O "Super Moro" não quer nem ver...
"O resumo da ópera é esse: se nada for feito, a FUNAI não durará os quatro anos do governo Bolsonaro. A extinção lenta e gradual, porém, implacável, de uma instituição que leva a cabo uma política indigenista centenária deveria ser um escândalo nacional e internacional. Só me resta esperar que as novas lideranças indígenas, muito bem representadas por Sônia Guajajara e Joênia Wapichana, consigam fazer ouvir suas vozes no parlamento e fora dele.
A batalha será duríssima.
Se há algo, no entanto, que os povos indígenas e seus aliados fizeram nos últimos 500 anos foi resistir", escreve Leonardo Barros Soares, psicólogo, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Eis o artigo.
Creio que ninguém gosta de ser o portador de notícias fúnebres, mas é preciso, mais do que nunca, nesse momento histórico do país, dizer o óbvio: a Fundação Nacional do Índio, a nossa conhecida FUNAI, está morrendo e, se nada for feito, deixará de existir em breve. É triste dizer isso, mas é a verdade. Nem a recente vitória dos aliados dos povos indígenas no congresso nacional, capitaneados pela aguerrida deputada Joênia Wapichana, que estão conseguindo lentamente trazer de volta a instituição para o Ministério da Justiça, pode nos levar a negar a realidade diante dos nossos olhos. O fim está próximo.
A ciência política explica que há pelo menos duas formas de “matar” uma instituição: extingui-la ativamente, de forma traumática, ou deixá-la definhar, aos poucos, deixando a poeira do esquecimento e da indiferença ir cobrindo os móveis, travando os computadores, embranquecendo os cabelos dos servidores ou simplesmente impedindo que sua missão institucional se cumpra. Nada acontece, o tédio reina, a frustração cresce, até que alguém se pergunta: para que mesmo serve esse elefante branco? Fim da linha.
Esse parece ser o caso da FUNAI. Como o custo político de acabar com o órgão é maior do que simplesmente deixá-lo às moscas, opta-se pela segunda estratégia. Eviscerada de sua principal função – a demarcação de terras indígenas, generosamente entregue aos seus algozes- e jogada na pasta não-tão-importante da “mamãe” Damares, esta é a triste atualidade da FUNAI.
O “papai” Moro já avisou que não quer a prima pobre de volta. Em suma, vilipendiada e emasculada, a política indigenista do governo está em estágio terminal. Aliás, diga-se de passagem, nenhum governo brasileiro no período republicano pode ser denominado pró-indígena. Todos foram mais ou menos antiindígenas a seu modo. Bolsonaro, no entanto, parece ter uma questão pessoal com os indígenas, o que complica mais ainda as coisas.
A esperada morte da FUNAI se dará, a meu ver, por dois motivos. O primeiro é a exacerbação do sentimento antiindígena no congresso nacional e a forte organização dos lobbies ruralistas, evangélico e da mineração no interior do governo, cujas iniciativas de lei, de políticas públicas e de grandes empreendimentos simplesmente atropelarão a instituição até o ponto em que ela não servirá mais para nada.
A bem da verdade, é preciso dizer que essa forte força sempre esteve lá, e que o governo Dilma Rousseff teve um papel importante no desmonte da política indigenista que ora se avizinha de seus estertores, ao não se colocar como uma mediadora política hábil na negociação com estes setores conservadores.
Não obstante, creio que o governo Bolsonaro levou o processo para um outro nível. Quase nenhuma instituição estaria preparada para uma ofensiva concertada tão acachapante como esta.
O segundo fator é um pouco mais dramático, em meu entendimento, porque poderia ser revertido mais facilmente do que a correlação de forças políticas no parlamento. Trata-se da insuficiência crônica de recursos humanos no órgão. O estudo recente de Helton Soares dos Santos, intitulado Análise da distribuição da força de trabalho na Fundação Nacional do Índio, investigou a fundo a força de trabalho do órgão e não deixa dúvidas quanto à seguinte constatação: a força de trabalho da FUNAI é numericamente exígua, envelhecida e com baixo nível de formação.
Com pouco mais de 2.300 servidores distribuídos entre 37 Coordenações Regionais, 240 Coordenações Técnicas Locais e 11 Coordenações das Frentes de Proteção Etnoambiental – que protegem os índios isolados ou de recente contato-, a sede em Brasília e o Museu do Índio no Rio de Janeiro, a FUNAI tem como missão monitorar 117 milhões de hectares de terras indígenas demarcadas e assegurar os direitos básicos de cidadania de uma população indígena de quase 900.000 pessoas, pertencentes a 305 etnias e que falam 275 línguas distintas em todo o país. Já não seria uma tarefa fácil se a instituição tivesse total apoio do governo. Relegada à indiferença em que se encontra, ela simplesmente não pode sobreviver diante da magnitude do desafio.
A previsão é de que, nos próximos dez anos, 730 servidores do órgão indigenista se aposentem. Isso inviabilizará a FUNAI tal como a conhecemos. No último dia 30 de Janeiro, último dia de validade do concurso realizado para a instituição em 2016, o governo resolveu, mediante provocação do Ministério Público Federal do Amazonas, chamar os 100 últimos classificados no cadastro de reserva para integrar os quadros da instituição – dentre os quais eu me encontro.
A posse dos novos servidores está suspensa judicialmente no momento, e a FUNAI está com dificuldade de desbloquear este processo, em grande parte – suprema ironia- por falta de pessoal para levar a cabo o Concurso Interno de Remoção da instituição. Seria cômico, se não fosse trágico.
No entanto, seremos apenas 100 indigenistas especializados a mais quando, na verdade, a FUNAI precisaria de pelo menos 1.000 novos servidores, nos próximos dez anos, somente para manter o nível de atividade atual. O ideal seria que os 3.100 cargos criados pela Lei nº11.907/2009 fossem objeto de novo concurso público.
Além disso, seria necessário que o vencimento básico e as condições de trabalho dessem um salto de qualidade substantivo, de modo a tornar a carreira indigenista atrativa. Existem, hoje, pelo menos 101 Coordenações Técnicas Locais com apenas um servidor lotado. Em outras 22, simplesmente não há ninguém para trabalhar.
Também, pudera. Trata-se, no mais das vezes, de localidades remotas, com pouca ou nenhuma infraestrutura, ou com sério risco de vida para o servidor. Quase ninguém quer ir, quase ninguém quer ficar. Ademais, você consideraria razoável que um médico servidor atenda seus pacientes em casa? E um policial, poderia lavrar uma ocorrência na própria residência? Então, por que a casa de um servidor da FUNAI, como se sabe, pode servir de Coordenação Técnica Local? Sem mudanças estruturais significativas, a convocação dos novos servidores será o equivalente a tentar estancar uma sangria com um esparadrapo.
O resumo da ópera é esse: se nada for feito, a FUNAI não durará os quatro anos do governo Bolsonaro. A extinção lenta e gradual, porém, implacável, de uma instituição que leva a cabo uma política indigenista centenária deveria ser um escândalo nacional e internacional. Só me resta esperar que as novas lideranças indígenas, muito bem representadas por Sônia Guajajara e Joênia Wapichana, consigam fazer ouvir suas vozes no parlamento e fora dele. A batalha será duríssima. Se há algo, no entanto, que os povos indígenas e seus aliados fizeram nos últimos 500 anos foi resistir.
(Com o site do IHU)
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