História secreta das relações entre Cuba e os EUA revela plano de Kissinger para bombardear Cuba por causa da sua luta contra o Apartheid
Amy Goodman (Democracy Now)
Amy Goodman, de Democracy Now, entrevista os autores de um livro que revela aspectos secretos e até agora não documentados da história das tensas relações EUA/Cuba. História que inclui um crime de Estado de dimensão sem precedentes (mais de 50 anos de bloqueio) e numerosos outros crimes, uns tentados, outros realizados.
No seu novo livro, Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations between Washington and Havana, os autores Peter Kornbluh e William LeoGrande recorreram a documentos recentemente tornados públicos para revelar a história secreta do diálogo entre os EUA e Cuba.
Entre as revelações estão pormenores de como o então Secretário de Estado Henry Kissinger considerou lançar ataques aéreos contra Cuba, depois de Fidel Castro enviar tropas para apoiar os guerrilheiros independentistas em Angola, em 1976.
Nos anos que se seguiram, emissários ultra-secretos dos EUA, incluindo o antigo Presidente Jimmy Carter e o Prémio Nobel Gabriel García Márquez, trabalharam para regularizar as relações com Cuba.
O lançamento deste livro surge numa altura em que Raúl Castro poderá participar pela primeira vez na Cimeira das Américas do próximo ano, no Panamá. Cuba denunciou recentemente a Administração Obama por prolongar por mais um ano um embargo que já dura há mais de 50 anos, num acto que quase passou despercebido, em Setembro.
Transcrição da conversa:
Nermeen Shaikh: Um documento tornado público, citado no Back Channel to Cuba, permite conhecer um pouco da primeira sessão normal de negociações para desenvolver relações normalizadas entre os EUA e Cuba. Grande parte do livro baseia-se em documentos secretos que foram dados a conhecer recentemente.
Entre as revelações estão pormenores sobre o modo como o então Secretário de Estado Henry Kissinger equacionou lançar ataques aéreos sobre Cuba, depois de Fidel Castro ter enviado tropas para apoiar os guerrilheiros independentistas em Angola em 1976. Nos anos seguintes, emissários dos EUA ultra-secretos, incluindo o antigo presidente Norte-americano Jimmy Carter e o Prémio Nobel Gabriel García Márquez, colaboraram para normalizar as relações com Cuba.~
O lançamento do livro ocorre numa altura em que Raúl Castro se prepara para participar, pela primeira vez, na Cimeira das Américas do próximo ano, no Panamá.
No princípio deste mês, o ministro dos estrangeiros do Panamá foi a Havana para, pessoalmente, convidar Raúl Castro para participar, pela primeira vez. O Presidente Obama ainda não confirmou se assistirá às conversações.
Amy Goodman: Entretanto, Cuba denunciou a Administração Obama por prolongar o embargo que dura há mais de cinquenta anos. A Casa Branca autorizou o embargo comercial por mais um ano, num acto que passou quase despercebido, em Setembro. Perante a Assembleia-geral das Nações Unidas, o Ministro dos Estrangeiros cubano, Bruno Rodriguez, afirmou que as restrições dos EUA sobre Cuba pioraram no tempo do Presidente Obama.
[Declaração gravada] Bruno Rodríguez: o Departamento de Estado voltou a incluir Cuba na sua lista unilateral e arbitrária de estados que patrocinam o terrorismo internacional. O seu verdadeiro objectivo é aumentar a perseguição das nossas transacções financeiras internacionais em todo o mundo e justificar a política de bloqueio. Sob a actual administração, têm havido uma crescente tensão aplicada sobre os territórios para além do bloqueio, com uma notável e inaudita ênfase sobre as transacções financeiras, através da imposição de multas de muitos milhões sobre instituições bancárias de países terceiros.
Amy Goodman: Para mais informações, juntam-se-nos Peter Kornbluh e William LeoGrande, autores do novo livro Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations between Washington and Havana. Peter Kornbluh dirige o Projecto de Documentação sobre Cuba no National Security Archive na Universidade de George Washington. E William Leogrande é professor de Instituições Governamentais na American University. Podemos ler a introdução ao seu novo livro na página democracynow.org.
Também escreveram um artigo que está agora na página do The Nation, intitulado “Seis Lições para Obama Melhorar as Relações com Cuba : O Presidente sabe que a política dos EUA tem sido um fracasso. Eis como poderá mudar o rumo dos acontecimentos no pouco tempo de que ainda dispõe.”
Bom, lá iremos, mas, Peter Kornbluh e William LeoGrande, bem-vindos novamente ao Democracy Now! Peter, queria começar por ti e pelos documentos que tens, que nunca foram revelados antes, mostrando mais uma vez quão perto os EUA estiveram [da guerra], que os seus líderes estavam dispostos a arriscar a paz mundial para atacar Cuba. Fala-nos de Henry Kissinger.
Peter Kornbluh: Henry Kissinger tem o mérito de ter tomado de facto a iniciativa de chegar a Fidel Castro através de um emissário secreto, enviando-lhe uma nota manuscrita que dizia: “Deveríamos tentar melhorar as nossas relações, vamos dar início a um mecanismo secreto para começar as conversações.”
Isto aconteceu no Verão de 1974. E tiveram então lugar uma serie de conversações, culminando numa reunião extraordinária de três horas no Hotel Pierre, aqui em Nova Iorque, em Julho de 1975. Mas, sabe, os EUA sempre quiseram um compromisso por parte de Cuba, fosse na sua política externa, fosse na política interna, para poderem entender-se com os EUA.
E Fidel Castro tinha um pedido de Agostinho Neto, em Angola, para apoio contra as guerrilhas de direita apoiadas pela CIA. Castro enviou tropas para Angola. Furioso, Kissinger temia que um “zé-ninguém”, como chamava a Fidel Castro em reuniões com Gerald Ford, conseguisse de facto estender o seu poderio militar a outro continente e anular o xadrez que Kissinger planeara para a Guerra-Fria nesse continente.
E então ordenou estes planos de contingência, que agora vêm nas notícias e na página do National Security Archive. O nosso livro, Back Channel to Cuba, revelou a história desses documentos. E eram planos de contingência muito poderosos para ataques aéreos, colocação de minas nos portos de Cuba, talvez um bloqueio naval.
Na Sala Oval, Kissinger disse a Ford: “Acho que temos de dar cabo dos cubanos, corrê-los de África. Talvez tenhamos de esperar até depois das eleições de 1976”. É claro que Ford, felizmente, perdeu as eleições de 1976.
Amy Goodman: E veio Carter. Fala-nos do que aconteceu a esses planos.
Peter Kornbluh: Bem, Carter com certeza não pegou nesses planos. Ele tinha uma perspectiva completamente diferente das relações com Cuba, e todos os outros países com os quais não tínhamos relações próximas, com os quais tínhamos relações hostis.
De facto, ele disse-nos, a Bill LeoGrande e a mim, quando o entrevistámos, que tinha uma abordagem mais extensa: apostar no diálogo, porque relacionarmo-nos bem com os estados inimigos seria muito preferível a hostilidades militares.
E portanto também tentou, retomou onde Kissinger tinha abandonado as tentativas de normalizar as relações, e iniciou uma série de reuniões secretas e conversações com os cubanos, cujos pormenores são extensamente revelados neste livro.
Nermeen Shaikh: William LeoGrande, podes dizer-nos de que modo tiveste acesso a estes documentos? Porque é que foram revelados agora? Quanto tempo levaste até teres acesso a eles? E de quantos documentos estamos a falar, a quantos documentos tiveste acesso?
William LeoGrande: Bem, creio que, no decurso da investigação que fizemos para este livro, vimos literalmente centenas e centenas de documentos tornados públicos. Muitos foram tornados públicos como resultado do trabalho de Peter no National Security Archive, porque este arquivo revelou-se um instrumento para levar o Governo dos EUA a tornar públicos documentos que teria preferido manter classificados, mediante o Freedom of Information Act.
Estes documentos, em particular, e alguns outros que foram tornados públicos há algumas semanas, documentavam bem esta história desconhecida. Todos conhecemos os 50, 55 anos de hostilidade entre Cuba e os EUA. O que a maior parte das pessoas não sabe é que todos os presidentes, desde Eisenhower, negociaram com Cuba um ou outro assunto.
Durante os anos de Kissinger e Carter, era sobre a normalização das relações. Noutros anos, sobre assuntos menores, mas não menos importantes, como chegar a um acordo de paz no sul da África. E estávamos determinados a desenterrar essa história. Chegar a esses documentos foi a chave para pode fazê-lo.
Nermeen Shaikh: E quantas vezes tomou o Governo cubano a iniciativa de abrir um diálogo com os EUA, nesse mesmo período que vocês consideraram?
William LeoGrande: O que de facto é fascinante é que os cubanos tomaram repetidamente a iniciativa para tentar melhorar as relações. Essencialmente, cada vez que uma nova administração tomava posse, Fidel Castro tinha qualquer espécie de iniciativa. Por vezes, era privado, através de emissários em privado. Outras vezes, era público; em 1964, por exemplo.
Os Cubanos esforçaram-se repetidamente, o que nos sugeriu que estavam realmente interessados em tentar normalizar as relações com os EUA, embora não em quaisquer termos. Como referiu o Peter, Cuba tem a sua própria política externa, tem o seu modo de fazer as coisas, e nunca quis fazer concessões maiores na sua política estrangeira ou na sua organização política e social interna para ter melhores relações com os EUA.
Amy Goodman: Para o vosso relato das negociações que estavam a decorrer, mesmo as pessoas neste país não têm noção do número, das centenas de tentativas de pôr termo à vida de Fidel Castro. E contam a história de um negociador dos EUA, [James] Donovan, que por um lado negociava, e depois foi ludibriado pela CIA – podem explicar esta história? – para dar a Castro um presente que o matasse.
Peter Kornbluh: Sim, nós falamos desta história literalmente na primeira página do livro. James Donovan era um advogado de Nova Iorque, muito famoso por organizar uma troca de prisioneiros com a União Soviética. E John F. Kennedy escolheu-o para, primeiro, obter a libertação dos prisioneiros da Baía dos Porcos, em troca por mais de mil prisioneiros e suas famílias, e depois a CIA voltou a enviá-lo para, de certa forma, conseguir a libertação de três agentes da CIA que Fidel mantivera nas suas prisões e aí conseguir uma troca de prisioneiros.
E ele estava a trabalhar para conseguir a confiança de Fidel Castro. Fazia diplomacia a correr, a ir e vir de Miami, e trouxe-lhe toda a espécie de presentes, incluindo um fato de mergulho, equipamento, relógio, snorkel, etc. E quando um departamento da CIA, o de Acção Executiva, que era o eufemismo para o departamento de assassínios da CIA, descobriu que ele ia levar este fato de mergulho, congeminaram um plano para pôr veneno no fato. Tinham um veneno em particular para o snorkel, um veneno diferente que…
Amy Goodman: Iam pôr tuberculose no snorkel?
Peter Kornbluh: Sim, iam pôr tuberculose no snorkel, creio eu, e um determinado fungo no fato de mergulho. E Donovan tinha estes manipuladores na CIA, que gostavam dele e que queriam, primeiro, negociar a libertação dos seus colegas da CIA que estavam presos e, segundo, sabes, possivelmente fazer progressos nas relações com Cuba.
E, basicamente, disseram-lhe “nós vamos manter este fato connosco, para que outras pessoas na CIA não possam chegar-lhe e contaminá-lo.” E, portanto, essa era a história de abertura para o braço de ferro entre certas pessoas no curso destes anos no Governo dos EUA que realmente se concentraram em melhorar as relações, e o tipo de radicais que mais não queriam que assassinar Fidel Castro, começar uma contra-revolução em Cuba, e basicamente lançar o poder dos EUA sobre a Revolução Cubana.
Tradução: André Rodrigues (Com odiario.info)
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