Ponha na primeira página: já não há repórteres (Aprendi a conviver com grandes textos como os de José Hamilton Ribeiro, David Nasser, José Franco, Ponce de Leon, Moacyr Japiassu, Leopoldo Siqueira, Wilson Angelo, Wander Piroli, Murilo Rubião, Dídimo Paiva, Carlos Drummond de Andrade, Eneida de Morais... Hoje ,infelizmente, tudo parece um passado distante...Muito distante! José Carlos Alexandre)

                                                                   
 John Pilger 

O acelerado desaparecimento de um jornalismo deontologicamente isento e independente é um dos aspectos mais flagrantes da degradação das ditas “democracias” ocidentais. Em seu lugar, as redacções dos grandes media enchem-se de propagandistas do poder. O objectivo de informar desapareceu, e o que resta é um desonesto e sistemático esforço de dar cobertura e justificação às agressões sociais e militares do grande capital e do imperialismo, e de silenciar e caluniar qualquer voz crítica.

A morte este ano de Robert Parry (imagem) foi como uma despedida da era do repórter. Parry era “um pioneiro do jornalismo independente”, escreveu Seymour Hersh, que tinha muito em comum com ele.

Hersh revelou o massacre de My Lai no Vietname e o bombardeamento secreto do Camboja; Parry denunciou o Irão-Contra, uma conspiração de drogas e de armas que o levou à Casa Branca. Em 2016 eles produziram, em separado, provas convincentes de que o governo de Assad na Síria não tinha usado armas químicas. Não foram esquecidos.

Afastado dos media dominantes, Hersh teve de publicar a sua obra fora dos Estados Unidos. Parry instituiu uma página de notícias independente, Consortium News , onde num artigo final, na sequência de um AVC, se referiu à veneração do jornalismo pelas “opiniões aprovadas” enquanto as “provas não aprovadas são postas de lado ou desacreditadas, independentemente da sua qualidade.”

Embora o jornalismo sempre tenha sido uma extensão do poder instituído, alguma coisa mudou nos últimos anos. Os dissidentes não protestaram quando entrei um jornal nacional na Grã-Bretanha nos anos 60, e regressei a um metafórico mundo subterrâneo quando o capitalismo liberal avançou para uma forma de ditadura corporativa. Isto é uma viragem sísmica, com jornalistas a policiar a nova tendência para o conformismo (”groupthink”), como Parry lhe chamava, distribuindo os seus mitos e diversões, perseguindo os seus inimigos.

Observem a caça às bruxas contra os refugiados e imigrantes, o abandono premeditado por parte dos fanáticos do “Me Too” das nossas antigas liberdades, da presunção de inocência, o racismo anti-Rússia e a histeria anti-Brexit, a crescente campanha anti-China e a ocultação de alertas quanto a uma guerra mundial.

Com muitos jornalistas independentes, ou a sua maioria, banidos ou expulsos dos media dominantes, um cantinho da Internet tornou-se uma fonte vital de divulgação e análise baseadas em provas: o verdadeiro jornalismo. Páginas como wikileaks,org, consortiumnews.com, ZNet zcomm.org, wsws.org, counterpunch.org, informationclearinghouse.info, globalresearch.org, e truthdig.com, são leitura obrigatória para quem queira perceber um mundo em que a ciência e a tecnologia avançam prodigiosamente, enquanto a vida política e económica nestas medonhas “democracias” regride por detrás da fachada de espectáculo narcisista dos “media”.

Na Grã-Bretanha, só uma página da web proporciona crítica independente dos “media” de forma consistente. É a notável Media Lens – em parte porque os seus fundadores e editores, assim como os seus únicos redactores desde 2001, David Edwards e David Cromwell, concentram o seu olhar não nos suspeitos do costume, a imprensa Tory, mas nos modelos do conceituado jornalismo liberal: a BBC, o Guardian, o Channel 4 News.

O método é simples. Meticulosos na sua investigação, são respeitosos e delicados quando perguntam porque é que um ou uma jornalista produziu uma notícia parcial ou não revelou factos essenciais ou promoveu mitos desacreditados.

As respostas que recebem são sobretudo defensivas, por vezes ofensivas; algumas são histéricas, como se eles tivessem atacado uma espécie protegida.

Eu diria que Media Lens estilhaçou o silêncio sobre o jornalismo corporativo. Tal como Noam Chomsky e Edward Herman em Manufacturing Consent, eles representam um Quinto Estado que desconstrói e desmistifica o poder dos media.

O mais interessante é que nenhum deles é jornalista. David Edwards é um antigo professor, David Cromwell é oceanógrafo. Mas a sua compreensão da moral do jornalismo – um termo que raramente se usa, chamemos-lhe verdadeira objectividade – é uma qualidade básica das notícias de Media Lens.

Acho que o trabalho deles é heróico e eu distribuiria um exemplar do livro que acabam de publicar, Propaganda Blitz , em todas as escolas de jornalismo que prestam serviços ao sistema corporativo, como todas fazem.

Vejam o capítulo «Desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde», em que Edwards e Cromwell descrevem a parte fundamental desempenhada pelos jornalistas na crise do pioneiro serviço de saúde britânico.

A crise do SNS é o produto de um conceito político e dos media, conhecido por “austeridade”, com a sua linguagem desonesta e traiçoeira de “poupanças de eficiência” (o termo da BBC para os cortes das despesas públicas) e “escolhas difíceis” (a destruição deliberada dos pilares da vida civilizada na Grã-Bretanha moderna).

A “austeridade” é uma invenção. A Grã-Bretanha é um país rico com uma dívida à conta dos seus bancos desonestos, não da população. Os recursos que financiariam confortavelmente o Serviço Nacional de Saúde foram roubados em plena luz do dia pelos poucos a quem foi permitida a fuga a milhares de milhões em impostos.

Usando um vocabulário de eufemismos corporativos, o Serviço Nacional de Saúde, de financiamento público, está a ser deliberadamente dirigido por fanáticos do mercado livre, para justificar a sua liquidação. Pode parecer que o Labour Party de Jeremy Corbyn se opõe a isso, mas será mesmo assim? A resposta, muito provavelmente, é não. Pouco disto se fala nos media, e muito menos é explicado.

Edwards e Cromwell dissecaram a Lei da Saúde e da Assistência Social de 2012, cujo título inócuo oculta as suas consequências desastrosas. Desconhecida da maior parte da população, a Lei acaba com a obrigação legal de os governos britânicos fornecerem assistência à saúde, universal e gratuita: os alicerces sobre os quais foi instituído o SNS, na sequência da II Guerra Mundial. As empresas privadas podem agora insinuar-se no SNS, pedaço a pedaço.

Edwards e Cromwell perguntam: onde estava a BBC quando esta lei histórica estava a caminho do Parlamento? Com o compromisso estatutário de “proporcionar uma visão abrangente” e informar devidamente o público sobre “questões de política pública”, a BBC nunca esclareceu a ameaça sobre uma das instituições mais acarinhadas pela nação. Um cabeçalho a BBC disse: “Aprovada a lei que dá poder aos médicos de clínica geral”. Era pura propaganda de estado.

Há uma semelhança flagrante com a cobertura da BBC à invasão ilegal do Iraque do primeiro-ministro Tony Blair em 2003, que causou um milhão de mortos e muitos mais na miséria. Um estudo da Universidade de Gales, em Cardiff, concluiu que a BBC reflectiu “esmagadoramente” a linha do governo, subestimando as notícias sobre o sofrimento de civis. Um estudo Media Tenor colocou a BBC no fundo de um conjunto de emissoras ocidentais no que se refere ao tempo concedido aos opositores da invasão. O tão gabado “princípio” de imparcialidade nunca foi tomado em conta.

Um dos capítulos mais impressionantes em Propaganda Blitz descreve as campanhas de difamação montadas por jornalistas contra dissidentes, adversários políticos e denunciantes. A campanha do Guardian contra Julian Assange, o fundador da WikiLeaks, é a mais perturbante.

Assange, cujas épicas revelações da WikiLeaks deram fama, prémios de jornalismo e grandeza ao Guardian, foi abandonado quando já não lhe era útil. Depois, foi sujeito a um massacre injurioso e covarde, como raras vezes vi.

Sem que nem um cêntimo tenha sido entregue à WikiLeaks, um badalado livro do Guardian levou a um lucrativo filme de Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e David Leigh, descreveram gratuitamente Assange como uma “personalidade degradada” e “insensível”. Também revelaram a password secreta que ele havia confiado ao jornal, e que se destinava a proteger um ficheiro digital que continha os endereços telegráficos da embaixada dos EUA.

Com Assange agora encurralado na embaixada do Equador, Harding, no meio da polícia cá fora, regozijou-se no seu blogue de que “a Scotland Yard pode ser a última a rir”.

A colunista do Guardian, Suzanne Moore escreveu: “Aposto que Assange se entupiu-se cobaias esmagadas. Ele é realmente o maior monte de merda”.

A sra. Moore, que se intitula feminista, queixou-se mais tarde que depois de ter atacado Assange havia sofrido “insultos infames”. Edwards e Cromwell escreveram-lhe: “Realmente é uma vergonha, lamentamos ouvir isso. Mas como descreverias chamar a alguém ‘um monte de merda? Um insulto infame?”.

A sra. Moore respondeu que não o faria, e acrescentou: “Aconselho-vos a não serem tão arrogantes”.

O seu antigo colega do Guardian, James Ball, escreveu: “É difícil imaginar o cheiro da embaixada do Equador, em Londres, mais de cinco anos e meio depois de Julian Assange lá ter entrado”.

Esta perversidade de atrasado mental apareceu num jornal descrito pela sua editora, Katharine Viner, como “ponderado e progressivo”. Qual é a raiz deste revanchismo? É inveja, o reconhecimento perverso de que Assange conseguiu mais furos jornalísticos do que os seus franco-atiradores poderão arranjar durante toda a vida? É por ele se recusar a ser “um de nós” e envergonhar aqueles que há muito venderam a independência do jornalismo?

Os estudantes de jornalismo deviam estudar isto para perceber que a origem das “notícias falsas” não é só enganar (trollism) ou os cromos dos noticiários Fox, ou Donald Trump, mas um jornalismo untado de falsa respeitabilidade: um jornalismo liberal que afirma questionar o poder do estado corrupto mas que, na realidade, o corteja e protege e pactua com ele. A amoralidade dos anos de Tony Blair, da qual o Guardian não conseguiu reabilitar-se, é o seu eco.

“É uma época em que as pessoas anseiam por novas ideias e alternativas frescas”, escreveu Katharine Viner. O seu colaborador político, Jonathan Freedlan, desvalorizou o anseio dos jovens que apoiaram a modesta política do líder Labour, Jeremy Corbyn, como “uma forma de narcisismo”.

“Como é que este homem…”, zurrou Zoe Williams, do Guardian, “conseguiu chegar às urnas?” Juntou-se-lhe um coro de fala-baratos precoces, que fizeram fila para empunhar espadas afiadas quando Corbyn esteve perto de ganhar as eleições gerais de 2017, apesar dos media.

Noticiam-se histórias complexas, numa fórmula enviesada, de ouvir dizer e de omissão, como um culto: o Brexit, a Venezuela, a Rússia, a Síria. Na Síria só as investigações de um grupo de jornalistas independentes contaram isto, revelando a rede de apoio anglo-americano aos jihadistas na Síria, incluindo os que estão ligados ao ISIS.

Apoiado por uma campanha de “operações psicológicas”, financiada pelo Foreign Office britânico e pela USAID, o objectivo é iludir o público ocidental e acelerar o derrube do governo de Damasco, apesar da alternativa medieval e do risco de guerra com a Rússia.

A Campanha da Síria, montada por uma organização de relações públicas de Nova Iorque, a Purpose, financia um grupo conhecido como os Capacetes Brancos, que afirma, falsamente, ser a “Defesa Civil da Síria” e é apresentado sem qualquer crítica nos noticiários da TV e nas redes sociais, aparentemente a salvar vítimas de bombardeamentos que filmam e editam, embora os espectadores não sejam informados disso. George Clooney é um dos seus fãs.

Os Capacetes Brancos são apêndices dos jihadistas com quem trocam endereços. Os seus uniformes e equipamentos inteligentes são fornecidos pelos tesoureiros ocidentais. O facto de as suas proezas não serem questionadas pelas maiores agências noticiosas é indicador da grande influência daquela empresa de relações públicas, apoiada pelo estado, que governa hoje os media. Como recentemente fez notar Robert Fisk, nenhum repórter dos media dominantes transmite notícias da Síria directamente da Síria.

Num ataque insidioso, Olivia Solon, uma repórter do Guardian com base em San Francisco que nunca esteve na Síria, pôde difamar o trabalho investigativo e fundamentado das jornalistas Vanessa Beeley e Eva Bartlett sobre os Capacetes Brancos, como “propagado online por uma rede de activistas anti-imperialistas, teóricos da conspiração e trolls com o apoio do governo russo”.

Este abuso foi publicado sem permitir qualquer correcção, nem sequer o direito de resposta. A página de comentários do Guardian foi bloqueada, como documentam Edwards e Cromwell. Eu vi a lista de perguntas que Solon enviou a Beeley, que parece uma folha de acusação de McCarthy – “Já foi convidada a ir à Coreia do Norte?”

Quão baixo desceram já os media predominantes. O subjectivismo é tudo; slogans e insultos são provas suficientes. O que conta é a “percepção”.

Quando era comandante dos EUA no Afeganistão, o general David Petraeus declarou que chamava “uma guerra de percepção… travada continuamente, usando os media.” O que interessava não eram os factos mas a forma como a notícia funcionava nos Estados Unidos. O inimigo não declarado era, como sempre, o público bem informado e crítico da nação.

Nada mudou. Nos anos 70, conheci Leni Riefenstahl, cineasta de Hitler, cuja propaganda hipnotizava o público alemão.

Disse-me que as “mensagens” dos seus filmes não dependiam de “ordens superiores”, mas do “vazio submisso” de um público mal informado.

“Isso inclui a burguesia liberal, instruída?” perguntei.

“Toda a gente”, disse ela. “A propaganda ganha sempre, se a permitirmos”.

O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/50300.htm .
Tradução de Margarida Ferreira.

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