Base governista insiste em ignorar convenção da OIT de proteção de comunidades indígenas

                                                                       
Linha de energia prevista em Terra Indígena Waimiri-Atroari é bandeira eleitoral de parlamentares de Roraima. Mais de 2,6 mil índios morreram por causa da construção de rodovia e ação das Forças Armadas.

A reportagem é publicada por Instituto Socioambiental - ISA, 23-05-2018.

Um ofensiva em várias frentes está tentando viabilizar uma linha de transmissão de energia através das terras dos índios Waimiri-Atroari (RR/AM), atropelando seu direito de consulta previsto na Constituição e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. As duas normas garantem a consulta “livre, prévia e informada” de populações indígenas e tradicionais sobre qualquer medida administrativa ou legislativa que as afete.

Os Waimiri-Atroari sofreram um massacre durante a ditadura militar (1964-1985). Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entre os anos 1960 e 1970 pelo menos 2.650 pessoas da etnia morreram em consequência da ação direta das Forças Armadas, da construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista) e da hidrelétrica de Balbina e da política do governo da época de abrir a área a mineradoras.

A construção do linhão é uma bandeira eleitoral dos políticos de Roraima, inclusive do líder do governo no Senado, Romero Jucá (MDB). Eles argumentam que o Estado depende de usinas térmicas caras e da importação de energia da Venezuela, sofre com os apagões e correria o risco de um colapso do fornecimento por causa da crise no país vizinho. Faltando alguns meses para as eleições, cresce a pressão pela implantação da obra.

O Ministério de Minas e Energia (MME) está tentando fazer valer uma interpretação jurídica que permita driblar a obrigatoriedade à consulta com base na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Terra Indígena (TI) Raposa-Serra do Sol (RR), de 2009. A ideia é enquadrar o linhão na categoria de obra de “interesse da Política de Defesa Nacional” e, assim, dispensar a consulta às comunidades. O jornal Folha de S.Paulo confirmou que o MME pediu ao Ministério da Defesa um parecer que corrobore a tese. O objetivo é subsidiar um decreto presidencial sobre o assunto.

A 5ª condicionante da decisão do STF afirma: “o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai”.

Conforme outras decisões do próprio STF, no entanto, as medidas previstas no caso Raposa-Serra do Sol referem-se a uma situação concreta específica e, portanto, não tem “efeito vinculante”, ou seja, não podem ser aplicadas automaticamente a outras TIs.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) publicou uma nota de repúdio à iniciativa do MME.

Com o objetivo de viabilizar o linhão entre Amazonas e Roraima e outros empreendimentos, a Casa Civil pretende retomar a discussão sobre a regulamentação do direito à consulta. O temor de organizações indígenas é que a iniciativa restrinja esse direito. Com o pior desempenho nas demarcações desde a Redemocratização e sustentado pela bancada ruralista, o governo Temer é considerado anti-indígena. Questionada, a assessoria da Casa Civil respondeu apenas que “não há proposta fechada para regulamentação ainda” e que o tema está “em análise e discussão no governo”.

Em 2013, representantes das comunidades indígenas recusaram-se a negociar a regulamentação proposta pelo governo Dilma Rousseff enquanto não fosse revogada a Portaria 303/2013 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma previa a aplicação das determinações do caso Raposa-Serra do Sol a todas as TIs, já demarcadas e em demarcação. Pouco depois, a portaria foi suspensa. Em 2017, o governo Temer retomou a iniciativa, desta vez na forma de um parecer da AGU, que está em vigência. Na prática, ele inviabiliza os procedimentos demarcatórios.

“A consulta é um direito fundamental de aplicação imediata. A regulamentação pode ser feita, mas não é indispensável”, pontua a advogada do ISA Biviany Rojas. “Não há condições políticas para retomar a discussão da regulamentação enquanto o Parecer 001/2017 da AGU estiver vigente”, defende. Ela informa que a proposta sobre o assunto em discussão no governo tem várias inconstitucionalidades, entre elas, excluir comunidades tradicionais como ribeirinhos e extrativistas, cujo direito à oitivas já foi reconhecido pelo STF em decisão recente”, comenta.

“Jabuti”

Em outra frente, uma comissão mista do Congresso aprovou, na semana passada, a Medida Provisória (MP) 820/2018, que prevê ações de assistência aos refugiados vítimas da crise da Venezuela. A MP precisa ser votada no plenário da Câmara e, se for aprovada, vai ao do Senado. A MP contém “contrabandos legislativos”, também conhecidos como “jabutis”, propostas sem relação direta com o tema principal da norma. Em decisão de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu esse tipo de manobra.

Um dos “jabutis” altera a legislação do licenciamento ambiental para, na prática, tentar restringir o direito à consulta. A redação diz que comunidades indígenas afetadas por obras devem ser consultadas em, no máximo, três meses, a contar da apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima). 

Prevê ainda que a Fundação Nacional do Índio (Funai) terá apenas um mês para autorizar a entrada de técnicos nas TIs para a elaboração de estudos ambientais, “a contar da data de apresentação do plano de trabalho pelo empreendedor”. Se o prazo não for cumprido, o responsável pela obra poderá concluir o levantamento sem dados de campo. A legislação atual não prevê um limite de tempo para a oitiva aos índios ou a autorização dos estudos.

O relator da MP e autor da emenda que cria a nova regra é o deputado federal e candidato à reeleição Jhonatan de Jesus (PRB-RR). O parlamentar é filho de Mecias de Jesus, deputado estadual (PRB) e pré-candidato ao Senado.

Jhonatan de Jesus nega que sua proposta seja um “jabuti”, mas reconhece o risco dela ser retirada da MP por um “ato de ofício” do presidente da Câmara ou do Senado - os chefes das duas casas legislativas têm essa prerrogativa e podem usá-la para cumprir a decisão do STF.

Jesus avalia que, como a maioria das medidas em tramitação no Congresso, a MP 820 não será votada antes do início do recesso parlamentar, que começa na segunda quinzena de julho. A norma caduca em 14/6.

Parlamentares correm contra o relógio para tentar aprovar projetos de seu interesse porque, em junho, com o início das festas juninas e da Copa do Mundo, o quórum no Congresso vai baixar, inviabilizando votações importantes. O mesmo vai ocorrer no segundo semestre, por causa da campanha eleitoral.

Jesus argumenta que Roraima é o Estado brasileiro mais afetado pela crise da Venezuela e que o problema do fornecimento de energia agrava a situação. Ele diz que a obra só não saiu do papel até hoje por falta de vontade do governo federal e pela disputa dos políticos locais para ser reconhecidos como responsáveis pela viabilização do empreendimento, e não pela resistência dos índios.

O deputado criticou a iniciativa do MME e diz defender o direito de consulta dos Waimiri. “O Estado de Roraima está sendo prejudicado por falta de anuência do governo em querer dialogar com as comunidades”, acusa. Jesus diz que os prazos previstos na MP são suficientes e que as oitivas vão permitir que os índios exijam dos construtores pelo linhão benefícios como “royalties”, fornecimento de energia, serviços de saúde ou construção de escolas.

Jesus informa que tentará reintroduzir no texto da MP outro “jabuti”: o dispositivo que retira da TI São Marcos (RR) a sede do município de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela. A redação original do relatório de Jesus previa a medida, mas ela foi retirada a pedido de parlamentares.

Convenção 169 da OIT

De acordo com a Convenção 169 da OIT, qualquer obra ou medida que afete populações indígenas e tradicionais deve ser precedida de uma consulta que permita que elas sejam informadas sobre vantagens e desvantagens, garantindo o tempo suficiente para o entendimento do assunto, conforme sua língua e costumes, de modo que sejam capazes de decidir ou consentir de forma autônoma sobre ele.

Biviany Rojas afirma que os prazos previstos pela MP são inviáveis e ilegais. “Dependendo do objeto da consulta, das informações disponíveis para sua realização, das características culturais, demográficas, geográficas e organizacionais da população em questão, o prazo para realização da consulta será diferente e deve ser pactuado, caso a caso, entre o Estado e a comunidade”, afirma.

Na prática, dificuldades com a língua, de acesso e comunicação, especialmente no caso de locais remotos; a quantidade e diversidade de comunidades e formas de representação e organização de uma TI; a complexidade dos assuntos e das medidas previstas para a realização da obra; a precariedade ou disponibilidade de informações sobre essas populações e territórios podem influenciar o tempo necessário para as oitivas.

Uma nota técnica do Ministério Público Federal (MPF), divulgada nesta semana, reforça que a emenda de Jhonatan de Jesus é um “contrabando legislativo”, que agride o direito de consulta dos índios. “Os prazos sugeridos para consulta, além de não serem adequados nem para uma análise profunda sobre os impactos de um projeto de grande porte, menos ainda poderiam estar adequados para um processo de informação e apropriação correta por parte das comunidades indígenas”, diz o documento. O texto salienta que o relatório aprovado pela comissão mista do Congresso corresponde a uma regulamentação do direito à consulta, a qual ela mesma deve ser precedida de uma consulta prévia.

A Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) também divulgaram notas técnicas contra contra a MP 820. O documento do Ibama lembra que o “contrabando legislativo” torna o licenciamento mais vulnerável à ações judiciais.

“Um prazo rígido para a consulta aos povos indígenas e tribais pode comprometer a qualidade e até a viabilidade da consulta, uma vez que esses povos geralmente possuem uma relação íntima com os ciclos naturais, dependendo de períodos chuvosos, quentes ou de migração de certas espécies, por exemplo, para manter seu modo de vida tradicional”, afirma o documento.

A ofensiva do governo federal e do Congresso contra os Waimiri também tenta passar por cima de duas decisões judiciais. A primeira, de novembro, suspendeu a licença prévia da linha de transmissão, concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), em 2015. Ela determinou ainda que seja realizada a consulta aos Waimiri-Atroari conforme a Convenção 169.

A outra decisão, uma liminar de janeiro, reconheceu violações praticadas contra os Waimiri-Atroari quando da abertura da rodovia BR-174 e igualmente determinou que empreendimentos que causem impacto na terra indígena não podem ser realizados sem o consentimento prévio dos índios.

No início de março, para tentar se contrapor às duas decisões, a governadora de Roraima, Suely Campos, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF contra o direito de oitiva dos indígenas. Ela também questiona os processos de demarcação de TIs no país e pede a suspensão temporária de todos esses procedimentos. Ainda não há data prevista para a análise da ação.

O massacre dos Waimiri-Atroari na ditadura

Com o argumento de integrar a Amazônia, o governo militar promoveu um genocídio contra os Waimiri-Atroari. Quase 90% de sua população foi dizimada. No início dos anos 1970, a população contava com mais de três mil pessoas e, em 1983, o número era de 350 índios. As informações constam do relatório da CNV.

No fim da década de 1960, o governo militar decidiu construir a BR-174, entre Manaus e Boa Vista. O projeto, no entanto, desconsiderava a presença dos Waimiri. De um dia para o outro, seu território foi invadido por máquinas e homens armados, que, além de tudo, provocaram uma série de epidemias. Os Waimiri resistiram, mas o Exército considerava a obra um fato consumado e resolveu usar a força.

A Comissão da Verdade do Amazonas menciona relatos sobre ataques aéreos e bombardeios sobre as aldeias, inclusive com a utilização de armas químicas e a disseminação de doenças. Em 1974, um avião militar teria jogado um pó branco em uma das aldeias. Os 33 presentes teriam morrido na mesma hora. Ainda segundo a comissão, comunidades inteiras desapareceram por causa da ação dos militares.

Em 1981, o governo federal autorizou a mineradora Paranapanema a explorar uma mina de cassiterita no território e concedeu 526 mil hectares na área à empresa. Durante os anos de exploração, os principais afluentes do rio Alalaú, que corta a TI, foram poluídos com rejeitos metálicos. Além disso, a mineradora construiu uma estrada que cortava a área por 38 km.

Em 1982, o governo federal começou a construção de outro mega empreendimento que iria atingir a TI: a hidrelétrica de Balbina. Inaugurada em 1987, a usina alagou 234 mil hectares do território dos Waimiri, transformando a mata em um cemitério de árvores. As águas da barragem são impróprias para consumo e banho.

Segundo o relatório, durante a construção da BR-174, um grupo de grileiros promoveram, junto com o governador do do Amazonas, Danilo de Matos Areosa, a grilagem de terras dos Waimiri.

(Com o Instituto Humanitas Unisinos)

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