A lenda do mal menor ou a arte de votar útil e ganhar um governo inútil
Edmilson Costa [*]
Indignação. Frustração. Decepção. Este é o sentimento da maior parte da esquerda brasileira que votou útil nas últimas eleições presidenciais, após o anúncio da nova equipe ministerial do governo do Partido dos Trabalhadores (PT).
Não se deve esquecer que foi exatamente o voto da esquerda, o voto no mal menor, que fez a diferença e tornou possível a apertada vitória da candidata Dilma Roussef na mais acirrada disputa eleitoral dos últimos 30 anos, sem o qual estaria encerrado o ciclo do PT na presidência da República, iniciado em 2002, com a eleição de Lula.
Em sintonia com o tradicional imaginário político brasileiro, herdado do período da ditadura militar, quando todas as forças progressistas convergiam para o candidato comum contra o regime militar, a maior parte dessa esquerda votou na presidente Dilma, não porque concordasse com a trajetória dos governos petistas, mas para derrotar Aécio Neves, o mal maior, cujo partido governou o Brasil no período 1994-2002 e foi o responsável pela implantação das políticas neoliberais, pelas privatizações, pela corrupção generalizada e pela ofensiva contra os direitos e garantias dos trabalhadores.
No entanto, o prêmio por este gesto generoso, uma espécie de última oportunidade ao PT, foi muito além daquilo que o mais pessimista dos observadores da política poderia imaginar. Menos de um mês após a vitória, o governo aumentou a taxa de juros duas vezes e depois anunciou a nomeação do banqueiro ultra-ortodoxo Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, da senadora latifundiária Katia Abreu para a pasta da agricultura e de Armando Monteiro, presidente da Confederação Nacional da Indústria.
Essas indicações não significam um recuo tático de um governo sitiado pelo conservadorismo e pela crise econômica, como poderia parecer à primeira vista. Pelo contrário, essa foi a lógica do PT desde o primeiro mandato de Lula quando, após a vitória em 2002, nomeou Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco de Boston, para a presidência do Banco Central, aumentou o superávit primário e a taxa de juros e manteve no governo Joaquim Levy, que era da administração de Fernando Henrique Cardoso. Tudo muito semelhante ao que está acontecendo agora. Só não vê quem não quer ou quer se auto-enganar.
Quem imaginava que o governo social-liberal do Partido dos Trabalhadores seria capaz de realizar alguma mudança de rumo com o segundo mandato de Dilma ou que votando útil estaria evitando o retorno das forças do atraso, deve estar acumulando mais um rosário de frustrações. O que devemos esperar desse novo governo é uma guinada mais à direita, não só porque é incapaz de romper com o modelo de governabilidade estruturada desde Lula, como também porque as forças mais reacionárias aprenderam que é só aumentar a pressão que o governo cede aos seus interesses, fato que se alia à intensificação da crise econômica mundial para a qual o Brasil não está blindado.
Uma campanha emocional
Para compreendermos a conjuntura na qual se realizou as eleições no Brasil, é necessário dizer que a grande maioria dos companheiros de esquerda que votou útil nas últimas eleições o fizeram de maneira sincera, na boa fé, com esperança de que este voto não só evitaria o retorno do governo do PSDB, como poderia haver ainda a possibilidade de um giro à esquerda do novo governo, afinal no segundo mandato Dilma já não teria mais compromissos com reeleição e na própria campanha a candidata prometeu um governo novo, com novas ideias e nova política.
Vale lembrar ainda que os operadores de marketing da campanha Dilma foram muito competentes e hábeis em criar um clima de medo e pânico entre as forças progressistas, em função da possibilidade real de volta do PSDB ao governo. Essa operação, muito bem sucedida, foi aos poucos, quebrando resistências, dobrando os espíritos mais críticos e envolvendo até parte da militância que estava adormecida em conseqüência das frustrações e da passividade semeada pelo PT ao longo dos 12 anos de mandato.
À medida em que a eleição se aproximava e que o perigo de derrota do PT se tornava um dado da realidade, a operação pânico e medo se tornou mais aberta, estimulada diga-se de passagem pela postura da candidata Dilma que, vestida de vermelho e com o dedo em riste, radicalizava o discurso contra os banqueiros, contra as elites, contra o arrocho salarial, contra a independência do Banco Central, em defesa do desenvolvimento, do emprego, da renda, dos pobres e oprimidos.
Criou-se assim um clima emocional como se esquerda e direita estivessem numa disputa acirrada. A partir daí, intelectuais progressistas, personalidades, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, todos começaram a se manifestar abertamente pelo voto útil. Passou–se da avaliação crítica ao voto apaixonado e adesista.
Esqueceu-se as privatizações mascaradas de parcerias público-privadas, o financiamento a juro real zero aos grandes grupos privados para formar oligopólios internacionais, o financiamento aos grupos educacionais privados, através do Prouni e Pronatec, o leilão privatista do campo de petróleo de Libra, a privatização dos hospitais universitários, o fundo de previdência dos funcionários públicos e o pagamento exorbitante dos juros da dívida interna.
Nessa conjuntura emocional e irracional, aqueles que ainda mantinham o senso crítico eram criticados nas redes sociais e alguns espaços da mídia corporativa. Eram os radicais, os politicamente irresponsáveis e insensíveis à correlação de forças, a ultra-esquerda fazendo o jogo da direita em função de sua cegueira política.
Buscava-se assim ofuscar a análise de classe e apagar da memória a política real dos governos petistas, como a cooptação do movimento sindical e social, o apassivamento dos trabalhadores e a despolitização da sociedade promovida nestes últimos 12 anos. Poucos mantiveram a postura crítica, mesmo tendo que navegar temporariamente contra a maré.
Na verdade, avaliando agora mais friamente, sem as paixões conjunturais, os companheiros da esquerda que votaram útil estão se dando conta de que não estava em disputa esquerda e direita coisa nenhuma. Essa era apenas a aparência de como o fenômeno se apresentava para as forças progressistas, um enredo que as classes dominantes impuseram através da mídia corporativa.
O que estava efetivamente em disputa eram os projetos de duas variáveis das frações do bloco dominante. Uma, representada por Aécio Neves, queria governar com liberdade total para o mercado e o capital financeiro e a outra, representada por Dilma, queria governar com um pouco mais de Estado para que o mercado funcionasse de maneira mais eficiente e com pouco riscos.
Quando o PCB reuniu o Comitê Central, duas semanas antes do segundo turno, e se decidiu pelo voto nulo, sabíamos que iríamos enfrentar uns três meses de críticas de muitos setores de esquerda, assim como fomos criticados quando abandonamos o governo Lula em 2005 e quando rompemos com o etapismo com o XIII Congresso.
Naquele período, passamos algumas dificuldades momentâneas, mas depois a realidade nos deu razão. Assim também aconteceu com as recentes eleições presidenciais. Pensávamos que ao longo de três meses remaríamos contra a maré, mas sabíamos que 90 dias não é um tempo longo para uma organização revolucionária. Basta ter paciência e esperar o veredito da realidade.
Sem nenhum exercício de arrogância, só um partido revolucionário, que faz uma leitura concreta da realidade baseada no marxismo, tem segurança para tomar uma posição política tão difícil, num momento de tanta emocionalidade, de tanta tensão da luta de classes, de tanta confusão entre os revolucionários, remar contra a maré do voto útil e dizer abertamente que está na hora de acabar com o baile de máscaras, com esse ritual masoquista de sempre optar pelo mal menor nas disputas acirradas e continuar sofrendo obsequiosamente pelos próximos quatro anos, até a questão voltar novamente como se nada tivesse acontecido.
No entanto, desta vez a realidade se impôs mais depressa. Alguns dias após o resultado das urnas a presidente aumentou a taxa de juros e o preço da gasolina. Bom, mas juros altos é algo que a sociedade brasileira já está acostumada e a gasolina não aumentava há bastante tempo, diziam os eternos otimistas. Mas enquanto crescia a expectativa e as pressões do mercado financeiro e da mídia para que o governo anunciasse logo os responsáveis pela área econômica, cresciam também os boatos de que a presidente Dilma, aconselhada por Lula, estaria cogitando ninguém menos do que o presidente do Bradesco, o segundo maior banco privado do País, para ministro da Fazenda. Mais uma vez a esquerda que votou útil creditou essas notícias a boatos que comumente aparecem à vésperas de decisões importantes.
Para quem ainda nutria alguma ilusão em relação aos governos petistas, o golpe de misericórdia veio com o anúncio da equipe econômica. Poucos poderiam imaginar que, depois de uma eleição na qual a esquerda e os movimento sociais jogaram um papel decisivo para a vitória de Dilma, seria anunciada uma equipe econômica tão ortodoxa e conservadora, liderada por um banqueiro, como o trio constituído por Joaquim Levy, Kátia Abreu e Armando Monteiro Filho, o primeiro representante dos banqueiros nacionais e internacionais, o segundo representa os latifundiários mais atrasados do País e o terceiro representante do grande capital. Quem são esses personagens?
Joaquim Levy é o típico Chicago Boy e um quadro de ideias neoliberais: formado em engenharia naval pela UFRJ, fez doutorado na Universidade de Chicago. Depois trabalhou no FMI e no Banco Interamericano de Desenvolvimento. Foi secretário de Política Econômica na administração de Fernando Henrique Cardoso, secretário do Tesouro do governo Lula no período do ultra-ortodoxo Antônio Palocci. Quando foi nomeado ministro da Fazenda era superintendente do Bradesco Asset Management. Foi ativo participante da equipe do programa de Aécio Neves, coordenado por Armínio Fraga, e certamente estaria nesse governo caso tivesse vencido a disputa presidencial.
Kátia Abreu é a representante típica dos latifundiários e do agronegócio, ex-integrante do DEM, um partido de direita, ela é contra a reforma agrária, contra a demarcação das terras indígenas e quilombolas, inimiga do MST e favorável a um código florestal que libera os proprietários de terra a não rematarem as propriedades devastadas.
Armando Monteiro é presidente da Confederação Nacional da Indústria e foi candidato derrotado do PTB ao governo de Pernambuco. Um homem ligado aos negócios do grande capital. Como é a área econômica que manda efetivamente na política geral do governo, então já se pode imaginar o que vem pela frente.
Um estelionato eleitoral
Por mais que se queira manter as aparências, a nomeação da equipe econômica liderada por Joaquim Levy significa, na prática, um estelionato eleitoral. Todos lembram da campanha recente, quando Dilma esbravejava contra os banqueiros, contra as elites, contra os juros altos, prometia um governo novo com ideias novas, conclamava a militância a barrar o retorno do PSDB e capital financeiro ao poder. Tudo isso se esvaiu no ar como uma bruma passageira. Pode parecer irreal, incompreensível, mas esta é a realidade concreta da trajetória do PT no governo.
Muitos companheiros de esquerda imaginavam que, diante de um gesto tão generoso da militância nas eleições, que acreditou ser verdade as mensagens da presidente, Dilma poderia tomar algumas medidas para compensar aqueles que lhe salvaram o mandato. Mas a presidente fez exatamente o contrário: com seu "coração valente" esnobou seus companheiros e os que lhe salvaram da forca, trocou de roupa, e foi se refastelar nos braços dos banqueiros, dos latifundiários, agronegócio e do grande capital, justamente os principais inimigos do povo brasileiro, que tanto Dilma jurou combater.
Agora, resta aos companheiros de esquerda que votaram no mal menor apenas lamentar a capitulação política e moral, a hipocrisia, a sencerimômia e a forma com que foram tratados. Ou então fazer manifestos moralmente corretos, mas sem nenhum efeito prático, como um que está circulando nas redes sociais, assinados por personalidades sociais e políticas e movimentos sociais, como o economista Luiz Gonzaga Beluzzo, o coordenador do MST, João Pedro Stédile e o teólogo Leonardo Boff.
No manifesto eles afirmam que a presidente ganhou não porque cortejou as forças do rentismo e do atraso, mas porque milhares de militantes voluntários, dos movimentos sociais e dos sindicatos foram capazes de reverter a ameaça de regressão que seria o governo Aécio Neves. "A presidente parece levar mais em conta as forças cujos representantes derrotou do que dialogar com as forças que a elegeram ... A sociedade brasileira não pode ser surpreendida depois das eleições e tem o direito de participar dos rumos do governo que elegeu". Com todo respeito, é muita ingenuidade política acreditar que esse governo pode mudar de direção com um simples manifesto político. Fica registrado o direito de espernear!
Essas nomeações podem ser consideradas tão esdrúxulas, que o próprio mercado foi tomado de surpresa com a indicação de Joaquim Levy e da senadora Katia Abreu, tanto que logo após o anúncio a Bolsa de Valores subiu 5% e a mídia mudou de posição e passou a elogiar a escolha. De tão inusitado, até mesmo Aécio Neves, o candidato derrotado, resolveu ironizar a escolha presidencial. "Como disse meu amigo Armínio Fraga, escolher Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda no governo do PT, é o mesmo que convidar um quadro da CIA para comandar a KGB".
Com esta equipe econômica Dilma jogou na lata de lixo não só as promessas de campanha, mas na prática irá implementar a agenda do candidato derrotado, com todas as consequências sociais e políticas para os trabalhadores. Mas essa opção pode ser também perigosa para os interesses do PT, pois a estratégia de adular o mercado financeiro, o grande capital e o agronegócio pode se constituir numa canoa furada, pois esses setores vão continuar pressionando por mais concessões, mais medidas antipopulares. Até o momento em que resolverem deixar de terceirizar o Planalto. Vender a alma ao diabo nunca foi um bom negócio.
Pelo menos, esse episódio deixou uma grande lição: o voto útil, o voto no mal menor, está com seus dias contados no Brasil. A partir de agora, as pessoas estrão vacinadas, mais espertas quanto as verdadeiras intenções do Partido dos Trabalhadores. Essa talvez tenha sido a última oportunidade em que o PT teve condições de se apresentar como organização capaz de ainda sensibilizar setores de esquerda a lhe dar um voto de confiança. O estelionato eleitoral não terá muito futuro a partir de agora.
Isso será melhor para toda a esquerda que quer realmente as transformações sociais no Brasil. Agora, as ilusões com o caminho puramente institucional estão chegando ao fim. Torna-se necessário construir outras alternativas para enfrentar o período duro que se aproxima. E essa alternativa não passa mais por miragens como o "governo em disputa" ou que em algum momento do futuro o PT mudará em função da crise. Quando maior a crise, maior será sua guinada à direita, maiores serão as concessões feitas aos inimigos do povo brasileiro. Quem quiser se enganar pode continuar lutando por dentro do PT, mas a partir de agora isso representará acomodação e oportunismo político.
A alternativa que se desenha com este novo governo, com a crise mundial e suas repercussões no Brasil, é a organização dos trabalhadores, a reconquista dos sindicatos dirigidos pelos pelegos cor-de-rosa da CUT e os pelegos amarelos da Força Sindical, as greves à revelia das direções sindicais, como já ocorreu com os garis do Rio de Janeiro, os operários do Complexo Petroquímico também do Rio e os motoristas de ônibus de São Paulo, apenas para citar os três casos mais emblemáticos. É hora de retomar as manifestações de rua como as de junho, só que agora mais organizadas e com direção política, e trabalhar pela construção da Frente Pelo Poder Popular, de forma a reunir condições para colocar o proletariado em movimento e transformar em plataforma política o grande descontentamento da população contra a ordem do capital em frangalhos, apesar de sua aparência monolítica.
Para esta tarefa cremos que é possível contar com a imensa maioria dos companheiros de esquerda que votaram útil para barrar o mal maior. Como podemos ler na resolução do Comitê Central do PCB, elaborada duas semanas antes da eleição: "Respeitamos aqueles companheiros de esquerda que consideram que as diferenças entre PSDB e PT ainda são relevantes e que votarão em Dilma como um "mal menor". Contamos com esses companheiros nas acirradas lutas que se aproximam". Esta é a tarefa que o proletariado espera de suas organizações!
[*] Diretor do Instituto Caio Prado Junior e um dos editores da revista Novos Temas.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . (Os grifos são meus, José Carlos Alexandre)
Comentários