Cordel | Coisa de Preto
Texto valoriza a cultura negra no Brasil
Daniela Bento (*)
Rimas acompanham a percussão da música "Zumbi", de Naná Vasconcelos. / Daniel Lamir
Peço licença a você
Que ouve meu prosear
Vamos refletir um pouco
Sobre nosso caminhar
As histórias d'além África
Que venho aqui pra contar.
Nossa origem é muito nobre
E não tinha escravidão
Compreender esse fato
Muda sua redação
Quanto mais abrir a mente
Some a discriminação.
Não descendemos de escravos
Makota já alertou
Mas, fomos escravizados
E nem isso eliminou
Tanto talento, beleza…
Nosso canto anunciou.
Fala Kuti e Afrobeat
Pérola Negra e Zumbi
Clementina, Magareth
Valem mais que um rubi
Luta, arte e a cultura
Que não cabem num gibi.
Nossa luta tem pegada
Registros pra se escolher
Aqualtume, Acotirene
Exemplos a se colher
Milton Santos e Mandela
É só a mente acolher.
O que é coisa de preto?
É ficar limpando o chão?
Não ser líder do partido?
Nem chefe da redação?
Se você só pensa assim
Reveja a opinião.
Não guarde seu preconceito
Demostre sua visão
Não despreze nosso credo
Com sua bíblia na mão
Nosso Oxum e Olorum
Habita é no coração.
O nosso cabelo é lindo
Trançado ou pixaim
O nosso batuque anima
Mas não faz nada ruim
Mas uma fé que maltrata
Fere você e a mim.
Novembro reflete a luta
De uma matriz genial
Vinda de outro continente
Angola, Benguela, Guiné-Bissau…
Raízes da resistência
Fé e saber ancestral.
Consciência não tem cor
Ouço por aí dizer
Concordando com o fato
Lhe convido a combater
Toda forma de racimo
É preciso desfazer.
Navio negreiro trouxe
No porão, além de dor
A Quizomba, a capoeira…
Foi resistindo ao senhor
Babileke, Balafon,
São cantigas de tambor.
Em seus porões, viajava
Uma outra religião
Estranha aos portugueses
Sofrendo perseguição
Chamada feitiçaria
Mesmo após a abolição.
Você me impõe o seu credo
Em tudo que é local
Padre, freira e pastor
Grita alto no canal
Celebrar o meu axé
Vira pecado mortal.
Sua bíblia, sua espada
Não mata meu Candomblé
Nem todo o amém do mundo
Encobriu meu afoxé,
Maracatu, nosso coco
Samba na Ponta do pé.
Não fomos acomodados
Como teimam ensinar
A revolta dos malês
Quem lê pode constatar
A nossa luta diária
Resistindo o escravizar.
Antes que julgue meu credo
Deixe meu culto explicar
Na sua fé é batismo
Na minha é Catular
Você mergulha na água
Vou a cabeça raspar.
Se bebem sangue de Cristo
Pra com a fé comungar
Outras passagens falam
De um cordeiro imolar
Ignoram mesmo ato
Presente no Catular.
O que chamas de matança
Maldade e “demoniar"
É apenas oferenda
"Hóstia" do Catular
Sagração da divindade
Que se passa a Cultuar.
Batizado e catulado
Bebem da mesma visão
Os símbolos são diferentes
Cada um é sagração
Como rito de passagem
Onde se faz comunhão.
Tentei aqui descrever
Um pouco da nossa glória
Do passado do presente
Mostrar nossa trajetória
Debater o preconceito
Que persiste na história.
Reafirmando a luta
Concluo aqui meu cordel
Em busca de consciência
Foi que usei o papel
Vamos unir nossa luta
Pintar um novo painel.
*Daniela Bento é comunicadora popular e cordelista da Academia Sergipana de Cordel
(Com O Brasil de Fato)
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