Khashoggi vs. 50.000 crianças iemenitas massacradas
Peter Koenig (*)
Este texto é escrito com justificada indignação. Indignação perante a hipocrisia com que os media, governos e instituições ocidentais reagiram ao assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi. Trata-se de um assassínio repugnante. Mas que Parlamento Europeu o condene, e nunca tenha encontrado razões para condenar os massacres que a Arábia Saudita leva a cabo no Iémen, é igualmente repugnante.
O Parlamento Europeu solicitou ontem (25 de Outubro) um embargo imediato à venda de armas à Arábia Saudita, sancionando desse modo o Reino delinquente se se vem juntando aos EUA e Israel como o principal fornecedor de crimes em todo o Médio Oriente e no mundo. A França disse todavia que apenas aplicará sanções se ficar provado que Riad esteve efectivamente envolvida no assassínio do controverso jornalista saudita. Ao menos a senhora Merkel tinha dito há alguns dias que não iria fornecer armas aos sauditas – em consequência do repugnante crime cometido sobre Jamal Khashoggi.
É Indubitável que se tratou de um horrível assassínio que teve lugar no Consulado saudita em Istambul, com o corpo de Jamal Khashoggi possivelmente serrado em bocados e, segundo os relatos mais recentes, enterrado no pátio traseiro do Consulado. E tudo isto, tal como é agora geralmente admitido, executado por ordem de Riad.
Para aligeirar o golpe – por razões de negócio – alguns países europeus argumentam que poderá não se ter tratado de um assassínio premeditado mas possivelmente de um “acidente” mortal, o que evidentemente alterar as premissas e aligeirar a punição – e as vendas de armamento poderão continuar. De qualquer modo, não passa de negócio.
A Europa não tem moral, nem ética, nem nada. A Europa, representada por Bruxelas, e em Bruxelas pela Comissão Europeia (CE) não-eleita não passa, para todos os objectivos práticos, de um mero ninho de lacraus, um ninho de criminosos políticos de colarinho branco, gente dos negócios e em larga medida uma populaça de 500 milhões em larga medida sujeita a lavagem ao cérebro. Existem algumas excepções entre a população e, felizmente, o seu núcleo de “acordados” tem vindo gentilmente a crescer.
Mesmo a Suíça, um país neutral segundo a sua Constituição e um não-membro da UE, embora um firme aderente da União [não] Europeia pela via de mais de 110 contratos bi e multilaterais, ficou a saber-se ontem que está a auxiliar a Arábia Saudita na conversão do helicóptero civil de fabrico suíço Pilatus em feroz máquina de guerra.
O Pilatus sempre teve a reputação dessa controversa convertibilidade e era particularmente conhecido na Suíça por essa razão – mas agora ultrapassaram o limite do que é tolerável, ajudando os criminosos e belicistas sauditas a montar uma máquina de guerra voadora no próprio país dos sauditas – totalmente contra a lei suíça e a Constituição suíça, mas inteiramente tolerada pelo governo suíço.
Voltando à questão concreta: foi necessário o horrendo assassínio de um famoso jornalista, de nacionalidade saudita e crítico dos sauditas para que os Europeus reagissem – e, não se esqueçam, a contragosto. Prefeririam seguir a linha de Donald Trump: porquê perder a venda de armas aos sauditas no valor de 110 milhares de milhões de dólares por causa do assassínio de um jornalista? Afinal de contas, negócios são negócios. Tudo o resto é uma farsa.
Há já três anos e meio que os sauditas empreenderam uma horrenda guerra no Iémen. Massacraram dezenas de milhares de iemenitas – segundo a Comissão de Direitos Humanos da ONU mais de 50.000 crianças iemenitas morreram em consequência de bombardeamentos aéreos sauditas com bombas fornecidas pelo Reino Unido e aviões de guerra fornecidos pelos EUA, em consequência de doenças resultantes da ausência de sistemas sanitários e de água potável, como a cólera, e – um crime ainda pior – em consequência da fome extrema, a pior fome da história recente segundo a UNICEF/WHO, imposta pela força uma vez que os sauditas, com o consentimento dos seus aliados europeus, encerraram todos os portos de entrada incluindo Hodeida, o mais importante porto do Mar Vermelho.
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Os Europeus, juntamente com os EUA, têm sido mais do que cúmplices deste crime contra a humanidade – destes horríveis crimes de guerra. Imaginem que algum dia é criado um Tribunal como o de Nuremberga para julgar os crimes de guerra cometidos nos últimos 70 anos. Nem um único dos líderes ocidentais que ainda esteja vivo será poupado. É nisto que nós – no Ocidente – nos tornámos. Num ninho de criminosos de guerra – criminosos de guerra em resultado de simples ganância. Inventaram um sistema neoliberal-tudo-é-mercadoria em que não existe nem regras nem ética nem moral – apenas o dinheiro, o lucro e mais lucro. Qualquer forma de maximização do lucro – a guerra e a indústria da guerra – é boa e é aceite. E o Ocidente, com a sua política de fazer dinheiro seja como for, está a impor este sistema nefasto e destrutivo em todo o lado por meio da força e das “mudanças de regime,” caso a coisa não esteja a ser voluntariamente aceite.
E nós, o povo, tornámo-nos cúmplices disso, na medida em que vivemos no conforto e no luxo e não poderíamos estar menos preocupados do que estamos com o que os nossos “líderes” andam a fazer ao resto do mundo, aos chamados humanos menores que vivem na miséria como refugiados, com as suas casas e cidades destruídas e bombardeadas em cinzas, sem escolas, sem hospitais, e em grande medida sem alimentos – é verdade: todos os dias mais de 70 milhões de refugiados estão em deslocação, na sua maioria vindos do Médio Oriente destruído pelo Ocidente. Porque haveríamos de nos preocupar? Vivemos bem. E em contrapartida estes refugiados poderiam roubar-nos os empregos. Não os deixem invadir os nossos abrigos. É preferível continuar a reduzir à bomba os seus países a ruínas.
O Iémen, uma posição estratégica muito ambicionada, não deverá evidentemente ser governado por Houthis, um grupo de revolucionários muçulmanos com inclinações socialistas que integra o Shia Zaidi, um ramo do Shia Imamiya do Irão. Acabaram por ficar fartos de décadas de manipulação do seu governo por parte de Washington. E quem melhor do que os lacaios da Arábia Saudita para realizar o trabalho sujo de Washington? E sim, não têm de o fazer sozinhos. São-lhes fornecidos armamentos de todo o lado da Europa, sobretudo da Grã-Bretanha, e da França, também da Espanha, e durante algum tempo também da Alemanha – e sim, também da neutral Suíça.
Não importa que dezenas de milhares de crianças sejam mortas, que segundo a Comissão de Direitos Humanos da ONU 22 milhões de iemenitas (de uma população de cerca de 30 milhões) estejam em risco de fome severa, e isso inclui 8 milhões de crianças – crianças que na sua maioria deixaram de ter acesso a escolas, assistência sanitária e alimentação – uma geração inteira ou mais sem educação, um bem planeado fosso na sociedade como sucede na Síria, Iraque e Afeganistão. Matando e privando crianças da satisfação de necessidades básicas o Ocidente está a criar um crescente fosso educacional, de pessoas que de outra forma iriam combater pelos seus países, pelas suas sociedades. Não existem. E isso torna tão mais fácil para o Ocidente o simplesmente assumir o controlo da sua posição estratégica, dos seus recursos naturais, apropriar-se e esvaziar os fundos de segurança social acumulados pela sua força de trabalho.
Não será isto suficiente para que a ilustre populaça que vive no luxo ocidental se recoste nos seus cadeirões e pense no assunto? – E se um dia os papéis se invertem e nós, o ocidente, nos encontramos perante a justiça? – Existe alguém no ocidente suficientemente audacioso e realista para encarar essa possibilidade? – E, como é visível nos dias de hoje, a história dá passos de gigante. Estamos no século XXI – a Inteligência Artificial (IA) mais do que se integrou na nossa sociedade. E se – se aqueles que consideramos inferiores e inimigos nossos estiverem efectivamente alguns passos à nossa frente na ciência da IA – e possam inverter o quadro com alguma rapidez?
E enquanto nos admiramos sobre a razão por que os iemenitas massacrados pelos sauditas não suscitam agitação nos media ocidentais, as nossas projecções lineares de crescimento do PIB ocidental fornecidas pelo FMI atingem índices fantásticos por alturas de 2030, ignorando a taxa de desemprego de 20% resultante da IA que alguns prevêem. Esses números contraditórios não têm importância se pudermos alcançar um resultado expressivo matando crianças iemenitas. Mas é necessário o assassínio de Khashoggi para deter – mesmo que temporariamente, e apenas se estivermos com sorte – a máquina de guerra saudita. A população do Iémen não tem importância.
Porquê?
Porque é que o assassínio de um jornalista – é certo que um assassínio horrível e medonho realizado pelo governo do seu próprio país. Independentemente de quão controverso Jamal Khashoggi era, ele escrevia para os media ocidentais, para os donos da verdade tais como o Washington Post e o NYTimes. Poderá ter sido isso que o tornou mais importante do que 50.000 crianças iemenitas massacradas e mutiladas – mais importante no sentido de que é apenas em resultado do seu abjecto assassínio que os Europeus irão – talvez – reagir e “sancionar” os sauditas.
Mas mesmo isso não é garantido – uma vez que o Mestre Transatlântico Trump tem muitos trunfos na manga, que pode adiantar e coagir os fantoches europeus no sentido de seguirem o seu odioso exemplo e poupar Riad de qualquer punição, em particular no que diz respeito a armas. No fim de contas, trata-se de negócio. Crianças mortas são apenas isso, iemenitas mortos, uma geração a menos com a qual nos preocuparmos.
(*) Peter Koenig é Investigador Associado do Centre for Research on Globalization (Centro de Investigação sobre Globalização).
Fonte: https://www.globalresearch.ca/khashoggi-versus-50000-slaughtered-yemeni-children/5658192
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