Regular, não desmantelar o WhatsApp (Sei lá, se o governo mexer pode é estragar...José Carlos Alexandre)


Há muito tempo, as relações sociais e a constituição do espaço público têm sido atravessadas pelas lógicas de mídias. Entretanto, atualmente essas mídias, como o smartphone, que se condensa em muito mais do que uma via de acesso à internet, tem ocupado tamanho espaço que sequer é possível se conceber a divisão entre mundo off-line e on-line. “O celular é a primeira coisa que as pessoas tocam de manhã e a última coisa que elas olham antes de dormir”, observa Caio Machado, pesquisador do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro - ITS Rio. Para ele, todas essas formas de integrações de meios de comunicação convergem num só espaço público. “Os diálogos ‘on-line’ e ‘off-line’ se entrelaçam e se confundem, sendo uma distinção que não se sustenta mais hoje em dia”, reitera.

Compreender essa lógica significa, na perspectiva de Caio, observar o protagonismo que o WhatsApp, por exemplo, assume na vida das pessoas. Assim, não é difícil apreender por que há essa centralidade em momentos como campanhas eleitorais. “As pessoas empregam plataformas diferentes para situações diferentes, dependendo do público, da finalidade etc. Da mesma forma que escolhíamos entre um telefonema ou uma carta escrita à mão, escolhemos qual é o meio mais adequado para comunicar a nossa mensagem”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

O problema, entretanto, é que quem mais imediatamente adere à cartilha da comunicação desses tempos acaba se sobressaindo não só em novas estratégias comunicacionais, mas até na criação de formas de burlar regras já estabelecidas no espaço social. “Jair Bolsonaro soube se valer das redes sociais e montar uma articulação muito forte com seu eleitorado através das múltiplas plataformas”, exemplifica. E se é verdade que a campanha do presidente eleito dominou a circulação de informação através de robôs nas redes, 

Caio também alerta que “não podemos colocar toda a responsabilidade do sucesso de Bolsonaro na automação; as pessoas que aderiram e abraçaram a causa foram essenciais para o resultado”. “O momento não é apenas para a discussão do papel das plataformas nas eleições, mas também como estamos regulando o uso e o serviço da internet no Brasil”, observa. “Se usuários tivessem educação sobre como usar a internet de forma mais ativa e crítica, provavelmente menos pessoas acreditariam no conteúdo conspiracional que é propagado na forma de ‘fake news’”, completa.


Caio Machado é mestrando em Ciências Sociais da Internet pela University of Oxford, mestre em Direito e Internet pela Université de Paris 1: Panthéon-Sorbonne, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo - USP. Também é Google Policy Fellow 2018 do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro - ITS Rio.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que nas eleições de 2018 do Brasil as ferramentas digitais assumem tamanho protagonismo? E, em especial, por que os grandes pontos de circulação de informação e também conflitos e tensões se dão via WhatsApp?

Caio Machado – Mais de 60% da população brasileira está conectada à internet, sendo que nem toda essa população tem acesso à internet fixa. Muitos dependem de internet móvel e de planos de zero-rating [1] para se conectar, o que ainda aumenta o mercado do WhatsApp no Brasil. Além disso, por questões geográficas, históricas e estruturais, o envio de SMS no Brasil era muito caro, o que gerou uma demanda imensa por alternativas. Pelo conjunto de todos esses fatores, o WhatsApp conseguiu a gigantesca base de usuários no Brasil, com cerca de 120 milhões de usuários (10% da base global do WhatsApp). Ou seja, praticamente toda a população conectada do Brasil está no WhatsApp.

Assim, a plataforma tem penetração e capilaridade muito maior que a televisão. O celular é a primeira coisa que as pessoas tocam de manhã e a última coisa que elas olham antes de dormir. Em outras palavras, o WhatsApp é um meio de comunicação direto e constante com praticamente 60% da população brasileira, enquanto a TV é algo que fica preso na sala de estar e é desligado durante o horário de propaganda eleitoral. A internet virou o melhor e mais eficaz meio de difundir informação aos usuários, 24 horas por dia.

Quanto aos pontos de tensão: o conflito está em todos os campos de batalha. Há muito investimento em todas as plataformas para dominar o debate on-line, mas a polêmica, neste ano, se deu no WhatsApp. Isso porque uma estratégia de disseminação de conteúdo usando uma plataforma interpessoal não era algo que as autoridades brasileiras (ou mesmo estrangeiras) conseguiram antecipar. Por isso, não havia nenhum preparo por parte das autoridades ou mesmo da plataforma, o que resultou na ausência de meios jurídicos e técnicos no combate aos abusos do serviço.

IHU On-Line – Quais os desafios para a compreensão e o uso das tecnologias como forma de mediação comunicacional na sociedade de nosso tempo?

Caio Machado – A grande dificuldade é a compreensão do espaço “on-line” como parte integrante das nossas vidas físicas. Ou seja, os diálogos “on-line” e “off-line” se entrelaçam e se confundem, sendo uma distinção que não se sustenta mais hoje em dia. Todas essas formas de comunicação integram a nossa experiência social e são usadas no debate público. Neste sentido, as pessoas empregam plataformas diferentes para situações diferentes, dependendo do público, da finalidade etc. Da mesma forma que escolhíamos entre um telefonema ou uma carta escrita à mão, escolhemos qual é o meio mais adequado para comunicar a nossa mensagem.

A regulação agora enfrenta o desafio de reconhecer a função que esses diferentes meios de comunicação exercem na sociedade e conseguir fiscalizar e evitar abusos sem proibir o uso das plataformas. Por exemplo, o WhatsApp atende a uma demanda enorme da população brasileira e por isso o serviço ganhou tamanha escala. 

A regulação do WhatsApp deve buscar meios de controlar os abusos na plataforma e não o desmantelamento da plataforma em si, que seria, por exemplo, o bloqueio do serviço, a quebra da criptografia ou outras medidas que venham afetar liberdades dos usuários.

IHU On-Line – A partir da pesquisa que o senhor realizou, monitorando grupos de WhatsApp que compartilhavam informações relacionadas às eleições de 2018 [2] no Brasil, foi possível perceber uso de automação para circulação dessas informações através de bots, robôs? Como se deu essa automação e o que mais observa acerca desse comportamento?

Caio Machado – Identificamos comportamentos não compatíveis com os de usuários humanos. Principalmente a reiteração sistemática de conteúdo, assim como uma frequência de envio de mensagens muito elevada. Isso é um indicador muito forte de que há algum grau de automação por trás das atividades dessas contas.

Assim, consideramos que essas contas têm grandes chances de serem bots (100% automatizadas e autônomas) ou cyborgs (usuários que usam a automação para alavancar suas atividades on-line). Reparamos que algumas contas soltavam mensagens em intervalos de 10-20 segundos durante períodos prolongados, além de repetir exatamente o mesmo conteúdo em múltiplos grupos. Além disso, víamos a automação sendo usada para disseminar novos grupos de apoio ao mesmo candidato ou mesmo instigar a invasão e spam de grupos de candidatos adversários.

IHU On-Line – Como foi possível perceber que uma mensagem é posta em circulação por automação? E que relação e interações os “usuários reais” estabelecem com as mensagens enviadas de forma automática?

Caio Machado – A análise não tem por objeto uma mensagem específica, mas sim a atividade de uma conta estudada em conjunto. Então, não temos como saber se uma mensagem qualquer foi enviada por contas automatizadas, mas conseguimos avaliar a probabilidade de uma conta específica usar automação. 

Em verdade, a nossa metodologia não permite ter 100% de certeza e esse grau de detecção é praticamente impossível com os recursos disponíveis ao grande público e pesquisadores.

 Mas conseguimos buscar traços de atividade humana nas contas, como observando se nomes parecem humanos ou fruto de um gerador automático, se a pessoa usa fotos pessoais ou fotos obtidas nos motores de busca e, sobretudo, olhando o comportamento das contas nos múltiplos grupos.

Não chegamos a nenhuma conclusão ainda sobre como os “usuários reais” interagem com as mensagens enviadas pelas contas automatizadas. Sabemos que o conteúdo disseminado nos grupos repercute para além dos grupos de apoio aos candidatos, mas não temos nenhuma medida disso ainda.

IHU On-Line – Podemos considerar que Jair Bolsonaro foi um candidato constituído a partir das redes sociais? Por quê? E como podemos compreender suas estratégias nesse campo?

Caio Machado – Podemos dizer que Jair Bolsonaro soube se valer das redes sociais e montar uma articulação muito forte com seu eleitorado através das múltiplas plataformas. Isso não é algo que os outros candidatos souberam explorar tão bem. Tudo indica que ele vem nutrindo um eleitorado fiel há alguns anos, criando um grupo de eleitores voluntários dispostos a defender o candidato nas redes sociais. 

Esse voluntariado foi essencial, pois ele constituiu a militância nas redes sociais que fazia tudo, desde disseminar conteúdo até atacar adversários. Não podemos colocar toda a responsabilidade do sucesso de Bolsonaro na automação; as pessoas que aderiram e abraçaram a causa foram essenciais para o resultado.

IHU On-Line – Depois da avalanche de denúncias de notícias falsas, os tribunais eleitorais desenvolveram ações. Na sua pesquisa, é possível perceber uma redução na circulação de mensagens com notícias falsas após essas ações? De que forma?

Caio Machado – A nossa pesquisa no Twitter detectou um número baixíssimo de notícias falsas na plataforma. Inclusive, foi a taxa mais baixa que registramos nos relatórios do Computational Propaganda Project. Eu diria que as autoridades sinalizaram a fiscalização e combate às notícias falsas, e, aliados de mecanismos de “notice and takedown” (denúncia e remoção de conteúdo) das plataformas, a circulação de notícias falsas foi mitigada em serviços específicos.

Contudo, registramos um número alto no WhatsApp e no YouTube. Ao que parece, houve uma redução de notícias falsas nas plataformas abertas, mas não é possível dizer que houve uma redução global de notícias falsas. Ao que tudo indica, elas passaram de uma plataforma para outra, onde enfrentariam menos fiscalização ou mesmo que pudessem se valer de outras capacidades técnicas para dialogar com o usuário.

IHU On-Line – A partir das lógicas de interação entre grupos do WhatsApp, podemos afirmar que a ferramenta permite a constituição e comunicação dentro das chamadas bolhas? Por quê?


Caio Machado – Ao que me parece, a estratégia de comunicação de Bolsonaro conseguiu provar que o conteúdo que circula em uma “bolha” consegue ser repassado até atingir um público mais amplo. A estrutura de articulação entre os grupos de WhatsApp foi eficaz ao expor um número muito grande de pessoas ao conteúdo político que era disseminado. 

Não temos como medir isso, mas é razoável imaginar que alguns membros encaminhavam esse conteúdo para os núcleos mais próximos, como os grupos de amigos e família. Tanto que, por experiência pessoal, é possível ver parte desse conteúdo repercutindo em grupos de família que não estão diretamente imersos nessa trama. Essa afirmação, contudo, não significa que haja conteúdo fazendo o caminho inverso, qual seja, o de sair dos núcleos pessoais e chegar nesses grupos públicos de disseminação.

IHU On-Line – Que outras descobertas a pesquisa revelou e que o senhor acha importante destacar?

Caio Machado – Eu diria que a principal descoberta é a articulação sistemática de grupos de WhatsApp, incluindo o uso de automação. Além disso, percebemos também um diálogo entre plataformas, onde diferentes serviços são empregados com objetivos diferentes. O Twitter, por exemplo, não é o ambiente para disseminar conteúdo polarizador e conspiracional, essa plataforma serve mais como um meio de broadcasting dos serviços “oficiais” de mídia e campanha. A atividade na plataforma reflete as capacidades que o serviço oferece aos usuários, assim como a cultura de uso daquele serviço em determinado país.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Caio Machado – O momento não é apenas para a discussão do papel das plataformas nas eleições, mas também como estamos regulando o uso e o serviço da internet no Brasil. O problema das notícias falsas é intrinsicamente ligado a questões educacionais como o letramento digital (“media literacy”) e questões regulatórias como a neutralidade de rede. 

Se usuários tivessem educação sobre como usar a internet de forma mais ativa e crítica, provavelmente menos pessoas acreditariam no conteúdo conspiracional que é propagado na forma de “fake news”. 

No mesmo sentido, usuários não conseguem fazer esse trabalho de “fact-checking” [3] se eles dependem de serviços de dados patrocinados (zero-rating) para acessar a internet, pois eles conseguem utilizar apenas o WhatsApp e não conseguem navegar na rede com a mesma liberdade, o que restringe o uso crítico dessas plataformas.

(Com o IHU)

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