Alexander Goulart, doutor em comunicação, responde no Observatório da Imprensa

 

                                                                         Foto: Robson Fernandjes/Fotos Públicas



No horizonte da comunicação, os diversos meios tecnológicos que surgiram ao longo do tempo ofereceram suas contribuições para o aprimoramento da sociedade democrática e exercício da liberdade, mas não podemos nos esquecer de que também foram utilizados para o cerceamento da liberdade e a edificação de regimes autoritários e totalitários, gerando uma não-comunicação.


Dentre esses meios, a televisão é aquele que tem marcado profundamente as últimas sete décadas. Televisão — palavra que pode designar um eletrodoméstico, uma emissora, um canal, uma ferramenta, um bem cultural. Por vezes, parece uma entidade, uma forma de poder político, econômico e social. Concretamente, televisão é transmissão à distância da imagem de um objeto.


A televisão nasceu como simples aparato tecnológico para transmissão de imagens, mas, ao longo de sua história, foi recebendo outros atributos, especialmente de cunho social, político, econômico e cultural. Ela transformou os hábitos do cidadão e, desde então, deixa sua marca nas novas gerações. A entidade “televisão” parece ter existência própria. É poderosa e impessoal. 

Sua força é tamanha que parece não termos outra alternativa senão receber suas imagens e mensagens. Quando sobre ela falamos, não nos reportamos aos concessionários, mas ao ente impessoal e poderoso. Quem é a televisão? Que coisa é? Seja nos países ditos desenvolvidos, como também nos periféricos, seu impacto, historicamente, vem sendo estudado e criticado. A TV está imbricada ao modus vivendi da população. Seria difícil e, ao mesmo tempo incompleto, proferir qualquer palavra sobre essas sociedades ou nações sem levar em consideração o papel exercido por esse Meio de Comunicação Social.


Em cada país, uma história, um contexto. Existem semelhanças e diferenças, mas o caráter nacional é distinto e fundador. Voltemos nosso olhar para o Brasil, nossa realidade, e procuremos compreender, entre teses e antíteses, esse fenômeno comunicacional. Em nosso país, parece-nos que a Televisão não é apenas “televisão”, mas um ente potente, dotado de atributos e atribulações, de uma escala axiológica. Objeto de paixões, desperta sentimentos em ambas as pontas do ato comunicativo e também naqueles que se dizem neutros, indiferentes e críticos. Nas palavras de Eugênio Bucci (1996): “a televisão é muito mais do que um aglomerado de produtos descartáveis destinados ao entretenimento da massa […] ela consiste num sistema complexo que fornece o código pelo qual os brasileiros se reconhecem brasileiros”.


Em nosso país, a TV nasceu sob a marca do entretenimento. Em poucos anos, ganhou fama e se difundiu largamente. Como uma espécie de hipnose massificante, na visão de muitos críticos, tomou conta das classes e o Brasil real passou a ser representado na telinha. Nos anos 60, 70 e 80, a TV se tornou a principal mídia eletrônica brasileira, agente da unificação e geradora de uma identidade nacional. O sistema broadcasting, formando as redes, sobrepôs o nacional ao regional e o Brasil real passou a ser aquele reproduzido a partir de um determinado ponto de vista que informava e entretinha a maioria da população, especialmente através das telenovelas, um gênero que com o tempo se tornou genuinamente brasileiro.


As principais críticas à televisão se baseiam nas ideias de monopólio, oligopólio e formação de uma massa uniforme e alienada de consumidores. Essa visão em relação à passividade do público, nos últimos tempos, vem sendo questionada, especialmente por intelectuais latino-americanos que tentam encontrar relações edificantes na interação entre a TV e o telespectador, mostrando que o público não é tão passivo como se pode pensar. Ainda assim, prepondera a ideia de que a TV, especialmente “a aberta”, nos mantém na Caverna de Platão e sua imagem reproduzida é como uma sombra em nossas vidas de acorrentados, vislumbrando um simulacro. Envolvidos pelo lúdico, consumimos a programação televisiva sem nos preocuparmos com o que estamos vendo, como um passatempo alienante que pouco nos exige. Por outro lado, sentimos a televisão como um veículo que nos mantém conectados aos outros, numa espécie de laço social simbólico-eletrônico. O problema é que no afã de nos emocionar, a carga dramática (forma) televisiva pode terminar por superar a informação (conteúdo). E a informação é o que de mais precioso podemos receber, pois é ela que nos permite tomar decisões. Mesmo naquilo que consideramos puro entretenimento, a informação está presente; e é justamente isso que torna a televisão tão importante: a sua capacidade de transmitir informações a tantas pessoas de forma simultânea e sedutora.


Hoje, mais do que nunca, os aparatos e sistemas eletrônicos fazem parte do cotidiano das pessoas: compras, lazer, jogos, relacionamentos. Vivemos uma vida através das imagens. Temos também uma aparente interatividade, visto que a interatividade em si exige a possibilidade da alteração das regras e criação de situações imprevistas. Atualmente, somos testemunhas de uma mudança radical: a consolidação do digital em substituição do analógico, ou seja, da reprodução de algo preexistente para a imagem digital criadora de algo novo. No que tange à televisão, a evolução tecnológica da eletrônica vem acirrando a disputa entre as emissoras de sinal aberto. Na busca da atenção do zapeador, são necessárias sequências de cenas interessantes, volume, tensão, velocidade, impacto visual, apelo ao inconsciente e fascínio contínuo.


O período do domínio de mais de 80% da audiência por uma mesma emissora, como foi o caso da Rede Globo, passou. Prova disto são os recentes rompimentos de contratos com artistas com mais de 40 anos de casa. Sinal dos tempos. Hoje, embora a emissora carioca continue liderando, precisa repartir o público, a publicidade e se adaptar às novas plataformas. Toda essa mudança, ainda que muito leve, teve início com o surgimento de duas emissoras oriundas do desmembramento da Rede Tupi: Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) e Rede Manchete. 

Embora desde a metade dos anos 90 o SBT e a Record sejam vice-líderes em audiência, a Manchete foi a primeira emissora a abalar a supremacia da Globo. Com uma proposta televisiva qualificada, mas passando por diversas crises financeiras, a rede de Adolpho Bloch teve uma vida breve e marcante. De 1983 a 1999, demonstrou que é possível uma televisão diferente, que prime pela inovação, criatividade. Contudo, ousar o diferente pode ter um preço alto: a oscilação da audiência e um fim prematuro. Curiosamente, o ousado projeto de telenovela da Manchete — Pantanal — terá um remake na Globo em 2021. Mais um sinal dos tempos.


Passados 70 anos e em plena era da segmentação dos canais digitais, seria muito mais cômodo acreditarmos que a televisão perdeu importância, tornou-se essencialmente entretenimento despretensioso, que não possui nenhuma função pública. Simplesmente poderíamos aceitar passivamente tudo o que recebemos e usarmos o zapping ou power off como proteção, mas esse pensamento amplamente difundido é traiçoeiro e simplista; nos induz a abrirmos mão de um direito constitucional que possuímos, nos afasta do real poder que temos nas mãos à medida que somos os verdadeiros “donos” da televisão. 

A formação da cidadania e liberdade passa pela consciência de que a TV tem uma responsabilidade que deve ser fiscalizada pela sociedade civil e governos. Por outro lado, precisamos nos dar conta de que aqueles que idealizam e emitem os programas televisivos são tão marcados pelo imaginário quanto o público, ou seja, há uma circularidade que ameaça a autonomia em ambas as pontas do ato comunicativo, daí a importância da mídia discutir a si mesma. Podemos crer que uma outra televisão é possível, especialmente diante das novas possibilidades tecnológicas que colocam a mensuração da audiência e a distribuição da publicidade por outras metodologias.


Por maiores que sejam as deficiências, hoje temos neste meio um instrumento que pode ser suporte para a democracia e cidadania. Precisamos ter um olhar apaixonado pela televisão, vislumbrando suas potencialidades e não apenas defeitos, pois a comunicação é um grande desafio para o século XXI, condição para a coabitação, respeito às identidades e diferenças. Não há democracia sem comunicação que, mesmo com sua ambiguidade, mantém seu valor de emancipação. É pelo respeito ao diferente, à alteridade, à inteligência do outro que se realiza a emancipação, logo, o nosso maior desafio é proteger a dimensão humanista da comunicação, da qual a TV não representa apenas o passado, mas o futuro.

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Alexander Goulart é jornalista, doutor em comunicação. Autor do livro Show do Milhão, Imaginário de Silvio Santos e do SBT. Por muitos anos, colaborador assíduo do Observatório da Imprensa em temas como televisão e comunicação.

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