Brasil, o paraíso dos rentistas

                                                              
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Ana Araujo e José Martins (*)

Não re­frescou nada a re­cente re­dução para 9,5% ao ano da taxa bá­sica no­minal de juros da eco­nomia bra­si­leira, a po­pular SELIC. A taxa no­minal de juros pode até cair um pouco, mas sua taxa real (taxa no­minal menos in­flação pro­je­tada para os pró­ximos 12 meses) não sai do lugar. 

O cré­dito não au­mentou nem um tostão para o con­sumo in­di­vi­dual e nem para o con­sumo das em­presas (in­ves­ti­mento). Sem o aque­ci­mento dessas duas es­tra­té­gicas va­riá­veis an­ti­cí­clicas não ha­verá chance de re­to­mada do em­prego e da pro­dução. A eco­nomia bra­si­leira vai con­ti­nuar no bu­raco. Para sair do su­foco atual seria ne­ces­sário agir emer­gen­ci­al­mente no au­mento dos gastos pú­blicos em in­ves­ti­mento (grandes obras de in­fra­es­tru­tura) e re­dução rá­pida da taxa real de juros da eco­nomia. 

O go­verno im­pe­ri­a­lista de plantão faz exa­ta­mente o oposto dessas emer­gen­ciais pro­vi­dên­cias. Con­gelou cons­ti­tu­ci­o­nal­mente os gastos pú­blicos com des­pesas cor­rentes, fator de ine­vi­tável re­dução do cres­ci­mento, para so­brar re­cursos para o pa­ga­mento dos juros reais da dí­vida pú­blica. O re­sul­tado é a pa­ra­li­sação (para não falar de ma­neira mais drás­tica em des­truição) da pro­dução. 

Com essa po­lí­tica econô­mica dos pa­ra­sitas, o Es­tado au­mentou em termos ab­so­lutos e re­la­tivos seus gastos com des­pesas fi­nan­ceiras e acabou pro­vo­cando dé­fi­cits e de­se­qui­lí­brios cres­centes das contas pú­blicas. O Es­tado gasta muito porque o juro é alto. E paga re­li­gi­o­sa­mente uma ab­surda massa de juros para os pa­ra­sitas da pá­tria fi­nan­ceira. 

O pro­blema dos juros só existe como en­trave ao cres­ci­mento econô­mico nas eco­no­mias do­mi­nadas do mer­cado mun­dial. Pro­duzir ca­pital com travão de mão pu­xado. Nunca de­sen­vol­vi­mento econô­mico, eter­na­mente cres­ci­mento econô­mico. No mo­mento, nem este úl­timo está mais ocor­rendo no Brasil. 

No Brasil, como de resto nas de­mais eco­no­mias do­mi­nadas, o pro­blema dos juros não é um mero pro­blema de dis­tri­buição ou con­cen­tração de renda (1). O bu­raco é mais em­baixo. Trata-se de um pro­blema de luta de classes, de ex­plo­ração im­pe­ri­a­lista e de con­ser­vação a qual­quer custo da pro­pri­e­dade pri­vada es­pe­ci­fi­ca­mente ca­pi­ta­lista. 

Nota mar­ginal

Em termos po­pu­la­ci­o­nais, os pa­ra­sitas bur­gueses que vivem ma­mando na dí­vida pú­blica através dos inú­meros e so­fis­ti­cados "pro­dutos fi­nan­ceiros" não passam de 10% da po­pu­lação bra­si­leira. Não são, por­tanto, apenas um pu­nhado de mal­vados ban­queiros ju­deus, como é po­voada a ima­gi­nação po­pular. Cal­cula-se que a massa de bur­gueses no Brasil seja pouco mais de 20 mi­lhões de in­di­ví­duos (entre pais e fi­lhos) to­tal­mente im­pro­du­tivos, mesmo aqueles em­pre­gados na forma as­sa­la­riada para vi­giar e mas­sa­crar, com re­forma ou sem re­forma tra­ba­lhista, os tra­ba­lha­dores pro­du­tivos em­pre­gados ou de­sem­pre­gados do exér­cito in­dus­trial de re­serva no Brasil. 

Esses 20 mi­lhões de pa­ra­sitas da pá­tria fi­nan­ceira e im­pe­ri­a­lista en­carnam a ver­da­deira base so­cial e econô­mica bur­guesa. Ela é com­posta da bur­guesia pro­pri­a­mente dita, pro­pri­e­tária dos meios de pro­dução so­cial, da pe­queno-bur­guesia as­sa­la­riada ou apenas pe­queno e média pro­pri­e­tária, ren­tistas em geral e ou­tras es­pé­cies ge­né­ricas de des­pa­chantes do im­pe­ri­a­lismo. 

Esses 20 mi­lhões de pais e fi­lhos de pa­ra­sitas so­ciais en­carnam, por­tanto, in­con­tá­veis formas e fun­ções de classe do­mi­nante para a pre­ser­vação do mer­cado, do Es­tado de­mo­crá­tico e da pro­pri­e­dade pri­vada es­pe­ci­fi­ca­mente ca­pi­ta­lista: em­pre­sá­rios in­dus­triais, co­mer­ci­antes, pro­fis­si­o­nais li­be­rais, grandes pro­pri­e­tá­rios de imó­veis ur­banos e agrí­colas, en­ge­nheiros, mé­dicos, ad­vo­gados, ban­queiros, juízes, eco­no­mistas, eco­lo­gistas, jor­na­listas, re­li­gi­osos, bu­ro­cracia mi­litar e po­li­cial, pro­fes­sores e ou­tras dis­ci­plinas es­tri­ta­mente ide­o­ló­gicas, téc­nicos e ad­mi­nis­tra­dores em geral, etc. 

En­quanto isso ocorre, a po­pu­lação ope­rária pro­du­tiva de 90% da po­pu­lação na­ci­onal (pouco mais de 180 mi­lhões de pes­soas) con­tinua amon­toada nas imundas li­nhas de pro­dução de ca­pital ou de­sem­pre­gada nas franjas do exér­cito in­dus­trial de re­serva. 

Para que não se diga que a breve des­crição acima da classe bur­guesa no Brasil é um exa­gero, ou que es­teja até in­va­dindo inad­ver­ti­da­mente ou­tras áreas da re­a­li­dade so­cial não au­to­ri­zadas para uma aná­lise econô­mica, vol­temos ao sin­gelo tema econô­mico deste bo­letim. 

Re­lembre-se, então, que é a taxa real de juros, não a no­minal, que conta na di­nâ­mica do mer­cado e na pos­si­bi­li­dade de re­a­ti­vação da pro­dução. E, data vênia, essa sa­grada cri­a­tura dos ca­pi­ta­listas e pa­ra­sitas do im­pe­ri­a­lismo em geral no Brasil con­tinua junto às pi­ores com­pa­nhias no ran­king mun­dial. 

Ver­go­nhosos 3,71% ao ano. Ca­tas­tró­ficos para a re­to­mada do cres­ci­mento. Vejam a lista do "top 10" das pi­ores taxas de juros reais do mundo. 

1 Rússia 4,59%
2 Tur­quia 3,93%
3 BRASIL 3,71%
4 In­do­nésia 3,36%
5 Colômbia 2,06%
6 China 1,45%
7 Mé­xico 1,43%
8 Índia 1,39%
9 África do Sul 0,86%
10 Ar­gen­tina 0,36%

Ob­serva-se na lista acima de grandes de­ve­doras e po­ten­ciais ca­lo­teiras que são todas eco­no­mias do­mi­nadas, sub­me­tidas ao peso do sis­tema ban­cário e fi­nan­ceiro global. As eco­no­mias que con­formam os cha­mados BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – ocupam a me­tade da lista. Os BRICS reúnem grandes eco­no­mias do­mi­nadas no mer­cado mun­dial. Também são re­la­ti­va­mente grandes as de­mais com­po­nentes da lista acima: Tur­quia, In­do­nésia, Colômbia, Mé­xico e Ar­gen­tina. 

Ob­serve-se também, de pas­sagem, uma coisa muito ilus­tra­tiva da na­tu­reza do mer­cado mun­dial mar­cado pelo de­sen­vol­vi­mento de­si­gual e com­bi­nado entre as di­versas na­ções. A re­a­li­dade de taxas de juros reais ele­vadas nas eco­no­mias do­mi­nadas é to­tal­mente di­fe­rente do que se pode ob­servar nas eco­no­mias do­mi­nantes do G7 (sete mai­ores eco­no­mias do mundo). 

1 Ca­nadá - 0,34%
2 Japão - 0,48%
3 Es­tados Unidos - 1,06%
4 França -1,43%
5 Itália - 1,63%
6 Ale­manha - 1,92%
7 In­gla­terra - 2,24%

Todas as eco­no­mias do G-7 apre­sentam taxas de juros reais ne­ga­tivas. Isso não acon­tece por acaso. São eco­no­mias que lutam contra a ten­dência à queda da taxa de lucro de mais um final de ciclo pe­rió­dico de su­per­pro­dução de ca­pital. Nesta luta contra a de­flação e a crise que se apro­xima, as eco­no­mias do­mi­nantes podem aplicar com toda a força suas redes pro­te­toras an­ti­cí­clicas sem de­pender dos in­te­resses es­te­ri­li­zantes de suas par­celas bur­guesas de ren­tistas e pa­ra­sitas econô­micos es­trito senso. 

Fun­da­men­tal­mente, é a pro­du­ti­vi­dade do tra­balho de uma eco­nomia na­ci­onal que de­ter­mina o valor ou qua­li­dade da sua moeda. Di­fe­ren­te­mente das eco­no­mias dos BRICS – onde pre­do­mina a ex­tração da mais valia-ab­so­luta, baixa pro­du­ti­vi­dade do tra­balho, como forma de va­lo­ri­zação do ca­pital – nas eco­no­mias do G7 pre­do­mina a mais-valia re­la­tiva, pro­du­ti­vi­dade do tra­balho re­la­ti­va­mente ele­vada. É essa úl­tima forma de va­lo­ri­zação que per­mite a uma de­ter­mi­nada eco­nomia na­ci­onal pos­suir "moeda forte" ou, sim­ples­mente, moeda con­ver­sível no mer­cado de câmbio in­ter­na­ci­onal. 

Com sua base de va­lo­ri­zação de­sen­vol­vida e di­fe­rente das eco­no­mias do­mi­nadas, as eco­no­mias do­mi­nantes do sis­tema im­pe­ri­a­lista também detêm, além de mo­edas ple­na­mente con­ver­sí­veis, um sis­tema fi­nan­ceiro e ban­cário pri­vado do­més­tico su­fi­ci­en­te­mente de­sen­vol­vido – capaz de ga­rantir au­to­no­ma­mente as ne­ces­si­dades na­ci­o­nais de moeda e de cré­dito dos se­tores in­dus­triais e ou­tras ati­vi­dades onde se produz ca­pital. 

So­mando as duas listas, ve­ri­fica-se que a taxa real de juros do Brasil, do mesmo modo que a no­minal, é uma das três mai­ores do mundo. Pra­ti­ca­mente em­pa­tada com a da Rússia e a da Tur­quia (3,93%). Três grandes me­li­antes da eco­nomia mun­dial. 

Nota mar­ginal 2 

Di­fe­ren­te­mente do Brasil, a Rússia de Putin pelo menos apre­senta a des­culpa de que ela pode ser uma me­li­ante econô­mica, mas é também uma su­per­po­tência mi­litar e ge­o­po­lí­tica. Isso é ver­dade. Uma grande ex­ceção na era mo­derna. Uma eco­nomia do­mi­nada com um exér­cito do­mi­nante. O pro­blema é que fazer guerra pelo mundo custa caro. Prin­ci­pal­mente para uma eco­nomia sem moeda con­ver­sível e sem um forte sis­tema fi­nan­ceiro na­ci­onal para fi­nan­ciar as des­pesas mi­li­tares. 

O Brasil, por seu lado – muito menos, in­clu­sive, que a Tur­quia – não pode jus­ti­ficar sua taxa re­corde de juros pelos mesmos mo­tivos mi­li­tares “no­bres” dos russos de en­frentar ini­migos ex­ternos for­te­mente ar­mados. Muito pelo con­trário. Por aqui, ter­ri­tório de caça de Washington, a única ati­vi­dade mi­litar vi­sível do Es­tado é o co­varde papel do exér­cito na­ci­onal do Sr. Jung­mann (2) de subir o morro para matar a in­de­fesa po­pu­lação tra­ba­lha­dora (muitas cri­anças) do exér­cito in­dus­trial de re­serva na­ci­onal. É por isso que esse gi­gante "dei­tado eter­na­mente em berço es­plên­dido” não passa de um anão ge­o­po­lí­tico e mero quinta-co­luna de Washington junto a seus vi­zi­nhos sul-ame­ri­canos. 

Con­cluímos, por hoje, ou­tras bre­vís­simas ob­ser­va­ções acerca deste ran­king mun­dial de juros reais. A mai­oria das grandes eco­no­mias do­mi­nadas já foi in­te­grada pas­si­va­mente às ca­deias pro­du­tivas glo­bais. Em maior ou menor grau, de­pen­dendo da área ge­o­e­conô­mica da pe­ri­feria. 

A di­nâ­mica pro­du­tiva in­terna dessas eco­no­mias do­mi­nadas de­pende, por­tanto, de uma des­pro­por­ci­onal ati­vi­dade co­mer­cial ex­por­ta­dora e im­por­ta­dora, so­mada a um con­tinuo afluxo de ca­pital ex­terno. Só o ne­o­mer­can­ti­lismo mantém as apa­rên­cias das mo­edas das eco­no­mias do­mi­nadas. 

Isso não é tão pre­mente nas eco­no­mias do G-7, que detêm mo­edas con­ver­sí­veis e sis­tema fi­nan­ceiro pri­vado in­terno que pode bancar sua ati­vi­dade econô­mica na­ci­onal. Não pre­cisam se pre­o­cupar com gi­gan­tescas somas de re­servas in­ter­na­ci­o­nais para servir de mu­leta às suas mo­edas na­ci­o­nais. 

A in­te­gração pas­siva às ca­deias pro­du­tivas glo­bais das eco­no­mias do­mi­nadas neste início de sé­culo 21 é o único re­mendo im­pe­ri­a­lista que po­deria com­pensar as fra­gi­li­dades mo­ne­tá­rias es­tru­tu­rais dessas eco­no­mias: baixa pro­du­ti­vi­dade econô­mica, au­sência de moeda con­ver­sível, au­sência de um sis­tema fi­nan­ceiro pri­vado na­ci­onal de­sen­vol­vido etc. 

Efeito co­la­teral ne­ces­sário deste re­mendo que cria ins­ta­bi­li­dades ma­cro­e­conô­micas muito mais re­sis­tentes que no pas­sado: ine­vi­ta­bi­li­dade de taxas de juros per­ma­nen­te­mente ele­vadas para fi­nan­ciar as dí­vidas pú­blicas dessas eco­no­mias do­mi­nadas. Isto é ines­ca­pável na atual re­es­tru­tu­ração im­pe­ri­a­lista do de­sen­vol­vi­mento de­si­gual e com­bi­nado do mer­cado mun­dial. 

Esta re­es­tru­tu­rada ar­ma­dilha im­pe­ri­a­lista é a prin­cipal razão pela qual o Brasil das "re­formas" deve con­ti­nuar no bu­raco por muito mais tempo do que ima­ginam os eco­no­mistas do sis­tema e a porca pro­pa­ganda da mídia dos pa­ra­sitas na­ci­o­nais e seus pa­trões es­tran­geiros.

Notas:

1) No Brasil chamam de renda a qual­quer tipo de ren­di­mento, in­clu­sive os sa­la­riais. 
2) Raul Jung­mann, mi­nistro da De­fesa. 

(*) Ana Araujo e José Mar­tins são eco­no­mistas.  
O ori­ginal en­contra-se em Crí­tica da Eco­nomia.

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(Com o Correio da Cidadania)

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