“O cantinho de chorar é lá fora”
Marina Amaral (*)
O relato vem com a força da indignação. Espancada pelo marido, ela se encaminhou pela segunda vez à delegacia da mulher do bairro, agora levando o boletim de ocorrência e o laudo do IML, que constatou hematomas e um ferimento na orelha, causado por uma mordida (!). Ela queria afastar o agressor da casa em que vive com o filho de 7 anos, que presenciou a violência. Mas a delegada se negou a enviar o pedido para o juiz conforme estabelece a Lei Maria da Penha.
“Em 8 anos de casamento ele nunca te agrediu? Como vou dizer que ele é violento?”. Ela recobra o fôlego. “Se ele não fosse violento, não teria me agredido. A senhora quer que eu espere até ele me bater de novo?”, conta com uma ponta de orgulho por ter conseguido responder à delegada.
Mas não adiantou. A delegada a mandou pensar melhor e voltar “de cabeça fria”. Quando se levantou para sair, uma outra mulher entrou na sala, toda machucada, aos prantos. “Sabe o que a delegada disse pra ela? O cantinho de chorar é lá fora. Você acredita?”.
A história que ouvi hoje de manhã de uma pessoa próxima vem com aquela intensidade que se ouve na voz das vítimas em que o socorro é negado, e a expectativa de apoio substituída por humilhação. Nunca será demais denunciar esses casos, cobrar dos responsáveis, investigar os motivos. A soltura de 137 pessoas detidas ilegalmente na festa dos milicianos depois de uma reportagem do The Intercept é motivo de comemoração para todos os jornalistas.
A defesa intransigente dos direitos humanos é intrínseca ao jornalismo. Tirar da invisibilidade aqueles que sofrem agressões diárias, dar voz aos que estão na luta pelos seus direitos, às mulheres, aos negros, aos indígenas, é ainda hoje inovador.
Como revela outro fato desta semana: a fraca cobertura pela imprensa do Abril Indígena no momento mais dramático desde a Constituição de 1988. O embate entre o Congresso e o movimento indígena – que tem pela primeira vez uma pré-candidata à vice-presidência da República, Sônia Guajajara (foto), uma liderança mulher, carismática e moderna – teria tudo para se tornar capa de jornal: é jornalisticamente rico, politicamente relevante e crucial para o país – além de despertar interesse internacional. Ainda assim, foi relegado a materinhas aqui e ali.
É por esse motivo que realizamos, pela terceira vez, uma série de reportagens investigativas na Amazônia. Na primeira delas, publicada em 2012, abordamos os megaprojetos de infraestrutura do governo. Na segunda, o foco foi a questão fundiária. Na série que se encerra hoje, a Amazônia Resiste, publicamos 17 textos e 12 vídeos em oito meses, em um trabalho que se iniciou na floresta e se encerrou em Brasília, no Congresso Nacional, onde mulheres e indígenas são igualmente sub-representados e alvo da mesma ofensiva retrógrada contra os seus direitos.
Como disse o procurador Felício Pontes em entrevista à Pública, a Justiça é a única esperança daqueles e daquelas que sentem na pele o retrocesso do país. Esperamos que o jornalismo seja também capaz de impactar essa realidade. Sem poupar, data vênia, a própria Justiça.
(*) Marina Amaral é co-diretora da Agência Pública
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