Publicidade põe conservadorismo na parede
Kelly Lima (*)
Além da pandemia que já matou 90 mil pessoas, o Brasil vive uma epidemia de abandonos de lares – mais de 5,5 milhões de crianças não têm o nome do pai na sua certidão de nascimento segundo o último Censo escolar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Além disso, entre 2005 e 2015, o número de famílias compostas por mães solo subiu de 10,5 milhões para 11,6 milhões, segundo dados do IBGE divulgados em 2017.
Nenhum desses números, de pandemia, de abandonos, de mulheres que criam sozinhas seus filhos choca a internet. Porém, o fato de uma marca de cosméticos usar o ator trans Thammy Miranda, para protagonizar um dos seus vídeos na campanha de Dia dos Pais parou as redes sociais e mexeu até com a bolsa de valores. Em plena década de 20, do século 21, registre-se para a posteridade.
O vídeo em questão começou a circular no início da semana na campanha publicitária da Natura. O marketing sempre esteve às voltas com polêmicas, puxando tendências, e inovando no lançamento de produtos, ao despertar desejos que o consumidor sequer sabia que tinha. Quem poderia imaginar-se dependente de uma airfry ou de um iPad, por exemplo?
A inovação, a transgressão e o propósito de provocar reações, afetos, desejos, está na essência do marketing, porque é da publicidade que saem as tendências que vão ditar os hábitos do consumidor, e ao final, da sociedade eternamente insatisfeita e ávida pelo próximo lançamento, queira ou não o mais bravo resistente aos dogmas capitalistas.
Quem não se lembra da guerra entre Coca Cola e Pepsi, ou das cervejas Brahma e Antarctica (que acabaram se fundindo)? Elas foram parar nos tribunais, mas hoje nos soam quase ingênuas. Quem não tem recordações afetivas de propagandas que marcaram épocas, tais quais a belíssima música Carinhoso, de Pixinguinha usada para vender o Chambinho, concorrente daquele que Danoninho, que vale por um bifinho…
Até aí, alguns vão dizer, tudo bem… é uma guerra comercial, mas que não mexam com “valores” da família brasileira. Não se engane. A publicidade coloca o conservadorismo na parede desde sempre e, em geral, com atraso, e com várias falhas. Ressalte-se aqui a demora das agências publicitárias em perceber a representatividade racial ou suspender a relação rasa e preconceituosa entre uma cerveja e ou mulher loura.
Mas a publicidade peitou o conservadorismo mesmo quando vendeu liquidificadores ou fornos microondas para maior “independência” das donas-de-casa. Enfrentou o conservadorismo quando ousou falar de camisinhas no horário nobre. E há cerca pouco menos de uma década no Brasil –um pouco mais lá fora – descobriu o poder financeiro do consumidor LGBTQUIA+.
O chamado “Pink Money” se mostrou como uma excelente oportunidade mercadológica. Estima-se que o dinheiro movimentado por essa comunidade representa mais de três trilhões de dólares ao redor do mundo. No Brasil de 2010, o IBGE já mostrava que casais homoafetivos tinham duas vezes mais renda que os heterossexuais, além de gastarem cerca de 30% mais, uma movimentação em média de R$ 150 milhões ao ano àquela época em que nem tantos ainda tinham conseguido “sair do armário”, por conta do preconceito aviltante e dominante.
Avanços ao longo da década foram vistos em beijos gays na novela das oito, e em uma enxurrada de marcas buscando se associar ao arco íris que representa a comunidade. O Boticário, em 2015, foi um precursor dessa leva, ao colocar na campanha de Dia dos Namorados, casais homoafetivos.
Agora sua concorrente Natura, avança mais uma casa ao explicitar a transexualidade dentro de um tema quase tabu, como são consideradas a paternidade e a maternidade num País que tem sua maioria conservadora expressada até mesmo nas urnas.
A mídia em geral cobriu pouco a polêmica, que ficou mais restrita às redes sociais, com vídeos, depoimentos e posicionamentos de influenciadores e artistas polarizados – como tudo no País atualmente. Mas a polêmica trouxe duas surpresas nas reações obtidas.
A primeira foi a forma visceral do achincalhamento dirigido diretamente ao protagonista do vídeo, que extrapolou críticas a campanhas anteriores por serem dirigidas à pessoa física e não somente à marca, que em geral sofre com boicotes, mas que também ganha com a fidelização de apoiadores e público engajado.
Por ser figura pública, filho da cantora Gretchen, por ter exposto todo o processo de transformação diante dos holofotes da mídia ao longo dos anos, e ainda pelo momento polarizado e com domínio da extrema direita no poder, Thammy foi linchado virtualmente, sendo alvo até mesmo de ofensas por parte do filho do presidente da República, o deputado Eduardo Bolsonaro.
A resposta não poderia ter sido melhor, mostrando que os caminhos da publicidade podem ser traiçoeiros, mas muito bem medidos previamente em termos financeiros. A empresa teve a maior alta da Bolsa e puxou o pregão numa época de recessão e investimentos escassos. É uma vitória a ser comemorada por todos que acreditam que a diversidade não é modismo e não é apenas “inclusão”. A diversidade está aí na cara e na casa de cada um. E quem não quer ver, terá que se vendar, e se esconder dentro dos seus próprios armários.
(*) Jornalista, membro da Comissão Mulher & Diversidade da ABI
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