Povos indígenas na mira de um governo ilegítimo
Ana Mendes / Cimi
Povo Gamela na semana em que sofreram ataque
"O governo de Michel Temer vem colecionando momentos constrangedores em instâncias internacionais por não cumprir seus deveres constitucionais para com os povos indígenas."
Erika Yamada e Luís Donisete Benzi Grupioni (*)
O governo de Michel Temer vem colecionando momentos constrangedores em instâncias internacionais por não cumprir seus deveres constitucionais para com os povos indígenas. A repetida ausência de representantes do Ministério da Justiça em audiências e sessões que tratam de violações aos direitos indígenas em organismos internacionais como a ONU e a OEA tem imposto desafios para a diplomacia brasileira, que, diga-se de passagem, não tem se saído bem na defesa do governo, levantando questionamentos sobre o seu real compromisso com a agenda de direitos humanos.
O episódio mais recente de descaso ocorreu no 162º período de sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), realizado entre os dias 22 e 26 de maio em Buenos Aires, quando a CIDH atendeu ao pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em conjunto com a Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Plataforma Dhesca e outras 27 entidades indígenas, indigenistas e de defesa de direitos humanos, para a realização de uma audiência com representantes do Estado brasileiro que tratou da situação dos direitos dos povos indígenas no país.
O governo brasileiro foi representado por diplomatas do Itamaraty que justificaram a ausência de representantes do Ministério da Justiça e da Funai por dificuldades administrativas, em função da série crise econômica que o país atravessa. Foram, porém, contestados pelos representantes da sociedade civil, que afirmaram que a falta revelava o descaso e a não disposição para o diálogo por parte do governo Temer e de seus sucessivos ministros da Justiça – comprometidos com sua base parlamentar, fortemente composta por defensores do agronegócio e contrária aos direitos indígenas e de comunidades tradicionais.
A CIDH e a OEA têm analisado diversos casos de violações individuais e coletivas de direitos humanos de povos indígenas como os yanomami, os xukuru, os guarani kaiowá, os povos da Raposa Serra do Sol e outros. No entanto, esta foi a primeira vez que se realizou uma audiência para tratar da situação nacional dos povos indígenas, numa conjuntura de retrocessos institucionais que tem chamado a atenção da comunidade internacional.
Representantes indígenas da Amazônia e do Nordeste levaram ao conhecimento da CIDH diversas situações concretas de violações de direitos indígenas praticadas pelas três esferas de poder. Destacaram as violências praticadas contra comunidades indígenas em disputas territoriais, envolvendo chacinas e mortes, como o ataque ocorrido em abril aos gamela no Maranhão por fazendeiros e capatazes e que resultou em dezenove feridos, e a criminalização envolvendo agentes do próprio Estado, de lideranças indígenas que estão na luta pela defesa de seus direitos.
Para os peticionários, essas violações (assim como o avanço de ilícitos sobre os territórios e recursos naturais indígenas) se agravaram a partir do empoderamento de ruralistas e políticos com discursos anti-indígenas no governo Temer. Notadamente, criticaram a nomeação do até então ministro da Justiça Osmar Serraglio, defensor da proposta de emenda constitucional que visa impedir a demarcação de terras indígenas no Brasil e que, ao chegar à pasta, que tem a Funai sob sua jurisdição, afirmou que “terra não enche barriga”, deixando claro que tinha uma causa a defender.
As lideranças denunciaram também a grave ausência de interlocução do atual governo com representantes indígenas, quando sérias medidas administrativas e legislativas avançam em alta velocidade para retirar direitos consolidados.
Isso se deu, por exemplo, com relação à mudança do procedimento de demarcação de terras que confirmou os esforços para a paralisação de demarcações e cancelamento de áreas já reconhecidas; ao desmantelamento da Funai com cortes desproporcionais e injustificáveis de cargos e orçamentos que inviabilizam a aplicação de políticas voltadas à proteção das terras indígenas.
Comparado a 2015, em 2017 o governo reduziu cerca de 80% do orçamento da Funai para as ações voltadas a povos isolados e de recente contato, o que levou ao fechamento de diversas bases do órgão. Além disso, os peticionários denunciaram o cancelamento de todas as reuniões de 2017 e inviabilização dos trabalhos do Conselho Nacional de Política Indigenista; o avanço de projetos de lei que visam flexibilizar o licenciamento ambiental e abrir as terras indígenas para a exploração; e as autorizações administrativas de obras e empreendimentos que impactam as terras e a vida de povos indígenas sem sua consulta livre, prévia e informada.
Para a CIDH, ficou claro que os peticionários precisaram recorrer a essa instância internacional para solicitar um mínimo de diálogo respeitoso entre Estado e povos indígenas, e a ausência de representantes da Funai e do Ministério da Justiça convocados para o diálogo só comprovou a falta de compromisso do atual governo com suas obrigações constitucionais e internacionais de direitos humanos e a tentativa já enfraquecida do Ministério das Relações Exteriores em afirmar que no Brasil a democracia anda bem.
Os membros da CIDH mostraram preocupação com o agravamento da violência contra lideranças e comunidades indígenas, insistiram na obrigação de o Brasil investigar, punir responsáveis e prevenir atos violentos, bem como cobraram compromisso do governo em manter o marco constitucional dos direitos indígenas.
O relator do organismo para o Brasil, James Cavallero, solicitou aos representantes do Itamaraty que esclarecessem como o governo Temer pretende manter a proteção dos povos e terras indígenas com cortes no orçamento da Funai, que remete aos recursos disponíveis com os quais a Fundação contava há dez anos. Questionou, ainda, como o país tem realizado consultas aos povos indígenas diante da obrigação contraída pelo país ao ratificar a Convenção 169 da OIT, que impõe tal dever aos Estados nacionais.
O relator, porém, permaneceu sem resposta. Expressando-se em português, espanhol e inglês durante a audiência, a diplomacia brasileira não convenceu os presentes com afirmações vagas do compromisso do governo com os povos indígenas, seja no cumprimento de seus deveres constitucionais, seja no aprimoramento das políticas públicas voltadas a esse segmento da população.
O representante do Itamaraty apresentou dados no mínimo duvidosos ao falar, por exemplo, da redução do desmatamento por ação das instituições públicas quando dados oficiais demonstram que em apenas um ano (2015-2016) o desmatamento na Amazônia aumentou 29%. No Brasil, a ampliação do desmatamento, assim como do garimpo ilegal, está relacionada à indústria da grilagem de terras e do agronegócio e afeta diretamente as terras indígenas.
As lideranças indígenas presentes à audiência da CIDH também relataram a repressão que sofreram durante o Acampamento Terra Livre, em abril, quando 4 mil representantes indígenas de todo o país se manifestaram contra os retrocessos de direitos em curso e contra o aumento da violência e do racismo que sofrem em suas comunidades. O governo não se pronunciou sobre o assunto, mas parte da mídia nacional e internacional mostrou como a pacífica manifestação dos índios na capital da República foi agredida pelas polícias civil, militar e legislativa.
A distância entre o clima de normalidade propagado internacionalmente pelo governo e a realidade vivida no país vai se descortinando. Nesse esforço diplomático, a audiência na CIDH revelou, menos que um evento fora da curva, uma tendência nesses tempos sombrios.
Em recente avaliação do Brasil pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, quando o país foi sabatinado em sessão do Mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU), nenhum representante do Ministério da Justiça integrou a delegação brasileira em Genebra. Naquela sessão, um terço dos países mostraram preocupação a respeito dos povos indígenas e fizeram recomendações ao país para a garantia de direitos – como dar sequência às demarcações de terras indígenas e consultar os povos indígenas quando projetos ameaçarem seus territórios e modos de vida. O Ministério da Justiça foi o grande ausente na delegação brasileira presente em Genebra, cabendo à ministra dos Direitos Humanos fazer declarações vagas sobre o tema.
Nesse diapasão, seguem as incertezas quanto ao real compromisso do governo Temer em cumprir a Constituição Federal e demarcar terras indígenas, alimentando o aumento da violência, inclusive institucional, contra os povos indígenas, agravada por sua incapacidade de dialogar com os movimentos sociais.
Ao recém-empossado ministro da Justiça, Torquato Jardim, se impõe o desafio da retomada do diálogo com os índios e de fazer o dever de casa para dar prosseguimento aos processos de reconhecimento territorial indígena. Sem isso, a diplomacia brasileira seguirá escorregando entre falácias e a dura realidade dos fatos.
(*) Erika Yamada é relatora de direitos humanos e povos indígenas da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil; e Luís Donisete Benzi Grupioni é secretário-executivo da Rede de Cooperação Amazônica (RCA).
(Com a CIMI/Le Monde Diplomatique)
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