As meninas da Guatemala
Cristina Burneo Salazar
Estavam vacinados. Eram 807 crianças e adolescentes em novembro. Viviam em San José Pinula, na periferia da Cidade de Guatemala. O Hogar Seguro Virgen de la Asunción é uma combinação de prisão, orfanato e albergue, e nele cabem apenas 400 pessoas. Não é um centro de acolhida como se esperaria e seu funcionamento assemelha-se a correspondentes do século 19 que, ao não considerar as crianças como seres humanos plenos, reduziam seus cuidados ao mínimo e concentravam-se nos castigos às pequenas, desprotegidas e abandonadas.
Na história da pobreza e da indigência a qual crianças são maltratadas por Estados, as meninas vivem em um estado particular de indefesa, que as expõe a morte, ou a uma vida ainda mais aterradora do que a morte.
Nómada, um noticiário digital guatemalteco, descreveu assim a população do abrigo: “Alguns foram recrutados pelas gangues para o roubo, a extorsão ou o assassinato. Outros cometeram a insolência de pertencer a uma família que os abandonou na rua, ou a um pai que agredia até um vizinho chamar a polícia. Há uma rede que as prostitui, sendo meninas. Há pais que não souberam o que fazer quando viram que seu filho teria capacidades especiais. Outros nasceram ali mesmo, filhos de adolescentes estupradas por seus companheiros ou professores, ou trabalhadores da Secretaria de Bem Estar Social do Governo da República da Guatemala”. Um abrigo para os esquecidos, nascidos sob o signo terrível da violência. A mesma violência que os devolvia ao albergue como um maldito bumerangue.
Karen Ramos trabalha neste caso. Explica: “Estranhamente, na noite de 7 de março os monitores abrem as portas do albergue para que as crianças saiam. ‘Escapam’ entre 50 e 60. Nas condições que essas crianças viviam, supostamente será desatada alguma revolta. Ao recapturá-los, os separam em grupos de homens e mulheres, e 50 meninos são trancados sem direito de ir ao banheiro. Eles têm de urinar no mesmo quarto onde passarão a noite toda. Os jovens dizem que foram presos no momento em que as meninas eram estupradas. Também temos a versão de que a polícia teria as chaves dos quartos. Isto é um crime. Elas estavam em um quarto trancado com chave que foi incendiado”.
Concordo com Karen em que a narrativa construída para esse caso é uma narrativa de reclusos, não de crianças em estado de vulnerabilidade social. “Se escaparam, os recapturamos”. “Se estão em um centro de reclusão não podem escapar, é como se isso se tratasse de uma prisão mesmo. Sara Oviedo, relatora da ONU em questões de infância, visitou este centro e o comparou com as prisões do holocausto. Era preciso fechar este espaço. Agora estamos esperando o informe do Congresso, mas há muitos indícios de que o incêndio foi provocado”.
As meninas eram estupradas, obrigadas a abortar ou forçadas a ter os bebês dos seus violadores. Haviam sido encarceradas em um lar que supostamente deveria protegê-las. Falei também com Alba Marina Escalón, artista e tradutora guatemalteca que construiu um altar para as meninas. Alba foi ao protesto do sábado, dia 11 de março, na Praça da Constituição.
Entre defensores dos Direitos Humanos, simpatizantes e testemunhas, há várias hipóteses, e todas desembocam em uma certeza: as 42 meninas falecidas foram assassinadas, não morreram em um acidente. Trata-se de 42 feminicídios simultâneos. Os bombeiros foram notificados meia hora depois de desatado o incêndio. Uma eternidade. Uma vez na porta, não os deixavam entrar, e um quarto ardia em chamas com dezenas de meninas dentro. Era o 8 de março.
É possível que as meninas tivessem sido trancadas em um lugar onde havia gasolina, como um ateliê ou algo parecido. Há rastros de combustível nos corpos, dizem, como houvessem sido pulverizados. O incêndio aconteceu pelas denúncias das meninas que sugeriam que ali havia uma rede de prostituição infantil.
Entre as sobreviventes, há nove meninas grávidas. Nove. Seguimos pensando que a posição provida defende algo quando são justamente essas vidas em estado de vulnerabilidade as que devem ser protegidas? O quê responderiam os governos dos nossos países diante disso?
“Iniciaram os funerais e enterros. Não se sabe ao certo se as meninas que morreram também estavam grávidas. Sinto que é um aborto forçado em massa provocado pelo Estado, assassinaram essas meninas para se desfazerem dos bebês frutos de estupros”, afirmou Alba. Sua interpretação me estremece: é um extermínio.
Também é uma contradição sem nome. Umas semanas antes havia chegado a águas internacionais diante da costa guatemalteca o barco Women on Waves (Mulheres nas Ondas) para inspecionar abortos seguros a mulheres criminalizadas por abortar. O barco teve de ir embora pois estava em risco; tanto o Congresso quanto o Exército da Guatemala rechaçaram sua presença.
A posição das instituições do Estado na Guatemala é deixar morrer suas mulheres, como explica Gabriela Miranda, e assim proíbe que se lhes deem assistência médica. Há meninas que terminam em albergues onde são estupradas, e quando ficam grávidas são submetidas a abortos desumanos ou obrigadas, de maneira igualmente desumana, a manter a gravidez. Quando chega assistência internacional, as proíbem de receber uma atenção digna.
Uma moça muito jovem decide dar seu testemunho para a televisão: “nos fizeram muito mal. Nos batiam, estupravam. Me fizeram abortar aos 13 anos: minha menina foi tirada à força. Meu outro filho tem 3 anos e não o conheço. Nos davam injeções para pararmos de reclamar. Queríamos nossas mães e não deixavam, enquanto isso nos estupravam”. Esta menina foi obrigada a abortar de maneira brutal, mas jamais a permitiram abortar gratuitamente e a salvo. Teremos de recordar esses testemunhos e dar-lhes todo o valor que têm: na Guatemala houve um campo de tortura e tormentos para crianças – e o Estado sabia disso.
Este testemunho coincide com outro registrado por Alba perto do Parque Central. Assim me contou: “Chegou uma mocinha com seu tio e começaram a falar. Ela esteve naquele lugar por 3 meses e conhecia algumas meninas assassinadas. Nos contou sobre os maus-tratos: são mantidas dopadas para que durmam e não se rebelem.
Quando perguntamos se as violavam, ficou calada e abaixou a cabeça”. A menina disse também que no albergue havia sete setores. O setor 1 era para os “pandilleros” (crianças que vinham de gangues de rua), 2 para migrantes, 3 para prostitutas, 4 para os estupros, e assim por diante. Dividiam as crianças em grupos para exploração criminosa. Havia um setor especial para as meninas que haviam sofrido abuso sexual, mas ali dentro seguiam sendo violadas.
Por isso denunciamos, porque esta violência é pavorosa, porque os Estados, as instituições e o poder se assanham cada vez mais com as meninas e mulheres, e nessa desigualdade de forças sempre estará, no fundo, a morte. Por isso mesmo houve a revolta das meninas, como diz o comunicado da rede Tzk’at, de curandeiras ancestrais e feministas comunitárias de Iximulex: “as meninas se agruparam porque denunciavam maus tratos, falta de amor, falta de comida, doenças, violência sexual, tentativas de suicídio e esquecimento da sociedade. Se agruparam porque queriam viver, porque todavia têm sonhos como outras meninas no mundo que desfrutam de liberdade”.
Fica o restante das meninas que sobreviveram ao incêndio. Esta mesma rede demandou seu resguardo. Estas meninas, que todavia poderiam sonhar, voltarão um dia a uma sociedade que fez com que soubessem que não eram queridas, as esqueceu delas ou prefere vê-las mortas.
Quando falamos de despenalização do aborto, de proteção à infância, estamos falando de salvar estas vidas da violência dos governos e dos indivíduos misóginos como demonstrou ser nesta tragédia o direitista Jimmy Morales, sujo secretário de bem estar social chegou a dizer que as meninas se rebelaram “porque não gostavam da comida”. Esse poder sinistro é agora uma sombra posta sobre todos os nossos países.
Afirmaram também que na data histórica de 8 de março, as meninas se rebelaram conhecendo seus direitos. “Não foi bem assim”, disse Karen Ramos. “Idealizou-se a narrativa destes assassinatos pela data do incêndio, o que não deixa de ter um sombrio valor simbólico”.
No incêndio das meninas acabou sendo reproduzido um feito macabro: o assassinato das 123 operárias têxteis em Nova Iorque em 1911. Elas também morreram queimadas trancadas na fábrica onde trabalhavam. Desperta também o incêndio onde morreu a escritora Zelda Fitzgerald em Ashville; internada em um hospital psiquiátrico, ela e outras oito mulheres morreram queimadas.
Algumas estavam amarradas às camas e outras tão sedadas que não conseguiram escapar. Sedadas como as crianças do abrigo na Guatemala. A história das mulheres queimadas em fogueiras, nas caças às bruxas, fábricas, hospitais psiquiátricos e etc. não são folclore. Hoje voltamos a confirmar esta realidade de maneira ainda mais dolorosa. A morte dessas meninas é considerada em muitos setores da velada sociedade guatemalteca como uma execução extrajudicial que vai sacudir a história do país e de todo o continente.
Pensamos que já não nos queimariam. Pensamos que podíamos cantar que “somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”, ou as netas das operárias, das loucas, das descartadas. Cantávamos faz dias em mais de 60 países. Mas se essas meninas foram queimadas, não poderão mais ter netas que cantem o mesmo que nós cantamos hoje.
Essa história da qual pensávamos ser sobreviventes vemos que hoje, através dessas meninas da Guatemala, tem outro lado, um lado sinistro. Essa força internacional que formou o 8 de março precisa abarcar, também, este duelo. Assim como foi internacional e regou com pólvora nossa força, assim também este duelo deve ser regado pelas cinzas, em memória delas. Nossa revolta é para continuarmos vivas.
Ao meio-dia do domingo (12), Karen Ramos afirmou, da Guatemala, segundo informação divulgada pela Comissão Nacional Contra Maus-tratos e Abuso Sexual Infantil (CONACMI): “o número de vítimas é de 58. Até esta madrugada faleceram 42: 19 no próprio abrigo e 23 em hospitais.
Dessas vítimas, apenas 30 foram reconhecidas. O resto aparece como XX e será requerido um exame de DNA. Entre as sobreviventes, 11 estão hospitalizadas, 4 foram levadas para receber tratamento nos Estados Unidos e 3 aguardam translado para o país do norte. Essas 3, junto com as 4 que já viajaram, estão estáveis mas têm o rosto desfigurado. Há dois casos de adolescentes que não vão ser procuradas por familiares e são da região de Baja Verapaz. Presume-se que devem haver mais casos como estes. 30 meninas foram entregues a familiares”.
(*) Cristina Burneo Salazar, equatoriana, é docente da Universidade Andina. Forma parte do movimento de mulheres do Equador e escreve narrativas de resistência sobre literatura e feminismo. Este artigo foi publicado no portal La Barra Espaciadora.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.
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(Com o Correio da Cidadania)
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