Filme sobre a greve geral de 1917 resgata lições perdidas no tempo pela classe trabalhadora
Gabriel Brito (*)
O ano de 2017 chega ao fim sob um tremendo espectro regressivo nas relações entre capital e trabalho, sendo o Brasil um dos principais símbolos globais do desmonte completo dos direitos sociais e trabalhistas. De outro lado, o ano também marcou o centenário da greve geral dos trabalhadores de São Paulo e da Revolução Russa, efemérides que trouxeram ao público uma série de obras a seu respeito. Sobre o primeiro caso, entrevistamos Carlos Pronzato, cineasta argentino radicado no Brasil e diretor do filme que trata da primeira grande greve da história brasileira.
“Tentamos manter intacto o contraponto entre socialistas e anarquistas, principais forças que aglutinavam o movimento social da época, mas demos a devida proeminência ao movimento anarcossindicalista e outras vertentes dessa corrente ideológica, na orientação da maré humana que lutou pela reivindicação dos seus direitos perante o patronato e as autoridades. Sem essa orientação, a greve geral não teria atingido a envergadura que atingiu em julho de 1917”.
Na conversa, Pronzato descreve as características sociais e ideológicas daquele movimento, cuja história até hoje é menos conhecida do que deveria por aqueles que se posicionam nos setores progressistas da sociedade. E, ao terminar o ano de modo desolado e abandonada pelas centrais sindicais, trata-se de um importante resgate das lutas sociais que marcaram o país e garantiram direitos que melhoraram a vida de milhões de brasileiros.
“Através de todos os governos, com pausas menores durante governos reformistas que conseguem um ou outro acordo conciliador com o capital, a resposta da burguesia não mudou e jamais vai mudar. Tanto por meio de militares como políticos sempre haverá a repressão para o resguardo dos seus privilégios. A menos que o espírito da revolta, o autêntico, sem amarras nem condições e nem interesses de nenhum tipo prime de novo, como cem anos atrás”, sintetizou.
Ainda a respeito da atual prostração frente a um governo largamente reprovado pela população, mas que consegue impor reformas cruciais para a vida de tantos, Pronzato destaca que nenhum dos grandes aparatos sindicais se prestou a fornecer apoio material a esta e outras produções que deveriam interessar.
“Como investigadores não contamos com a máquina do Estado (eu particularmente nem durante governos de centro-esquerda contei com ela, e hoje ficamos numa situação pior ainda) e nem com as estruturas e recursos de partidos e sindicatos para repercutir estes materiais. Contamos, sim, com apoios estruturais e às vezes até com pequenos apoios orçamentários para este tipo de obras políticas. Mas com um pouco mais de empenho e vontade política desses estamentos do Estado, filmes como os nossos, que pretendem intervir na realidade política, poderiam atingir mais facilmente os trabalhadores”, observou.
A entrevista completa com Carlos Pronzato pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, você poderia dar um breve resumo de suas obras recentes, dedicadas a lutas sociais?
Carlos Pronzato: Bem, nem todas são sobre as lutas sociais, há também sobre questões culturais. Recentemente realizamos obras (curtas) sobre Castro Alves, Zélia Gattai e alguns outros não concluídos ainda. Mas no âmbito específico das lutas sociais temos os documentários dos levantes estudantis como o principal foco do meu trabalho recente (“Acabou a Paz, isto aqui vai virar o Chile, Escolas ocupadas em SP”, “Ocupa Tudo, Escolas ocupadas no Paraná”).
No ano passado, também realizamos um trabalho sobre um militante nordestino dos anos 60 e a sua organização política: “Manoel Lisboa, herói da resistência à ditadura” em Recife. Pouco antes lançamos o documentário “Terceirização, a bomba relógio”, dentre outros.
Correio da Cidadania: O que te levou por esse caminho como produtor de conteúdo?
Carlos Pronzato: A explicação está no percurso que fiz pela América Latina na década de 80, quando depois de estar morando no México durante um ano (saí da Argentina em meados de 1982) iniciei um roteiro latino-americano “sem lenço e sem documento” pelo continente inteiro até chegar ao Brasil em 1989. Fiz o curso de Direção Teatral na UFBA e a pós-graduação na UFRGS.
No início estava mais dedicado à direção teatral e à literatura (basicamente poesia e contos, tendo publicado em torno de 15 livros), mas aos poucos retomei o cinema, que tinha iniciado na Argentina, trabalhando na indústria cinematográfica daquele país nos postos iniciais da carreira audiovisual, mas agora já no formato de vídeo.
Foi naqueles anos, de constante mobilidade por diversos países, que fui moldando meu interesse pelos aspectos sociais e políticos, aliado à minha formação familiar, pois meus pais também eram artistas. Já no início dos anos 2000 retornei às viagens pela América Latina para registrar momentos importantes das revoltas populares na Argentina, na Bolívia, no Chile, e também no Uruguai e Paraguai, estes dois últimos já dentro de mudanças institucionais progressistas.
Correio da Cidadania: Como foi a pesquisa e produção do último de seus filmes, sobre a greve geral de 1917 em São Paulo?
Carlos Pronzato: Quando iniciamos a produção em 2016, não imaginaríamos que estaríamos vivenciando um período tão dramático e recessivo na política nacional, inclusive com greves importantes em abril e junho deste ano, que nalguma medida traziam à memória aquela que foi a greve mais importante do Brasil até hoje, inigualada nos aspectos sociais que colocou na sua mira e o terremoto que provocou nas autoridades da época, parando completamente a cidade de São Paulo em 1917.
Este fato nos fez refletir muito fortemente sobre os reflexos daquela greve nos dias de hoje durante a construção do filme e como poderiam ser aproveitadas as experiências daqueles operários e operárias nos dias de hoje, apesar de serem cenários completamente diferentes. Quase caímos na tentação de criar links daquele episódio histórico com as greves da atualidade, mas acabamos preservando a autenticidade daquela mobilização, resguardando-a de qualquer contaminação do espúrio jogo de interesses da política atual.
Pensamos que o melhor seria a recepção por parte do público de um material de impacto (claro que filtrado através dos entrevistados estudiosos do tema), relatando aquelas ações revolucionárias e resgatando seu sentido de extrema radicalidade em prol de uma verdadeira transformação da realidade, como tentaram as organizações de orientação anarquista daquela época. Reflexos que se traduziram na legislação trabalhista que hoje está sendo desmontada.
O processo de pesquisa transcorreu normalmente, contamos com a solidariedade de diversas instituições como o AEL (Arquivo Edgar Lehuenrot da UNICAMP), O CEDEM (Centro de Memória da UNESP), o Arquivo Público de São Paulo e outros que nos abriram as portas gentilmente. Assim como contamos também, e principalmente, com a acolhida entusiasta de todos os entrevistados.
Correio da Cidadania: Como você descreve o perfil ideológico, dentre outras dimensões, daquelas pessoas que fizeram parte do movimento e praticamente inauguraram as lutas trabalhistas no país, dentro dos moldes e da legalidade pós-escravista?
Carlos Pronzato: Bem, esse é um tema que cria certas polêmicas nos debates que tivemos até hoje nas pré-estreias que iniciamos no mês do centenário, em julho, em diversas exibições pelo país. Tentamos manter intacto o contraponto entre socialistas e anarquistas, principais forças que aglutinavam o movimento social da época, mas demos a devida proeminência ao movimento anarcossindicalista e outras vertentes dessa corrente ideológica, na orientação da maré humana que lutou pela reivindicação dos seus direitos perante o patronato e as autoridades.
Sem essa orientação, a greve geral não teria atingido a envergadura que atingiu em julho de 1917. Ou seja, tentamos verificar essas posições no elenco dos entrevistados e o resultado, cremos, se alinha com a realidade de cem anos atrás, apesar do obscurantismo que prevaleceu sobre aquele episódio na historiografia nacional até anos recentes, tentando atribuir as conquistas sociais dos trabalhadores a movimentos posteriores, ou seja, à era Vargas, a partir de 1930, com a implementação da legislação trabalhista que vem sendo destruída há mais de um ano com a Ponte (precipício) para o futuro (documento do governo federal elaborado em 2016).
Correio da Cidadania: Como você já destacou, trata-se de capítulo até hoje pouco conhecido pela população brasileira. Em sua compreensão, quais foram os principais desdobramentos desse movimento?
Carlos Pronzato: Certamente, e apesar de tenazes investigadores que vêm se debruçando sobre o tema nos últimos anos, ainda permanece na escuridão para a grande massa da população, justamente quem mais deveria conhecer este episódio para enfrentar com maior ímpeto a quadrilha que arrebatou sorrateiramente o poder político neste país.
O desdobramento principal certamente é o nascimento da classe operária brasileira, é o abandono definitivo dos operários como “caso de polícia”, como eram tratados antes de 1917, pelas autoridades a serviço da oligarquia com sua Força Pública (a Polícia da época), resguardando seus interesses de classe acomodada.
A partir desse momento começam a ser construídas, ou melhor, adquirem status de leis muitas das reivindicações pelas quais lutaram, como as 8 horas, a eliminação do trabalho infantil, o fim dos abusos contra mulheres e crianças nos postos de trabalho e outras questões hoje raríssimas, como a redução do preço dos aluguéis para a classe trabalhadora e a luta pela liberdade dos trabalhadores presos em manifestações, o principal item em qualquer negociação com governos naquela época, reivindicações estas hoje relegadas a algum lugar secundário na lista de reivindicações.
Correio da Cidadania: Do lado oposto, quais foram as respostas que as burguesias brasileiras organizaram ao longo do tempo após essa vitória dos trabalhadores?
Carlos Pronzato: A resposta continua exatamente igual: repressão constante. Claro que no início, no auge das manifestações de 1917, através de uma bem organizada trama de interesses corporativos da sociedade civil, capitaneada pelos jornalistas dos meios mais influentes, que operaram como um ente negociador, o patronato ofereceu garantias e concedeu diversas conquistas aos operários, mas imediatamente após a calmaria, em fins de julho de 1917, começaram as prisões dos líderes e as deportações da maioria deles, já que muitos eram estrangeiros, principalmente italianos.
Através de todos os governos, com pausas menores durante governos reformistas que conseguem um ou outro acordo conciliador com o capital, a resposta da burguesia não mudou e jamais vai mudar. Tanto por meio de militares como políticos sempre haverá a repressão para o resguardo dos seus privilégios. A menos que o espírito da revolta, o autêntico, sem amarras nem condições e nem interesses de nenhum tipo prime de novo, como cem anos atrás.
Correio da Cidadania: Qual importância você considera que há em resgatar esse episódio histórico que acaba de completar 100 anos, ao lado da Revolução Russa, diante do momento que vivemos no Brasil e no mundo em termos de capital e trabalho?
Carlos Pronzato: Acho que a resposta foi dada na pergunta anterior. A memória é imprescindível para inserir nossa atuação no presente. Resgatá-la e colocá-la em evidência hoje é fundamental. O problema é que como investigadores não contamos com a máquina do Estado (eu particularmente nem durante governos de centro-esquerda contei com ela, e hoje ficamos numa situação pior ainda) e nem com as estruturas e recursos de partidos e sindicatos para repercutir estes materiais. Contamos, sim, com apoios estruturais e às vezes até com pequenos apoios orçamentários para este tipo de obras políticas.
Mas com um pouco mais de empenho e vontade política desses estamentos do Estado, filmes como os nossos, que pretendem intervir na realidade política, poderiam atingir mais facilmente os trabalhadores. Portanto, a importância do tema é verificada no interesse daqueles que têm as possibilidades de difundir estas obras que abordam a história social e política dos trabalhadores, no meio dos trabalhadores.
Acredito que o centenário da Revolução Russa trouxe ao cenário mundial, de retrocessos, a possibilidade de novas luzes através do exame crítico daquela experiência ímpar dos conselhos populares (sovietes) e de alguma maneira repercutiu sobre os 100 anos da primeira greve geral do Brasil também, colocando em evidência esta luta sem fim contra o capital, uma luta sem fronteiras.
Correio da Cidadania: Você tem novos roteiros em vista? Teriam relação com os filmes que mencionamos aqui?
Carlos Pronzato: Sempre tem, a gente realiza muito pouco da quantidade de roteiros e ideias que vão surgindo. O resgate da memória assim como a conjuntura atual sempre se entrelaçam de modo a obter uma simbiose explosiva no momento atual e em todo os momentos sucessivos de ataque à classe trabalhadora. E para isso devemos prestar atenção constante a História e a outras histórias que não fazem parte do corpus institucional do Estado e também à atualidade e criar essas pontes para nos inserirmos nos conflitos com nossas armas, no nosso caso, artísticas e de mobilização real, já que participantes no processo nas ruas.
A relação, portanto, com os filmes anteriores é sempre contínua, já que parte de um rosário de resistências através das épocas, onde podemos incluir os levantes estudantis, as ocupações do campo (MST e outros) e principalmente hoje da cidade (principalmente o MTST), as lutas dos trabalhadores pelo resguardo de uma legislação trabalhista digna, ou seja, todos temas que fazem parte do conteúdo dos filmes de intervenção política cujas relações são contínuas e retroalimentadoras.
E por falar em efemérides, neste ano que se inicia teremos os 50 anos de 1968, um bom momento para falarmos de quando as pessoas iam às ruas para enfrentar o poder, tal como, salvando as distâncias com aquele emblemático ano de repercussão mundial, o povo brasileiro foi às ruas em 2013, outro ano que ainda não acabou...
Para obter o filme:
www.lamestizaaudiovisual.com.br ou carlospronzato@gmail.com
Facebook: Carlos Pronzato
Whatsapp: 21 9 7995 7981
(*) Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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(Com o Correio da Cidadania)
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