"Segundo governo Dilma será bem mais conservador que o primeiro"

                                                                     
Mauro Iasi 

Entrevistado por Valéria Nader e Gabriel Brito [*]

O ano está acabando, mas, contrariando a tradição, o Brasil não vive clima de fim de expediente, após uma das temporadas mais agitadas da história recente. Ao passo que os escândalos na Petrobras e as prisões de executivos de empreiteiras continuam na ordem do dia, a formação da nova equipe ministerial de Dilma estica mais ainda o rastilho de pólvora. Além disso, a reorganização das esquerdas, das forças populares e a propalada reforma política têm sido assuntos constantes. 

"A ilusão de a Dilma fazer inflexão à esquerda já foi desfeita, à medida que ela não chamou ninguém para se reunir, desde o fim das eleições. Ela só se reúne com os grandes bancos, as grandes bancadas [do parlamento], com o agronegócio e as grandes empresas. A nosso ver, esse caráter dificilmente mudará. Portanto, é um perfil de governo que vai exigir dos movimentos sociais organizados, dos sindicatos e da classe trabalhadora uma posição mais decisiva. Esperamos que finalmente, partam para cima do governo", analisou Mauro Iasi, em entrevista ao Correio da Cidadania

Na entrevista, a primeira de uma série que faz um balanço do desempenho da esquerda nas eleições e também projeta os olhares para 2015, o candidato a presidente do PCB ressalta o rápido fim do mito de um segundo mandato dilmista mais à esquerda, além de alertar para o caráter conservador da reforma política já articulada por PT e PMDB. Em sua visão, uma reforma que concentrará ainda mais o poder entre os tubarões e poderá significar uma "cassação virtual" dos partidos programáticos e ideológicos. 

"Quanto aos partidos fisiológicos, instituições de compra e venda de mandatos, eles não têm o menor prurido em legalizá-los e dar-lhes vida orgânica. Já os partidos programáticos, de esquerda, sem representação no parlamento, vão sofrer uma restrição extremamente dura. Mas não esperávamos nada desse Estado, portanto, não temos direito de nos desiludir. 

O PCB, a meu ver, se credenciou com sua postura militante e a disposição que mostrou nesse tempo. O cenário conjuntural, econômico e político de 2015 vai permitir que já no primeiro semestre tentemos alguma coisa mais incisiva", pontuou. 

A entrevista completa com Mauro Iasi pode ser lida a seguir. 

Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre o resultado obtido pelo PCB nas urnas? Era esse resultado o esperado, ele representa o partido? 

Mauro Iasi: Fizemos um planejamento de eleição e campanha, no qual corremos todo o Brasil. Fizemos um percurso centrado na relação com os movimentos sociais, como assentamentos da reforma agrária e universidades. Cumprimos a nossa parte na campanha, definida para demarcar uma política de esquerda, que se diferenciasse do debate circunscrito à questão eleitoral e conjuntural, ou seja, nos colocamos como alternativa dentro de um campo conservador. 

Nesse sentido, acreditamos ter atingido o que era o nosso principal objetivo. Não foi muito diferente da perspectiva numérica que imaginávamos, devido ao momento do partido e à polarização entre os grandes candidatos, inclusive reforçada pela mídia. Sabíamos que do ponto de vista numérico o resultado não poderia ser muito diferente do que foi. 

A nossa avaliação é de que, no conjunto, a esquerda ficou com uma fatia muito pequena do eleitorado, abaixo de 2%. Pensamos que podíamos ter um crescimento maior, não especificamente do PCB, mas do conjunto da esquerda. Foi um resultado bastante pequeno do ponto de vista da expressão e do que a esquerda representou no último período. 

Isso é muito sério na nossa avaliação. A polarização que se deu mais uma vez entre PSDB e PT, a nosso ver, mostra uma agudização da luta de classes que não aponta alternativa. Tal espaço tem sido ocupado pelo descontentamento e pelo desgaste da política de governo dos últimos doze anos, na direção de um crescimento de uma alternativa à direita, e não de uma perspectiva de esquerda, o que é bastante preocupante. 

Correio da Cidadania: Considerando-se a já relativamente longa participação nas eleições, por que o PCB não alcança um resultado eleitoral mais substancial a seu ver? O que este resultado diz sobre os erros e acertos da estratégia política e eleitoral que vocês têm perseguido? 

Mauro Iasi: Avaliamos que no momento não dava para ter resultados melhores. Porque nós saímos de um processo muito longo e difícil de reconstrução. Desde 1992, com a cisão que acabou produzindo o PPS, o partido teve de começar praticamente do zero. Nós reorganizamos o partido. Hoje, estamos em dez estados da federação, conseguimos lançar candidaturas próprias. Estamos organizados em praticamente todos os estados brasileiros, mas são projetos muito duros de reconstrução. Assim, já tínhamos a dimensão de que tal dificuldade se expressaria também no número de votos. 

No entanto, é evidente que há um espaço muito minado para fazer o debate político no Brasil. E tende a piorar. É uma legislação eleitoral que, além de ser extremamente desigual nas condições de acesso aos meios de comunicação, coloca uma divisão de tempo absurda, sob critérios absolutamente inconstitucionais, que ferem a igualdade prevista na Constituição. Ainda temos uma cobertura jornalística totalmente desigual. E o mais sério de tudo é que o TSE parece não estar preocupado. 

Nós acionamos o TSE várias vezes sobre pontos como, por exemplo, a não distribuição do tempo de televisão, que, apesar de injusto e até inconstitucional, é regra. Alertamos sobre a questão da cobertura jornalística, da participação dos debates, mas o TSE parece muito mais preocupado com portarias e acompanhamento das campanhas do que com a legalidade delas. O TSE olha bovinamente para as eleições apenas como burocrata, para fazê-las chegarem ao fim e depois contar os votos. 

Uma legislação ordinária não pode se sobrepor à Constituição. O TSE julga a participação nos debates com base numa lei que é inconstitucional e que ele julgou constitucional. É algo que, na verdade, se volta à garantia do interesse dos grandes partidos que controlam o parlamento e o governo federal, fazendo da disputa eleitoral um jogo de cartas marcadas. Um jogo que, absolutamente, não prima por várias condições isonômicas de disputa. 

Portanto, é lógico que, neste sentido, com o pouquíssimo tempo de televisão, com a proibição de posições políticas aparecerem no debate por critérios absurdos, tem-se a privação do direito do eleitor de saber da existência de certas alternativas. Isso tem impacto profundo nos votos. 

Outra avaliação nossa é que o sistema de segundo turno não tem funcionado no Brasil. Nas três últimas eleições, operou numa dinâmica de voto útil já no primeiro turno, com um deslocamento de votos para candidatos que pudessem ganhar ou entrar na disputa. Concentra-se em três ou quatro candidaturas, não permitindo que o primeiro turno promova, de fato, um voto de convicção, de certezas políticas e concordâncias com o programa do partido. Promove um voto que é quase uma aposta no ranking de quem está na frente e tem a prioridade de receber mais ou menos votos. 

Assim, sofremos, por um lado, pelo voto útil na Dilma, que estava ameaçada de perder, e, por outro lado, na Marina, no momento em que ela ainda poderia derrotar a Dilma. Tudo isso acaba esvaziando o voto mais consistente, que poderia se dirigir às propostas políticas da esquerda mais radical. 
                                                               
Correio da Cidadania: O monopólio da mídia e dos recursos pelos partidos da ordem é parte essencial das "eleições burguesas". A priorização da opção eleitoral nessas circunstâncias, com participação nas corridas para os cargos majoritários e para o parlamento, não reforça o que muitos chamam de farsa eleitoral? O que fazer para superá-los? 

Mauro Iasi: Nós sempre trabalhamos isso como um terreno extremamente difícil, por conta das dificuldades que comentávamos. A nossa decisão de participar das eleições é bastante consciente e limitada ao objetivo de levar também ao campo eleitoral propostas de rupturas socialistas, propostas de discussões mais profundas do Brasil e de alternativas que não se restrinjam aos temas mais superficiais da conjuntura. 

Nunca tivemos a expectativa ou a pretensão de disputar poder, no sentido de fazer maiorias parlamentares e eleger pessoas. O jogo eleitoral, hoje, começa com estruturas muito grandes, valores estratosféricos de doação de campanha, tempo de televisão, esquemas partidários com apoios de governos locais... É algo que desvirtua a democracia brasileira e coloca para os partidos da esquerda uma dificuldade muito grande. 

Nós vamos ter que repensar nossa prática no conjunto da esquerda e o que será, de fato, uma frente de esquerda para romper tal bloqueio. É um desafio para o próximo período, uma vez que, isolados, dificilmente os partidos de esquerda conseguirão dar tamanho salto. 

Não temos nenhuma ilusão com a reforma política, desde a época da campanha pelo plebiscito que colheu assinaturas com este fim. Acreditamos que o plebiscito deixou de tocar em temas essenciais, a exemplo da forma sobre como deveria ser convocada uma assembleia constituinte exclusiva. Não deveria ser para o sistema político, mas para pensar transformações mais profundas na estrutura política brasileira. Agora, o espaço se fechou ainda mais, pois estamos reféns de uma proposta de reforma política pactuada entre o PT e PMDB, claramente dirigida pelo Michel Temer, o vice-presidente da República. Certamente, tal proposta vai restringir ainda mais o espaço e concentrar ainda mais o poder nos grandes partidos que hoje controlam a República brasileira. 

Correio da Cidadania: A propósito da reforma política, vocês têm alguma reflexão quanto à possibilidade de uma reforma mais conservadora colocar fora do páreo partidos menores, como poderia ser o caso do próprio PCB? Nessas circunstâncias, qual é a base eleitoral do partido para prosseguir com sua atuação militante? 

Mauro Iasi: Nesse processo de reconstrução que empreendemos, preparamos o partido, fundamentalmente, para ter inserção social. Trabalhamos na construção de frentes de massa, no sindicalismo, na juventude, na consolidação do partido em regiões, e também nos preparamos para depender cada vez menos – ou não depender mais – do fundo partidário. Um dos elementos que julgamos provável na reforma política é a exclusão dos menores do fundo partidário e sua concentração nas mãos de partidos que hoje conformam um campo bastante restrito, ou seja, aqueles que apoiam o governo ou estão nas suas franjas. 

Quanto aos partidos fisiológicos, instituições de compra e venda de mandatos, eles não têm o menor prurido em legalizá-los e dar-lhes vida orgânica. Mas os partidos programáticos, de esquerda, sem representação no parlamento, vão sofrer uma restrição extremamente dura por conta do fundo partidário, tempo de televisão... Será uma virtual cassação de tais partidos, sendo provável o PCB entre eles. Mas não esperávamos nada desse Estado, portanto, não temos direito de nos desiludir. Estamos nos preparando do ponto de vista da sobrevivência financeira, que hoje já depende pouquíssimo do fundo partidário.

No entanto, o espaço eleitoral envolve outra reflexão, que é saber como a esquerda pode se expressar. A restrição, ao que tudo indica, colocada pela reforma política é de espaço de participação, mas não de legalidade, ao menos por enquanto. Não nos rendemos, não damos como fato consumado, queremos manter o registro legal do partido e disputar eleições quando necessário, mas certamente refletimos sobre a forma como faremos. Porque a mera repetição do que tem prevalecido nos últimos anos parece ser um caminho que acumula muito pouco para qualquer perspectiva de transformação profunda.

Como apostamos na combinação dos espaços, nossa prioridade é a organização social, a luta junto dos movimentos e da classe trabalhadora. Vislumbramos um cenário muito rico de crescimento, lutas e intensificação das contradições no próximo governo. É nossa aposta no primeiro momento. E vamos pensar mais sobre o espaço eleitoral, se ele se fecha de vez ou não. Nossa primeira avaliação é a de que ainda há algum espaço a ser ocupado, mas certamente com táticas muito diferentes das que temos utilizado. 

Correio da Cidadania: Ainda sobre o processo eleitoral, o que pensa da marginalização do PCB e PSTU? Houve algum tipo de denúncia dessa situação, por parte dos próprios partidos, ou outras organizações políticas e sociais? 

Mauro Iasi: Apresentamos junto ao TSE questionamentos sobre os critérios. Entramos com ações judiciais para tentar entrar nos debates, denunciamos nos espaços onde nos permitiam falar, mas encontramos uma intransigência muito grande. Na verdade, o TSE acompanhou o critério imposto pelos grandes meios de comunicação. Eu corri o Brasil todo, passei por todos os estados e sempre tivemos espaços nas redes locais, inclusive em TVs. Mas os grandes monopólios, que têm maior abrangência de chegada ao público, criaram seus critérios, duvidosos, já nas eleições passadas. 

Ao invés de adequar o debate à constitucionalidade, adequaram a constitucionalidade ao interesse das grandes corporações de mídia, através de uma lei que torna legal aquilo que os grandes grupos de mídia exigiram. Assim, esse acerto jurídico amarrou o TSE, que resolveu respaldar tal acordo. Ele poderia questionar sua legalidade, ao menos abrindo um questionamento à lisura do processo, mas preferiu se acomodar ao acordo feito entre as empresas de comunicação e a judicialidade forjada nos últimos anos, e nos excluíram do debate. 

É muito ruim. Vemos debates insossos, sem conteúdo, com pessoas absolutamente desqualificadas para o debate político, enquanto pessoas que têm alternativas e ideias realmente diferentes ficam fora. E ao estarem fora do espaço caem numa espécie de inexistência de facto . Ficam fora do espectro de visibilidade. O TSE resolveu se acomodar a isso. Acovardou-se, como é típico de seu presidente, uma pessoa sem nenhum brilho próprio para questionar qualquer coisa. É um burocrata. 

Correio da Cidadania: Quanto à intelectualidade de esquerda, qual é a estratégia do partido para trazê-la para dentro de sua organização? Houve, nas eleições, movimento de seu partido para atrair e organizar esses setores, em boa parte fora de qualquer partido? 
                                                                       
Mauro Iasi: Esse é um caso bastante atípico do momento de reconstrução do PCB. Temos uma penetração bastante boa nesse campo, sem dificuldades. Nossa prioridade é o crescimento na juventude, onde crescemos bastante nos últimos 10 anos, e na classe trabalhadora, onde temos crescido um pouco sindicalmente. Temos presença na universidade, uma boa gama de quadros intelectuais de renome... 

O PCB, historicamente, tem a tradição de pensar a questão cultural. Temos enfatizado a criação de células de base de cultura, onde temos difundido a reflexão cultural na perspectiva que compreendemos, de uma renovação cultural no Brasil, por um ponto de vista de esquerda, e essa tem sido uma estratégia de atração de militantes que dá resultado. 

Além disso, temos o trabalho de difusão cultural, literária, de debates políticos, através da fundação Dinarco Reis e do Instituto Caio Prado Junior. Mantemos uma regularidade de edição e publicação de livros e revistas, o que tem garantido a ampliação do partido neste campo. 

Correio da Cidadania: E qual é a reflexão que o partido faz hoje sobre a formação social e a "revolução brasileira"? Existe algum programa, mesmo geral, para a ideia de "revolução brasileira"? 

Mauro Iasi: Fazer tal reflexão é uma opção nossa no momento, muito calcada na avaliação que fazemos da formação social brasileira e seu desenvolvimento histórico mais recente. Priorizamos as formulações dos 13º, 14º e 15º Congressos, dentro do que chamamos de "acerto estratégico", um acerto de contas com a leitura que tradicionalmente o PCB fazia do Brasil, a respeito do desenvolvimento social histórico do Estado e das classes sociais em nosso país. 

A principal afirmação que trazemos para reflexão é a superação de uma visão que se manteve por muito tempo no PCB, de que o Brasil precisava realizar algum tipo de "momento democrático" nacional, no curso de uma estratégia revolucionária socialista. A nosso ver, todas as razões que porventura tenham justificado essa estratégia, hoje, estão superadas: o Brasil é um país de capitalismo completo, economicamente integrado, ainda que de maneira subordinada, à ordem imperialista e monopolista do capitalismo mundial. 

Isso resultou na conformação de uma sociedade burguesa que implica numa sociedade civil consolidada, forte, com aparatos privados de hegemonia extremamente eficientes no campo da ordem, o que gera uma sociabilidade burguesa e a hegemonia de uma ideologia burguesa no Brasil. A sociedade burguesa e o capitalismo do Brasil se consolidaram e estão integrados à ordem capitalista mundial. Não há nenhum tipo de tarefa em atraso ou algum aspecto da "revolução democrática" que não tenha se consolidado.

Existem aspectos que ficaram para trás, que na consolidação da forma típica do capitalismo central se deram diferentemente de como se deram aqui, em nossa avaliação. São particularidades da sociedade burguesa brasileira, o que implica na particularidade de seu caminho e também de sua superação em direção ao socialismo. 

Nesse sentido, a nossa primeira afirmação é de que estamos convencidos, e os últimos 12 anos só deram elementos para reforçar a tese, de que se trata de construir uma alternativa fundada num programa de transformações socialistas para o Brasil. O grande desafio são as mediações táticas para tal programa, em meio ao momento que vivemos. A consolidação da ordem burguesa cria uma série de problemas, do ponto de vista político, da desorganização e derrota impostas à classe trabalhadora pelos últimos 12 anos de governo de pacto social. O pacto social a desarmou e abriu um perigoso processo de organização de avanço político, social e até cultural da direita. Isso reforça nossa tese da necessidade de contrapor ao bloco conservador um outro bloco, revolucionário e centrado na classe trabalhadora. 

A nosso ver, a ação e estratégia de construção de um bloco revolucionário demandam a capacidade de apresentar a proposta alternativa, não só de governo, pois não se restringe a saber o que fazer com elementos conjunturais (como Banco Central, política econômica, combate à inflação), mas a pensar, de fato, nos grandes gargalos da sociedade brasileira. Tais gargalos não fogem da necessidade de uma reforma agrária, de uma profunda reestruturação fundiária, combinada com profundo questionamento ao modelo que hoje determina as grandes cidades no Brasil. 

Portanto, reforma urbana e reforma agrária são dois elementos de um único projeto estratégico, e base necessária da aliança dos trabalhadores do campo e da cidade. Esses eixos têm de se traduzir, e temos trabalhado, numa série de plataformas de luta, de indicações de novos eixos de construção política. 

Mas não é uma construção simplesmente teórica, que vá da nossa capacidade de formulação. Também é processo da luta de classes. Parte dos eixos centrais de tal construção está se dando nas lutas concretas que se intensificam de 2012 para cá. Tiveram momento de acentuado crescimento em 2013, inflexão em 2014, mas a base são as contradições dessa forma que classicamente se esgotou. 

A necessidade de construir um bloco de esquerda se dá pelo fato de que, se não for um movimento de esquerda a ocupar tal espaço, conforme vemos em outros países, teremos uma alternância entre regimes de pacto social, de concertação, com alternativas de direita, e daí para novas alternativas de concertação, mantendo tudo no campo da ordem. Vemos isso na Espanha, na Itália, em vários países da América Latina, onde alternativas falsamente progressistas acabam abrindo espaço para a perpetuação de ciclos conservadores, como no Chile, por exemplo. 

Estamos empenhados nessa construção, sabemos que no momento é um trabalho difícil, de contracorrente, mas os elementos conjunturais devem favorecer tal construção no médio prazo. Veja-se que, entre o final da eleição passada e essa, cresceu em alguns setores o mito de que o governo Dilma, diante do resultado apertado no segundo turno, e da tentativa de se apresentar uma polaridade entre esquerda e direita, na qual o PT seria a esquerda, faria um governo mais progressista, tentaria incorporar demandas dos movimentos sociais, para dar um grande salto, uma guinada, naquilo que marcou seu primeiro governo. Mas nós apostamos que não. Não por desejo, mas pela nossa avaliação. 

Infelizmente, seu segundo governo será bem mais conservador que o primeiro. E já temos os primeiros sinais. Essa ilusão toda durou até os primeiros anúncios dos ministérios, a exemplo de Katia Abreu na pasta da Agricultura, e Joaquim Levy, para representar os interesses dos grandes bancos, no centro da área financeira. É muito pouco provável que qualquer composição a fim de contemplar movimentos sociais possa contrapor a linha-mestra do governo, de continuidade da política conservadora. 

Mais do que isso: os ajustes cobrados pelo mercado, pelos acumuladores de capital e os grandes monopólios vão exigir muito sacrifício da classe trabalhadora. E é hora de construir uma alternativa de esquerda, que certamente não passa pelo que há no governo. 

Correio da Cidadania: Como enxerga o país sob o governo Dilma em 2015, com toda a arquitetura política e econômica que já se insinua pela frente, agora envolta no escândalo Petrobras? 

Mauro Iasi: O que a grande burguesia sempre faz é chantagear o governo entre o final de um mandato e o começo de outro. Vemos um jogo de forças de diferentes setores da burguesia, que querem se ver representados no ministério, alguns pessoalmente, outros através de suas demandas. Isso tem funcionado no Brasil, nos governos Lula e também Dilma. E deve funcionar neste, novamente. 

A ilusão de a Dilma fazer inflexão à esquerda já foi desfeita, à medida que ela não chamou ninguém para se reunir, desde o fim das eleições. Ela só se reúne com os grandes bancos, as grandes bancadas, ainda mais conservadoras, com o agronegócio e as grandes empresas. São esses os interesses que vão moldar o próximo governo. Não tenho notícia de que Dilma tenha se reunido com centrais sindicais, movimentos sociais, de luta pela terra... 

A não ser aqueles factoides de campanha, quando se recebiam algumas pessoas e demandas para dizer que algum dia se levará em conta. Mas isso acabará jogado para aquelas pastas e secretarias especiais que na prática não têm poder nenhum. Entrega o Ministério da Agricultura para o agronegócio e o Ministério do Desenvolvimento Agrário para alguém supostamente ligado aos movimentos de luta pela terra, sem poder nenhum de mudar a política agrária no país. É um especialista para dizer não à agricultura familiar, não às demandas dos pequenos proprietários e não aos assentamentos da reforma agrária. 

Esse caráter dificilmente mudará. O governo tende a ser mais conservador e terá de conceder mais ainda, dentro da dinâmica do presidencialismo de coalização que se consolidou no país. Porém, o pior é que será num cenário em que a crise do capital deve se manifestar de forma ainda mais intensa. A retomada da economia norte-americana deve atrair os recursos financeiros do mundo e deve levar à diminuição da disponibilidade de recursos antes direcionados ao Brasil, seja por aplicações financeiras, seja por investimentos econômicos diretos. 

Tudo isso leva a um quadro de contenção econômica. E o que o empresariado tira de suas bolsas de demandas em tais momentos? Ele tira o custo da força de trabalho, exige mudanças na área, para atacar o que chama de 'custo Brasil'; exige ainda mais benefícios na política tributária, o que só pode sair de um lugar, já que a manutenção da política de superávit primário é intocável. Ou seja, só poderá sair de malandragens contábeis, como o governo tentou fazer no final do ano, ou de cortes no orçamento, como já se anuncia claramente. 

Portanto, é um perfil de governo que vai exigir dos movimentos sociais organizados, dos sindicatos e da classe trabalhadora uma posição mais decisiva. Esperamos que, finalmente, depois dessa lição, voltem a ter uma postura mais ofensiva em relação às lutas sociais e partam para cima do governo. O crescimento de número de greves, de horas paradas, de movimentos de enfrentamento é grande, mas precisa dar um salto para se afirmar como alternativa política de bom alcance. 

Correio da Cidadania: Finalmente, como o PCB enxerga a sua relação de hoje com a esquerda e com os movimentos sociais? Como isso deve seguir na complicada conjuntura do segundo governo Dilma, ainda mais em meio a um quadro que se considera efervescente? 

Mauro Iasi: O PCB sempre pautou sua relação com os movimentos sociais, sindicais e outras forças de esquerda pelo princípio da transparência e firmeza de suas posições. Nunca a transformamos em conflitos, barreiras e indisposições que não pudessem ser superadas. Criticamos, quando tivemos de criticar, mas sempre tivemos posturas de apoio e solidariedade quando necessário. 

Nossa relação com os partidos de esquerda sai fortalecida, tivemos boa convivência durante as eleições. Acredito que somos um interlocutor que pode ajudar nos debates da esquerda organizada no campo eleitoral, mas também temos sido presença permanente nos fóruns de luta, de articulação, de tentativa de unificação de lutas, como as do ano passado e na sua continuidade. Porque, como parte das pessoas que se entusiasmaram com as ruas voltaram para casa, são aqueles mesmos de sempre que dão continuidade às lutas contra as remoções, pela moradia, nos movimentos de favelas, periferias, de luta pela terra. 

O PCB, a meu ver, se credenciou com sua postura militante e a disposição que mostrou nesse tempo. E já estamos operando no sentido de levarmos a tais espaços a ideia de que precisamos dar um salto de qualidade nas lutas do ano que vem. Vamos ver como as coisas se desenham, todo governo costuma iniciar mais devagar, com expectativas, mas pensamos que o cenário conjuntural, econômico e político de 2015 vai encurtar o tempo e permitir que, já no primeiro semestre, tentemos alguma coisa mais incisiva, no sentido de apresentar demandas da classe trabalhadora, que tendem a ser esquecidas na pauta política. Ou, pior ainda, tendem a sofrer sérios ataques contra seus direitos. 

Temos boas relações com esses atores e não criamos nenhum tipo de incidente até entre aqueles que optaram por apoiar Dilma no segundo turno, com medo de uma vitória do PSDB. Apenas alertamos que o PCB não acompanharia essa posição, defendemos o voto nulo e infeliz, ou felizmente, a cada dia se comprova que as razões pelas quais votamos nulo se confirmam. 
26/Novembro/2014

[*] Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania ; Gabriel Brito é jornalista. 

O original encontra-se em www.correiocidadania.com.br/... 

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

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