“O Brasil foi confrontado com o colapso final do sistema de representação política tradicional” , publica o "Correio da Cidadania"
Gabriel Brito
O Brasil e seus mais diversos setores sociais ainda sacodem a poeira do domingo em que a Câmara dos Deputados, em verdadeiro show de despolitização e demagogia, encaminhou o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e agora aguarda decisão do Senado. Em meio a reflexões e constatações que rondam a mídia e opinião pública, o Correio da Cidadania publica entrevista com o sociólogo do trabalho Ruy Braga (foto), que não teve dúvidas em qualificar o episódio como um golpe, no sentido de refletir transição radical a um estágio de maior exploração da sociedade e dos trabalhadores.
“Domingo foi um verdadeiro festival de horrores, uma espécie de Marcha da Desfaçatez, onde os deputados foram se sucedendo na tribuna e, para cada voto a favor do impeachment, via-se a maquinação de um sistema degenerado que buscou a todo instante salvar a própria pele do abismo. Isso não é representação política, é alienação, que enfrenta uma sociedade como uma força totalmente estranha. Basicamente, significa que o país, desde domingo, vive Estado de Exceção. O governo a ser formado pelo vice-presidente Michel Temer é ilegítimo”, criticou.
Ao tratar o processo de destituição de Dilma como falência do sistema político representativo que conhecemos, Ruy Braga lamentou o imenso rebaixamento da política representado pela figura de Eduardo Cunha no comando do impeachment, em sua visão, um resumo de tudo que ora vemos degenerar. Ademais, traça claras diferenças entre esse impeachment e o de Collor, diametralmente opostos em termos de sensibilização social.
“Além da UNE, da CUT e outros setores populares, houve uma espécie de unidade com os setores médios e tradicionais da sociedade brasileira, que haviam sido atingidos diretamente pelo bloqueio e pelo sequestro das poupanças empreendidos por Collor de Melo. O impeachment do Collor unificou uma série de setores importantes da sociedade brasileira, forças democráticas que ainda estavam empoderadas e fortalecidas pelas vitórias dos anos 80. (Agora) temos uma sociedade partida ao meio, cindida, que não irá se reconciliar”, comparou.
Ruy elenca ainda as razões objetivas que fizeram a burguesia brasileira e grandes capitalistas, sempre contemplados pelos governos petistas, abandonarem o barco da governabilidade. Elas passam por três grandes reformas punitivas ao mundo do trabalho e ilustram o processo concreto de espoliação social e laboral que se busca empreender como solução para novas fases de acumulação do capital.
“Ou nós avançamos na democratização do sistema de representação e da sociedade brasileira, ou recuaremos de forma muito acelerada para uma ditadura mais ou menos velada. Isso já tem acontecido no mundo. Regimes políticos ditatoriais têm aparência democrática porque coabitam com eleições ou coisa do tipo. A Turquia de Erdogan é um exemplo. Aparentemente democrática, mas de fato uma ditadura que impõe uma ordem muito pesada sobre os trabalhadores. É esse o futuro que nos espera”.
A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como você viu e sentiu a votação da Câmara dos Deputados que encaminhou o processo de impeachment da presidente Dilma?
Ruy Braga: Domingo foi um verdadeiro festival de horrores, uma espécie de Marcha da Desfaçatez, onde os deputados foram se sucedendo na tribuna e para cada voto a favor do impeachment via-se a maquinação de um sistema degenerado que buscou a todo instante salvar a própria pele do abismo. Isso não é representação política, é alienação, que enfrenta uma sociedade como uma força totalmente estranha. Encara a imensa maioria da população brasileira como força estranha. Não só é algo mesquinho como profundamente danoso.
Infelizmente, o PT, partido criado pelos movimentos sociais e sindicais pra transformar radicalmente essa máquina alienada que enfrenta a sociedade como corpo estranho, capitulou de forma mais ou menos absoluta, mais ou mens vergonhosa ao que vimos no domingo, e ficou com as traições do PMDB, dos próprios ministros, toda a debandada e fragmentação do colapso da base de sustentação parlamentar do governo Dilma. O PT capitulou a essa máquina de alienação política que busca desesperadamente salvar seus próprios interesses e privilégios. E busca fazê-lo da maneira mais danosa possível, ou seja, com um gângster, um réu, alguém que deveria estar preso, com pena para mais de 180 anos, segundo a Procuradoria Geral da República, na liderança da máquina destrambelhada rumo à formação e apoio de um governo ilegítimo.
Basicamente, significa que o país, desde domingo, vive Estado de Exceção. O governo a ser formado pelo vice-presidente Michel Temer é ilegítimo. Em tal condição, só poderá se reproduzir com base na ampliação e aprofundamento do Estado de Exceção, o que virá acompanhada de uma crescente violência institucional contra os setores sociais democráticos que se insurgirão. Vimos o início de uma crise cujo precedente recente na história brasileira foi o golpe de 1964 e a posterior promulgação do AI-5.
O país foi confrontado com o colapso final do sistema de representação política tradicional da sociedade brasileira contemporânea. Se existia alguma dúvida a esse respeito não existe mais. Eis o estado da política institucional brasileira: um sistema alienado que produziu um golpe parlamentar cujo precedente mais próximo está em 1964 e no golpe militar.
Correio da Cidadania: O que comenta da argumentação usada nos votos contrários ao impeachment, rotulado de golpe? E quanto aos votos a favor, defendidos basicamente à luz do pedido de impeachment de Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, a qualificar as pedaladas fiscais como crime de responsabilidade?
Ruy Braga: O processo de impeachment é uma farsa. Nessa condição, não foi endereçado ao Congresso pra ser defendido de forma idônea, técnica, jurídica. Foi apoiado num relatório absolutamente insustentável do ponto de vista jurídico. As acusações que pesam contra Dilma são notoriamente ridículas, as pedaladas fiscais e suplementação do orçamento não são nem objeto da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), pois dizem mais respeito à lei orçamentária. Consequentemente, ela não poderia cometer crime de responsabilidade ao supostamente desrespeitar a LRF em assunto que é de ordem de lei orçamentária da União, portanto, assunto administrativo.
Também é resultado da intensificação da luta social no país, no caso, através da luta parlamentar. Ao se expressar na luta parlamentar, o que temos é o setor mais alinhado ao governo defendendo-o, corretamente, contra a tentativa canhestra, ridícula, sinistra e bem sucedida de golpe parlamentar. Portanto, o argumento do governo é muito simples: não há crime de responsabilidade e, assim, não deveria haver possibilidade de impeachment.
Correio da Cidadania: Acha possível que o Senado barre o impeachment? Em caso de prosseguimento, o que vislumbra pra continuidade da vida política brasileira?
Ruy Braga: Não acho possível. Pelas mesmas razões que o Congresso aprovou. Ou seja, as razões do impeachment são fundamentalmente políticas. O Senado, por incrível que pareça uma casa ainda mais conservadora que a Câmara, deverá muito tranquilamente aprovar o impeachment da presidente, em tempo recorde até, ainda mais por não precisar de maioria qualificada. Todos os últimos envolvidos no processo de impeachment estão muito desejosos de que o processo se encerre de forma célere para que se inaugure rapidamente o governo ilegítimo do usurpador Michel Temer.
Correio da Cidadania: Diante do quadro, o que dizer da figura de Eduardo Cunha, há praticamente 16 meses pontificando em toda a política parlamentar brasileira e eminência parda do processo?
Ruy Braga: Ele sumariza a decadência, colapso, ruína do sistema de representação política brasileiro, fundamentalmente apoiado no financiamento empresarial de campanha, cujo sentido fundamental é tornar o processo radicalmente antidemocrático. O Congresso, tanto Câmara dos Deputados como Senado, é um espelho invertido da sociedade brasileira, onde preponderam políticos ligados aos interesses da burguesia.
As bancadas mais importantes são as chamadas bancadas do bife, da bala, da bíblia. Temos distorção de gênero, classe, raça, de qualquer parâmetro sociológico que se queira escolher. Ao olhar para a Câmara e o Senado vemos a total inversão, uma imagem caricatural e distorcida do que é a sociedade brasileira.
Isso se deve ao fato de que as eleições no Brasil não dependem de partidos. O sistema de representação foi pensado pra alienar a massa da população e garantir que apenas quem é proprietário e tem condições de investir 5, 6, 7, 10 milhões de reais numa campanha para deputado possa ter chance de se eleger.
É um sistema baseado em nomes. No mercado eleitoral, quem tem mais capital econômico consegue transformá-lo em capital político, ou seja, em votos. Essa é a raiz da distorção do sistema de representação no Brasil. Eduardo Cunha é apenas e tão somente o coroamento desse sistema podre de representação. Ele sumariza-o. É uma figura pessoalmente violenta, mas também ligada à bancada evangélica; é parte dos esquemas de corrupção da sociedade brasileira desde a década de 70; esteve envolvido em todos os esquemas de financiamento ilegal de campanha; era o homem que operava o esquema PC Farias no Rio, para o Collor.
Portanto, está envolvido nisso tudo desde sempre. E como coroamento do processo não é de estranhar que tenha seu nome ligado tanto ao escândalo dos Panama Papers como às contas na Suíça e tudo aquilo que diz respeito aos crimes que já cometeu e pelos quais deve ser condenado – se o país pretende manter uma aparência minimamente séria.
Eduardo Cunha é o exemplo principal do sistema e da alienação política que sustenta essa desfaçatez chamada Congresso Nacional. A verdadeira caricatura de sistema político que temos no Brasil se encaixou perfeitamente nessa figura.
Correio da Cidadania: O que o processo expressa do nosso atual estágio de democracia?
Ruy Braga: Ou país refunda a ordem democrática ou não há muita opção. Ou refunda e aprofunda a democracia, promove reformas radicais no sentido de estabelecer um sistema democrático de representação, a começar pelo fim do financiamento empresarial e estabelecimento do financiamento público, ou não tem muito jeito. Precisa fazer uma reforma que reforce o papel dos partidos políticos das diferentes posições ideológicas no interior do sistema de representação. Uma reforma que tenha condições de fortalecer a representação popular, não podemos esquecer nunca. Existe um vazio entre o parlamento e o povo, a sociedade civil organizada, que precisa ser preenchido pela cidadania ativa.
Caso contrário, caminharemos aceleradamente para uma ditadura. Pode não ser a ditadura militar, porque efetivamente não está alinhada hoje em dia aos interesses geoestratégicos das principais potências econômicas mundiais, mas será uma ordem ditatorial pós-democrática, na qual um governo civil travestido de legitimidade, a improvisar soluções institucionais, irá impor a mão de ferro uma ordem política ditatorial sobre os trabalhadores brasileiros.
Ou nós avançamos na democratização do sistema de representação e da sociedade brasileira, ou recuaremos de forma muito acelerada para uma ditadura mais ou menos velada. Isso já tem acontecido no mundo. Regimes políticos ditatoriais têm aparência democrática porque coabitam com eleições ou coisa do tipo.
A Turquia do Recep Erdogan é um exemplo. Aparentemente democrática, mas de fato uma ditadura que impõe uma ordem muito pesada sobre os trabalhadores. É esse o futuro que nos espera caso não sejamos capazes – os movimentos sociais, sindicatos, classe trabalhadora e demais expressões democráticas que ainda existem na sociedade entre os setores médios, intelectuais, estudantes – de promover uma transformação radical e refundarmos a democracia no Brasil. Se não o fizermos, sem dúvida alguma nos transformaremos numa sociedade regida por uma ditadura.
Correio da Cidadania: Em sua visão, e agora com o pedido de impeachment já aprovado pela Câmara, quem apontaria como responsável pela agonia do governo e do PT no Planalto?
Ruy Braga: Tenho insistido no fato de que o governo Dilma começa a cair quando aplica a agenda e o programa político que ele próprio derrotou na campanha presidencial de 2014. Ou seja, ao decidir, pra efeitos de enfrentar a situação econômica, impor um pesado ajuste fiscal ao país, com ataques aos direitos dos trabalhadores e pesado ajuste nas contas públicas, que levaram o país à recessão, em desfavor de todos aqueles setores da classe trabalhadora que ganham de 2 a 5 salários mínimos mensais e haviam garantido a eleição apertada de Dilma.
Quando ela decidiu impor o ajuste, cortou toda e qualquer ligação, solidariedade e apoio de tais setores, exatamente aqueles que garantiram sua vitória eleitoral, que com muita razão se sentiram atacados e traídos. Foi o momento capital do segundo governo.
É importante destacar que a atitude do governo apenas seguiu um caminho mais ou menos natural, levando-se em consideração os recuos e concessões que o governo Dilma vinha fazendo pelo menos desde maio de 2013. Em abril de 2013, aumentou a taxa de juros e em maio resolveu adotar políticas privatistas, que entre outras coisas redundariam na privatização dos portos, aeroportos e rodovias, enfim, um programa amplo de privatização da infraestrutura.
Tivemos um desacoplamento dos interesses populares, da classe trabalhadora, dos pobres do Brasil, talvez com honrosa exceção da fatia assistida pelo programa Bolsa Família, que se manteve alinhada ao governo. Tal descolamento se aprofundou a partir de junho de 2013, quando a massa de jovens foi às ruas pedir mais investimento público e gasto social em saúde, educação, transporte etc. Em julho de 2013, o governo respondeu com corte adicional de 10 bilhões de reais do orçamento público.
Foi ali, naquele corte de 10 bilhões de reais em julho de 2013, que o governo selou sua sorte, em minha opinião. Foi exatamente ali que o governo decidiu aplicar a qualquer custo uma política de ajuste fiscal. E a partir de então os recuos do governo apenas corroboram a mudança abrupta de direção da política econômica, redundando no estelionato eleitoral e seus desdobramentos políticos tenebrosos, trágicos. Houve a queda de popularidade da presidente, que a partir de então adotou uma estratégia de recuo sistemático diante de qualquer resistência a alguma proposta sua.
Na época, inclusive em entrevista ao Correio, disse que ela estava terceirizando o governo para o PMDB. E hoje vemos que a terceirização se complementou com o golpe de domingo.
Correio da Cidadania: Que comparativos você faria com o impeachment de Collor, inclusive em relação ao perfil dos protestos que apoiaram a derrogação do mandato presidencial?
Ruy Braga: Na comparação com o Collor as diferenças são abissais. O impeachment do Collor foi um processo que unificou os setores democráticos da sociedade brasileira, houve o estabelecimento de um enorme consenso entre aqueles que de fato haviam lutado durante as décadas de 70 e 80 – em especial os movimentos sociais e os militantes do PT. Além da UNE, da CUT e outros setores populares houve uma espécie de unidade com os setores médios e tradicionais da sociedade brasileira, que haviam sido atingidos diretamente pelo bloqueio e pelo sequestro das poupanças empreendido por Collor de Melo.
O impeachment do Collor unificou uma série de setores importantes da sociedade brasileira, forças democráticas que ainda estavam empoderadas e fortalecidas pelas vitórias dos anos 80 do processo de redemocratização. Havia uma vibração muito forte, uma pulsão democrática muito forte subjacente aos movimentos que de fato impediram o governo Collor e hoje vemos o avesso disso. Temos uma sociedade partida ao meio, cindida, que não irá se reconciliar.
O impeachment do Collor reconciliou os setores médios tradicionais com as forças sociais e populares. Isso não irá acontecer agora, teremos na verdade um aprofundamento de tal cisão em torno de uma agenda fundamentalmente regressiva. O Collor foi substituído, mesmo do ponto de vista econômico, por uma agenda progressista. Não estou dizendo que era uma agenda popular, mas era progressista, em torno da qual se estabelecia, por exemplo, a criação e implementação da negociação coletiva dos contratos de trabalho, tentada no governo Itamar Franco.
O governo Itamar Franco aumentou de maneira consistente o gasto social e preparou o Plano Real, que em um primeiro momento foi um plano de fato redistributivo e distribuiu renda. Isso se deu pelo fato de que a imensa e esmagadora maioria da população não tinha condições de se defender do processo inflacionário. Quando a inflação caiu, o poder de compra do salário aumentou. Assim, tivemos, sim, uma espécie de agenda progressista em termos econômicos e uma dimensão política avançada para a época, com a formação de um governo sob pressão dos movimentos populares. Foi um governo que inclusive tentou a criação da negociação coletiva no contrato de trabalho. Houve ganhos do ponto de vista social, da proteção trabalhista e econômica para as massas trabalhadoras. Hoje temos exatamente o contrário.
O impeachment de Dilma é um golpe parlamentar e não tenhamos dúvidas, nem sejamos inocentes: Dilma Rousseff foi tirada do poder não por aquilo que ela fez em benefício da classe empresarial, capitalista e da burguesia brasileira. E fez muito, as últimas medidas dela, associadas ao aumento exorbitante da taxa de juros, combinado com um ajuste recessivo da economia, eram exatamente para garantir o pagamento dos juros da dívida pública. Pois bem, ela não está sendo derrubada por isso, nem por de alguma forma ter beneficiado ou mantido o Bolsa Família ou os gastos sociais do governo. Não foi derrubada por nenhuma dessas razões.
Dilma foi derrubada por não ser capaz. Por ser um governo fraco e sem a capacidade de empregar a Reforma da Previdência com o aumento do tempo de contribuição e diminuição de benefícios; a reforma trabalhista, com o fim da CLT, exatamente como eles querem, ou seja, aplicar o princípio do negociado sobre o legislado e transformar estruturalmente o mercado de trabalho brasileiro.
Em outras palavras, hoje nós temos 48 milhões de trabalhadores formais, sendo 12 milhões são terceirizados. O que eles querem é transformar esse mercado de forma estrutural, fazer com que 30, 35 ou 40 milhões de trabalhadores sejam terceirizados e apenas um núcleo muito pequeno, composto por 10 ou 12 milhões de trabalhadores, seja efetivamente contratado das empresas. Dilma não era capaz de entregar esta reforma trabalhista, como nós percebemos a partir da resistência que muitos setores sindicais, inclusive alinhados ao governo federal, apresentaram durante a discussão do PL 4330 no ano passado. E ela não foi capaz também de fazer uma reforma constitucional que desvinculasse os gastos com educação e saúde do orçamento público, para liberar espaço para o pagamento de juros.
Ela não foi capaz de entregar as três contrarreformas que os empresários, a burguesia, os setores proprietários e a parte majoritária da política brasileira financiada por essa burguesia (e representando os interesses dela) entendem como necessárias para fazer com que o processo de acumulação capitalista no Brasil continue e seja retomado diante da situação de crise econômica.
O que estamos vivendo no Brasil é a transição a um regime de acumulação e de exploração da força de trabalho assalariada com espoliação social e de direitos, tendo em vista fundamentalmente a ampliação do trabalho precário. Transição para outro regime de acumulação, que eu diria ser fundamentalmente um regime de espoliação social dos trabalhadores com exploração do trabalho assalariado associado. Estamos vivendo uma inversão. Antes tínhamos a acumulação por exploração a dar direção; hoje, o que os setores empresariais exigem é o regime de acumulação brasileiro basicamente voltado à estratégia social de espoliação capitalista. Isso é o que vamos ver com o governo Temer. O governo tentará – se será bem sucedido ou não depende da luta de classes – implementar tal agenda e realizar seu programa, com a seguinte finalidade: a transição do regime brasileiro de acumulação.
O único problema é que ele não poderá contar com aquilo que Lula e Dilma contaram: um modo de regulação, ou seja, de reprodução desses conflitos capital-trabalho minimamente capaz de pacificar o país. Ele não contará com isso, motivo pelo qual aposto que tal transição, que aponta para um aprofundamento de todas as formas despóticas de controle da sociedade, só pode efetivamente se completar com a transformação do Estado em uma ditadura. Caso contrário, será praticamente impossível que essa transição seja empreendida ou realizada.
Portanto, estamos vivendo, mutatis mutandis, mais ou menos aquilo que vivemos entre as décadas de 50 e 60; um regime de acumulação despótico, fordista e periférico que tinha uma flagrante natureza autoritária, mas coexistia (com muitos atritos) com o populismo e sua regulação. A seguir, qual foi a solução? Eliminar a regulação populista e colocar no lugar uma regulação autoritária. Estamos vivendo exatamente isso na sociedade brasileira de hoje: um modelo de acumulação que precisa transitar e se transformar, se reinventar cada dia mais em um sentido autoritário e que ainda exige um Estado e uma institucionalidade política consistentes e coerentes com seus objetivos.
Correio da Cidadania: O que seria ou será do PT de volta à oposição? Que tipo de discurso e atitude política se poderá esperar e, acima de tudo, sua relação com a classe trabalhadora e setores sociais que o levaram ao poder?
Ruy Braga: Vejo que o PT, por incrível e contraditoriamente que possa parecer, tende a sair fortalecido desse processo, pela simples razão de que foi alijado do poder por meio de um golpe. Naturalmente, os setores sociais e populares vão reconhecer que houve um golpe e o PT de alguma maneira foi ilegitimamente tirado do poder. Os setores do PT mais engajados e mais enraizados na máquina administrativa do Estado tendem a focalizar ou a canalizar todos os esforços de resistência na luta institucional, ou seja, dentro de Congresso, Senado, Judiciário, Supremo etc. Enfim, desviar a indignação das massas, que tende a crescer com a aplicação das medidas radicais previstas pelo governo Temer. E os setores mais dinâmicos dentro do Partido dos Trabalhadores, normalmente ligados aos movimentos sociais, tendem a avançar no sentido de exigir a restauração da democracia.
Acredito que esse processo tenderá a assumir a forma de uma campanha por Diretas Já e pela eleição antecipada da presidência da República de 2018 para 2016. Posso estar enganado, mas é a minha aposta. Sem dúvida nenhuma, teremos no futuro próximo e imediato uma intensificação da luta popular nas ruas, ou seja, com os setores governistas, mas também de forma independente deles. Prevejo que haverá muita mobilização popular, especialmente no meio sindical – se houver ainda algum tipo de força no movimento sindical brasileiro e acredito que há.
Mesmo que a taxa de desemprego tenha dobrado nesse último ano, de 4,5% para 9,2% da PEA, é uma taxa de desemprego ainda não desastrosa para os interesses dos trabalhadores. Consequentemente, acredito que o sindicalismo não está em um momento de absoluta fragilidade, pelo contrário, ele pode, sim, reagir. Com menos força do que em 2012 e 2013, mas ainda assim com força suficiente para se somar, eu diria, aos demais movimentos populares, em especial os movimentos de trabalhadores sem teto e o MST.
O MST agora na oposição e todos os movimentos sociais que antes se localizavam em uma região mais ou menos confortável de negociação – ainda que com conflitos – com o governo federal vão passar imediatamente para a oposição e com uma razão, ou seja, com uma palavra de ordem: a restauração da democracia no Brasil. E isso tende a fortalecer os setores alinhados, que ainda consigam mobilizar as massas, em favor das pautas democráticas.
Consequentemente, acho que teremos uma intensificação do ritmo e do nível da luta de classes no Brasil e, contraditoriamente, um fortalecimento do PT. Até porque se nos fiarmos pelas pesquisas de opinião, o Lula ainda é hoje franco favorito para ganhar as eleições em 2018. Portanto, mesmo se pensarmos de um ponto de vista oportunista (eleitoralmente falando), uma parte importante do PT teria muitos interesses em antecipar as eleições de 2018. Assim, acredito, nós teremos um fortalecimento da luta nas ruas em torno dessa agenda.
Correio da Cidadania: E aqueles movimentos e agrupamentos que passaram os últimos anos levantando suas bandeiras desatrelados e até rompidos com o PT se verão obrigados a agir em conjunto com o partido e suas bases?
Ruy Braga: Feliz ou infelizmente isso já está acontecendo. A atuação conjunta mais ou menos articulada da Frente Brasil Popular com a Frente Povo Sem Medo é uma mostra. Ou seja, aqueles setores mais dinâmicos, antigamente ligados ao governo e agora em oposição ao futuro governo Temer, já começaram a tentar uma espécie de unificação em torno de uma demanda, que é algo que unifica todos os democratas. E eu vejo que tal tipo de processo provavelmente vai se manter e aprofundar. Não sei ainda qual será o desdobramento, mas tenho certeza absoluta de que as ideias de redemocratização do país e antecipação das eleições deverão ter uma repercussão popular forte.
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(*) Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.
(Com o Correio da Cidadania)
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