Direitos humanos e tortura no Brasil

                                             


                           A tortura como ela é



Festival exibe 114 produções de 16 países da América Latina em nove salas paulistanas; entre elas, Corte Seco, primeiro longa ficcional de Renato Tapajós, que registra cenas de “tortura explícita”


Maria do Rosário Caetano 

Corte Seco, a primeira incursão no cinema ficcional do documentarista e es­critor Renato Tapajós, tem tudo para ser o filme mais polêmico da safra brasileira selecionada para a nona edição do Fest Latino (Festival de Cinema Latino-Ame­ricano de São Paulo), que ocupa nove sa­las paulistanas, desta quinta, 24, até 30 deste mês.

Tapajós, autor do livro Em Câmara Lenta (1977) e do clássico documental Linha de Montagem (1982), conta que ouviu, nos últimos 13 anos dedicados ao projeto Corte Seco, comentários dos mais desanimadores.

O mais recorrente: “Quem iria se inte­ressar por um filme que mostra jovens militantes sendo barbaramente tortura­dos nos porões da ditadura militar bra­sileira?”.

O cineasta, que recria as intermináveis sessões de tortura sofridas por ele, quan­do, ao lado de outros militantes da Ala Vermelha, foi preso pela OBAN (Opera­ção Bandeirantes), não se dobrou. Com reduzido orçamento (R$1,2 milhão) e atores desconhecidos do grande público, reconstituiu a história de cinco jovens militantes.

Gabriel Miziara interpreta Rodrigo Ta­vares da Silveira, alter ego de Renato Ta­pajós. Ao fornecer dados pessoais a um interrogador, Rodrigo conta que nas­ceu em 19 de outubro de 1943, em Ma­naus (Tapajós nasceu neste mesmo ano em Belém do Pará), mede 1.68m e pesa 59 quilos.

Um letreiro no início de Corte Seco avisa que tudo que se verá dali em diante é fato acontecido. Só os nomes de alguns personagens foram alterados. A tra­ma começa no dia 31 de agosto de 1969, quando um grupo de jovens militantes invade uma emissora de rádio em San­to André, no ABC Paulista, e exige a tro­ca da programação musical (um hit ser­tanejo) por um hino (A Internacional) e pela difusão de discurso que prega a vi­tória do socialismo e do comunismo. Os jovens são presos pela OBAN e começam as sessões de suplício físico.

Tortura explícita

Há corrente de peso na crítica cine­matográfica brasileira que rejeita con­ceitualmente o uso explícito de cenas de tortura em filmes. Quando Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, foi lança­do, a polêmica se alastrou. Muitos críti­cos tacharam trechos do filme de obsce­nos. Esta parcela da crítica tem no tex­to De l’Abjection (Da Abjeção), de Jac­ques Rivette, publicado em 1961, na re­vista Cahiers du Cinéma, uma de suas fontes de diálogo.

Ao analisar o filme Kapò, de Gillo Pontecorvo, lançado em 1960, Rivet­te indignou-se com sequência na qual se vê uma prisioneira de campo de con­centração, interpretada por Emma­nuelle Riva, caminhar em direção à cer­ca de arame eletrificado (rumo, portan­to, ao suicídio).

O então jovem crítico, que faria car­reira como um dos mais importantes ci­neastas da Nouvelle Vague, despreza­va o filme de Pontecorvo e elogiava ou­tra obra sobre campos de concentração nazista, o documentário Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais.

Como este influente segmento da críti­ca brasileira receberá Corte Seco? A pré­-estreia do filme, que acontecerá no sá­bado, 26, no CineSesc, dará início ao de­bate. As cenas de tortura recriadas por Corte Seco serão vistas como abjetas, obscenas?

Renato Tapajós, por princípios estéti­co e ético, não concorda com a concep­ção rivettiana. Corte Seco – avisa – “é um filme de ‘tortura explícita’, no qual tentei mostrar tudo muito às claras, sem cair em espetacularização, nem em sen­sacionalismo”. E justifica: “O que me motivou a fazer o filme deste jeito foi o debate sobre direitos humanos e a tortu­ra no Brasil. Debate que acabou por ad­mitir que se falasse em tortura, mas ba­nalizou, ‘naturalizou’ a tortura, como se ela não fosse muito diferente de ‘interro­gatório’, ‘solitária’ ou ‘exílio’. Mas ela é diferente, e como!”

Por isto, Tapajós mostra jovens sen­do torturados no pau de arara, na cadei­ra do dragão e numa série de outros ins­trumentos (ou procedimentos) utiliza­dos por militares e seus agregados nos porões da ditadura.

“Minha intenção é fazer o público sentir o quanto a tortura é inadmissí­vel, o quanto ela significa o limite da degradação humana. Por isto, não po­demos higienizá-la, espetacularizá-la, mas sim, bani-la do planeta. Ou, pelo menos das sociedades que se dizem ci­vilizadas”.

Blockbusters

Tapajós amplia suas reflexões sobre a postura daqueles que têm duras restri­ções ao uso de imagens de tortura ex­plícita a ponto de qualificar tal uso de abjeto.

“Para mim, abjetas são as matanças in­discriminadas que há anos os blockbus­ters norte-americanos promovem e es­palham por cinemas de todo o mundo. Obsceno é um herói de série de TV (co­mo Jack Bauer, em 24 Horas) torturar e matar à vontade, apenas porque tem a le­gitimidade da potência dominante. Abje­ta é a violência estetizada, os esguichos de sangue, os corpos despedaçados pos­tos nos filmes apenas para emocionar e gerar catarse.”

E o cineasta indaga: “Onde está o li­mite, a fronteira, na abordagem da questão da tortura explícita? E respon­de: “Neste ponto, nos deparamos com uma questão de linguagem e postura ética que o realizador tem que se colo­car. Nestes exemplos citados, a tortura – a violência indiscriminada – é sem­pre justificada porque o herói ‘tem ra­zão’. Eu entendo que quem pratica tor­tura nunca tem razão. Não há ideologia, nem raciocínio moral capaz de justificar a tortura. Daí, a gente chega à questão da linguagem, à questão da construção do roteiro, enfim, à dramaturgia. Não dá para construir uma narrativa sobre tortura, sobre violência, que seja ética, se a dramaturgia utilizada for o modelo dominante (seja dos blockbusters, se­ja das novelas da Globo). Por isto, me recuso a adotar um modelo de roteiro com este tipo de narrativa, a narrativa do campo-contracampo praticado pelo cinemão industrial”.

A Batalha de Argel

O diretor, roteirista e co-montador de Corte Seco qualifica Kapò, criticado por Rivette, como um “grande filme”. Mas, da obra de Pontecorvo, destaca e qualifi­ca A Batalha de Argel como obra-prima. “Há, neste filme, uma longa cena de tor­tura que é construída de maneira genial, sem nenhuma espetacularização.”

Com relação a Batismo de Sangue, de Ratton, Tapajós pondera: “Posso até ter uma ou outra restrição à narrativa do fil­me, mas não tenho nenhuma restrição à construção das cenas de tortura”.

Vale lembrar que o cinema está pro­fundamente impregnado no processo criativo de Tapajós. Seu livro mais famo­so tem nome cinematográfico: Em Câ­mara Lenta, o famoso slow motion, re­curso de linguagem que ralenta a velo­cidade da imagem. Seu documentário mais festejado, registra o fortalecimento do movimento operário-metalúrgico no ABC Paulista, e tem nome eisensteinia­no: Linha de Montagem.

Para sua primeira ficção, o realizador escolheu Corte Seco. Pensou até em mu­dar para Espadas de Papel. Mas resistiu. Elegeu o corte seco, opção narrativa des­te filme despojado, que rejeita efeitos es­peciais e fusões de imagens. Tapajós, que é montador do filme, junto com Pedro Pinho, fugiu, convicto, de procedimento que rejeita: a espetacularização.

matar à vontade, apenas porque tem a le­gitimidade da potência dominante. Abje­ta é a violência estetizada, os esguichos de sangue, os corpos despedaçados pos­tos nos filmes apenas para emocionar e gerar catarse.”

E o cineasta indaga: “Onde está o li­mite, a fronteira, na abordagem da questão da tortura explícita? E respon­de: “Neste ponto, nos deparamos com uma questão de linguagem e postura ética que o realizador tem que se colo­car. Nestes exemplos citados, a tortura – a violência indiscriminada – é sem­pre justificada porque o herói ‘tem ra­zão’. Eu entendo que quem pratica tor­tura nunca tem razão.

 Não há ideologia, nem raciocínio moral capaz de justificar a tortura. Daí, a gente chega à questão da linguagem, à questão da construção do roteiro, enfim, à dramaturgia. Não dá para construir uma narrativa sobre tortura, sobre violência, que seja ética, se a dramaturgia utilizada for o modelo dominante (seja dos blockbusters, se­ja das novelas da Globo). Por isto, me recuso a adotar um modelo de roteiro com este tipo de narrativa, a narrativa do campo-contracampo praticado pelo cinemão industrial”. (Com o Brasil de Fato)

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