Constituição e imprensa: duas décadas de promoção da dignidade e cidadania
Marco Aurélio Mello (*)
Texto escrito pelo ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, especialmente para a comemoração dos 20 anos da ConJur:
É impróprio falar de liberdade sem deixar de anotar a posição de destaque por ela ocupada na arquitetura da Constituição de 1988. No título reservado aos direitos e garantias fundamentais, logo na cabeça do artigo 5º, ficou assegurado aos brasileiros natos e aos estrangeiros residentes no País, entre outras garantias, a de inviolabilidade à liberdade. Em seguida, previu-se, no inciso IX, a liberdade de expressão, independentemente de censura ou licença e, por fim, mais especificamente no campo da comunicação social, acabou consignada, no artigo 220, a impossibilidade de restrição à manifestação do pensamento, bem assim à criação, expressão ou informação, sob qualquer forma, processo ou veículo.
No âmbito do Supremo, não foram poucos os casos nos quais a interpretação dessas balizas normativas foi posta à prova. Entre estes, dois merecem relevo. Na sessão realizada em 30 de abril de 2009, o Colegiado julgou procedente o pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, relator o ministro Carlos Ayres Britto, para reconhecer a não recepção da Lei 5.250/1967, a chamada “Lei de Imprensa”.
Ao abordar a adequação do figurino constitucional da liberdade de informação jornalística, realçou a plenitude deste como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia. Ponderou a precedência da liberdade de imprensa sobre direitos à imagem, honra, intimidade e vida privada, esclarecendo a vedação do anonimato e a reparação,por meio do direito de resposta e do regime das responsabilidades penal, civil e administrativa, de eventual ilícito decorrente do excesso.
Mais tarde, em 15 de junho de 2011, ao concluir o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187, relator o ministro Celso de Mello, assentou a legitimidade da realização de manifestações favoráveis à descriminalização do uso de drogas, as chamadas “marchas da maconha”. Na oportunidade, defendi ser incompatível com a liberdade de expressão e de reunião a proibição, pelo Estado, desses atos. No sistema constitucional de liberdades públicas, a de expressão possui espaço singular. Tem como único paralelo, em escala de importância, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Com a definição do marco normativo da liberdade de expressão, frutificaram importantes veículos de informação, tendo o sítio eletrônico Consultor Jurídico (ConJur) bem desempenhado o papel de informar a comunidade de operadores do Direito. Nesses vinte anos de existência, foram mais de 165 mil textos disponibilizados, entre notícias, artigos e entrevistas, e mais de 21 mil decisões judiciais, petições e documentos oficiais publicados.
A audiência é enorme. Possuindo uma média de visitantes mensais na casa de 3,5 milhões, contou, de 1º de julho de 2016 a 1º de julho de 2017, com 91 milhões de acessos. Com as comemorações dessas duas décadas de trabalho, trago reflexões acerca da atuação do Supremo, revisitando importantes precedentes do Tribunal, muitos dos quais foram competentemente noticiados pelo portal.
O texto a seguir busca resumir os temas mais relevantes apreciados pelo Tribunal, tendo como norte a ideia da plena normatividade do princípio da dignidade da pessoa humana. Cumpre enfatizar que deixo de trazer rol exaustivo de precedentes, o que não seria possível, indicando julgados que reputo, por diferentes motivos, mais representativos da história constitucional.
A Constituição Federal possui vários dispositivos, uns mais, outros menos normativamente densos, sobre objetivos e posições que orientam e mesmo limitam o conteúdo das decisões políticas das maiorias de cada tempo. São princípios e regras primordiais, direitos negativos e positivos, de matrizes liberal e social, individuais e coletivos, a exigir do Estado o compromisso com o desenvolvimento da pessoa humana em bases livres e igualitárias.
Logo no início, há a vinculação do Estado brasileiro à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, incisos III e IV). Em seguida, encontram-se os objetivos fundamentais: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem geral, sem quaisquer preconceitos ou discriminações (artigo 3º).
No próximo título (II), “direitos e garantias fundamentais”, o constituinte detalhou inúmeros direitos e deveres individuais e coletivos (artigo 5º), direitos sociais[1] (artigo 6º), direitos específicos dos trabalhadores urbanos e rurais (artigo 7º), inclusive associativos (artigo 8º), de greve (artigo 9º) e participativos (artigos 10 e 11), direitos da nacionalidade (artigos 12 e 13) e de participação política (artigos 14 a 17).
Existem, ainda, diversos dispositivos espalhados pelo texto constitucional disciplinando direitos fundamentais diretamente ou protegendo-os por meio da imposição de deveres de conduta responsável aos titulares do poder público.
Nessa mais importante área temática da Constituição Federal, a dos direitos fundamentais, o Supremo tem revelado interpretação em busca da máxima realização possível dos valores da liberdade, da dignidade e da igualdade. No caso de conflitos entre os direitos, busca a harmonia, dando peso maior a um ou a outro por meio de pronunciamentos motivados que levam em conta, além de elementos textuais, as conexões de sentidos entre os enunciados envolvidos, os fatos e os valores presentes.
A concretização desses direitos tem sido o momento mais rico e merecedor de comemorações da interpretação da Constituição Federal pelo Supremo, como demonstra a síntese de decisões a seguir.
O Tribunal vem desenvolvendo jurisprudência rica sobre aquele que é considerado o centro normativo e axiológico do sistema constitucional de direitos fundamentais: o princípio da dignidade da pessoa humana. É inegável a dificuldade de se trabalhar com esse princípio ante o fato de tratar-se de conceito com contornos vagos e imprecisos, de ostentar natureza polissêmica, mostrando-se problemática a definição do âmbito de proteção[2]. Mesmo assim, o Supremo não se furta a enfrentar a temática e vem procurando expandir os sentidos normativos da dignidade da pessoa humana para obter a melhor realização do princípio no plano concreto, construindo jurisprudência valorosa de concretização dos direitos fundamentais.
O respeito à dignidade da pessoa humana, tanto na dimensão de valor intrínseco de todo ser humano como na perspectiva da autonomia, foi uma preocupação que tive desde os primeiros anos no Supremo. Em 10 de novembro de 1994, no julgamento do Habeas Corpus 71.373/RS – cujo acórdão foi por mim redigido –, esteve sob análise determinação judicial de comparecimento de réu em ação de investigação de paternidade a fim de realizar exame de DNA, “sob pena de condução sob vara”. O relator, ministro Francisco Rezek, indeferiu a ordem, destacando a proeminência do interesse dos supostos filhos.
Divergi dessa conclusão, consignando que, entre outros princípios constitucionais, o da dignidade da pessoa humana representa obstáculo intransponível para medidas extravagantes e arbitrárias, como a da espécie. Fiz ver não se coadunar com esse princípio a condução do investigado, mediante coerção física, ao laboratório para retirada do próprio sangue e realização do exame. A violência física autorizada significou grave ofensa à dignidade humana. A maioria do Tribunal, concordando com os argumentos, veio a impedir que o paciente fosse levado para submeter-se ao exame[3].
Em anos recentes, o Supremo apreciou as questões talvez mais emblemáticas da própria história envolvendo o princípio da dignidade humana. Refiro-me aos casos da “pesquisa com células-tronco embrionárias”, da “união homoafetiva” e do “aborto de fetos anencéfalos”. Em todos esses julgados, marcados por amplas controvérsias morais, assentou, com forte convicção, a eficácia imediata do princípio da dignidade da pessoa humana.
Na ação direta de inconstitucionalidade 3.510/DF, relator o ministro Carlos Ayres Britto, o Procurador-Geral da República questionou a constitucionalidade do artigo 5º da denominada “Lei de Biossegurança”, aprovada por 96% dos membros do Senado e 85% da Câmara. O dispositivo legal autorizou o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas e tratamentos de doenças graves. Interessante observar que o princípio da dignidade humana foi evocado tanto pelos que atacavam o ato quanto pelos que o defendiam.
O Procurador-Geral sustentou que o uso do embrião atenta contra o direito à vida e à dignidade do “ser embrionário”. As partes opostas articularam com a proteção do direito à saúde conferida pelas pesquisas, como uma exigência da própria dignidade da vida humana. O Tribunal julgou constitucional o dispositivo e, em meu voto, sublinhei a esperança proporcionada pela norma àqueles que precisam do tratamento autorizado, sentimento “sem o qual a vida do homem torna-se inócua”.[4]
Em 5 de maio de 2011, o Supremo reconheceu a equiparação jurídica entre a união estável homoafetiva e a heteroafetiva. Na ação direta de inconstitucionalidade 4.277/DF, relator o ministro Carlos Ayres Britto, estava em jogo essa equiparação de direitos ante possível obstáculo literal do artigo 226, § 3º, da Constituição, a impor o dever de proteção do Estado à “união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.
O Tribunal, por unanimidade, afastou o óbice da literalidade, proclamando que o dispositivo não veda expressamente a equiparação entre as uniões estáveis hetero e homossexuais. Conforme assentei, nem poderia fazê-lo, sob pena de desprezo da sistemática integrativa dos princípios que expressam os direitos fundamentais e, em especial, da dignidade da pessoa humana, que corresponde à unidade de sentido desse sistema. Daí a impropriedade de uma interpretação isolada do artigo 226, § 3º. O direito à preferência sexual, segundo consta da ementa do acórdão, é emanação direta do princípio da dignidade da pessoa humana[5].
Cabe ressaltar outro aspecto metodológico. Comparando contextos históricos, o Tribunal lançou-se à necessária tarefa de fazer evoluir os sentidos das normas constitucionais na direção das grandes transformações sociais contemporâneas. O ministro Carlos Ayres Britto, relator, apontou o “avanço da Constituição de 1988 no plano dos costumes”. Consignei esse aspecto quanto à modificação paradigmática no direito de família, que teria passado a ser o direito “das famílias”, isto é, “das famílias plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento.
Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar”. Com isso, “alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum. Abandonou-se o conceito de família enquanto ‘instituição-fim em si mesmo’, para identificar nela a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de cada partícipe”. O Tribunal compreendeu bem essa evolução e consagrou-a ao interpretar a Constituição Federal.
Em 12 de abril de 2012, examinou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54/DF, de minha relatoria, e decidiu, por maioria, que a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não é crime. Foi uma das mais relevantes questões analisadas pelo Tribunal. A inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal no sentido da tipicidade da conduta seria decorrência da observância direta do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos da mulher à saúde, à autodeterminação e à liberdade sexual e reprodutiva.
A maioria reconheceu implicar ofensa à dignidade e à autonomia da mulher obrigá-la a conduzir até o fim gestação de feto anencéfalo. Em meu voto, afastada a possibilidade de a questão “ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas” e afirmada a antítese entre anencefalia e vida, assentei que estavam em jogo apenas direitos de gestantes de natimorto cerebral – “a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres”.
Esses são apenas alguns dos mais relevantes casos apreciados pelo Tribunal ao longo dos últimos vinte anos. Os tempos atuais exigem o mais amplo respeito pela dignidade humana, fundamento maior da República.
A principal missão do Supremo é concretizar a parte mais importante do projeto constitucional de 1988: os direitos fundamentais envolvidos nos valores da liberdade, igualdade e dignidade. Vem desempenhando, com destaque, importante papel institucional enquanto última trincheira da cidadania, a que recorre o jurisdicionado para fazer valer direitos e garantias.
A imprensa forte e imparcial, aliada à atuação com destemor do Poder Judiciário, constituem os alicerces para o avanço dos ideais expressos na Carta Cidadã. É elemento essencial na construção e fortalecimento da República e deve ser cultivado e fomentado por aqueles que ombreiam na luta pela prevalência do Estado de Direito.
Parabenizo o trabalho desenvolvido pelo site Consultor Jurídico, o qual, nestes vinte anos, contribuiu para a imprescindível desmitificação do dia a dia do Judiciário brasileiro, servindo de canal importante na potencialização da liberdade de expressão, a resultar no maior acompanhamento, pela comunidade jurídica, pela academia e pelos cidadãos, do cotidiano do Judiciário, da concretude do Direito.
[1] Sobre a discussão em torno da fundamentalidade ou não dos direitos sociais no Brasil, cf. TORRES, Ricardo Lobo. A Jusfundamentalidade dos Direitos Sociais. Arquivos de Direitos Humanos 5. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 99-124; SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 296 e ss; KRELL, Andréas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um Direito Constitucional “Comparado”. Porto Alegre: Safe, 2002.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a dignidade da pessoa humana na jurisprudência do STF. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 38-39.
[3] STF – Pleno, HC 71.373/RS, Rel. Min. Francisco Rezek, cujo acórdão redigi, j. 10/11/1994, DJ 22/11/1996.
[4] STF – Pleno, ADI 3.510/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 29/5/2008, DJ 28/5/2010.
[5] STF – Pleno, ADI 4.277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 5/5/2011, DJ 14/10/2011.
(*) Marco Aurélio Mello Ministro do Supremo Tribunal Federal. Presidente do Supremo Tribunal Federal (maio de 2001 a maio de 2003) e do Tribunal Superior Eleitoral (maio de 1996 a junho de 1997, maio de 2006 a maio de 2008 e novembro de 2013 a maio de 2014). Presidente do Supremo Tribunal Federal, no exercício do cargo da Presidência da República do Brasil, de maio a setembro de 2002, em 5 períodos intercalados.
Comentários