; nem, muito menos, cuidaram de oferecer qualquer pensamento mais sólido aos cidadãos.

Então lá ficaram, os dois candidatos… metendo goela abaixo dos eleitores um amontoado de rematadas tolices; ou só frases feitas, pensadas, exclusivamente, para nada dizerem; e nenhuma conclusão de coisa alguma. Disso se fez o debate de ontem: de nada. Fez-se, sobretudo, de nenhum respeito decente ao pensamento e à inteligência dos cidadãos dos EUA.

É revelador também que o debate tenha começado com conversa sobre o ataque ao consulado dos EUA em Benghazi, Líbia. A questão era encontrar culpados. É fazer da política e da guerra tema de romance ou novela, tratar assuntos de guerra e política como se fossem ficção de entretenimento. Criar suspenses, atrair audiências. Ora essa! 

Os EUA meteram-se em guerras, literalmente, em todos os pontos mais violentos do mundo, os quais, se já não eram violentos, tornaram-se violentos depois de os EUA armados aparecerem por lá, invadindo e ocupando. Nessas circunstâncias, é claro que estadunidenses correm riscos, podem ser feridos e mortos. Por que alguém esperaria que os estadunidenses que estivessem nos últimos tempos em Benghazi, Líbia, devessem ter ou tivessem algum tipo de imunidade? Não temos imunidade alguma. Muitos estadunidenses estão morrendo nas guerras em curso. Aí está uma verdade clara, que o debate não trouxe ao palco. Ao contrário: o debate ajudou a escondê-la.

São profundas as implicações práticas de insistir no excepcionalismo dos EUA. No caso do Irã, por exemplo. O fracasso (muito provável) das sanções como instrumento para forçar a República Islâmica a ajoelhar-se e render-se ao que os EUA desejam já praticamente sem dúvida alguma arrastará os EUA para mais guerras – uma guerra cujas repercussões farão Iraque e Afeganistão parecer incidentes sem importância (exceto, como sempre, para os mortos e suas famílias).

Pois nem a ameaça de nova guerra e guerra terrível que pesa sobre os EUA foi suficiente para que um – um só dos candidatos, que fosse, um, pelo menos! – introduzisse no debate o tema da paz: os dois candidatos só fizeram repetir e repetir frases feitas sobre “a ameaça iraniana” e o risco de “os mulás” virem a ter bomba atômica. O que se viu no debate foi absoluta concordância a favor de mais guerra – embora haja diferenças “espetacularizadas”, quase que só cenográficas, nas táticas.

É compreensível que assim seja, porque essa foi a visão construída e divulgada para os EUA pela máquina de propaganda dos dois presidentes – de Bush e de Obama –, já há uma dúzia de anos. Essa máquina de propaganda domina completamente a imprensa, todos os veículos e meios, os centros de estudos e pesquisas, os think tanks e os políticos em geral. 

A partir dessa unanimidade da opinião, ninguém jamais compreenderá que ela se baseia em suposições de validade duvidosa. Num debates políticos sério entre candidatos a presidente, elas têm de ser pelo menos postas sob foco. Depois do desastre que foram as avaliações equivocadas e manipulações intelectuais que levaram os EUA para o Iraque, será irrealista esperar um exame mais honesto dos alvos e propósitos que nos levam a essa corrida pra a guerra? O que se viu no debate de ontem prova que essa pergunta permanece irrealista.

Os dois candidatos concordavam 100% com a ideia de que o Irã ‘é’ estado criminoso. Esse juízo, entretanto, não se baseia em qualquer definição de criminalidade internacional. Até hoje, o Irã só foi acusado e condenado por uma infração técnica de algumas das obrigações que teria como signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear, quando o Irã deixou de informar a Agência Internacional de Energia Atômica sobre uma etapa de suas atividades nucleares – e eram atividades civis. (Logo depois, isto foi feito.) Este é o  caso. 

O TNP não estipula proibição alguma de enriquecimento de urânio em qualquer nível, uma atividade considerada parte integral do ciclo civil ao tempo em que o Tratado foi assinado. Ele não foi alterado. Na verdade, o Irã foi declarado nação pária num procedimento administrativo. A dura analogia é com Al Capone sendo condenado por não pagar impostos, não por assassinato, extorsão etc., com a diferença de que o Irã não cometeu crimes análogos, só “evasão fiscal”.

Assim, deveríamos nos dar por satisfeitos com um faux débat sobre ‘táticas’ para pôr de joelhos um regime supostamente bandido e hostil? Ou deveríamos buscar o que pode ser feito para evitar uma guerra terrível no sentido de alcançar acordos em termos que satisfaçam nossas preocupações razoáveis e as preocupações razoáveis do Irã com segurança? Ninguém que acredite  que os líderes responsáveis da República estão comprometidos em ser explícitos sobre por que e para que levar de novo o páis à beira da guerra pode previsivelmente estar satisfeito com o debate de ontem à noite. ************************************



[1] 22/10/2012, NYT, em http://www.nytimes.com/2012/10/22/opinion/keller-presidential-mitt.html?_r=1&ref=billkeller

[2] Há matéria sobre ele, de setembro, em http://videocafe.crooksandliars.com/heather/mrs-greenspan-gives-bushs-baghdad-bob-dan (Com o Mirante)

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