Capitalismo opiómano (*)


                                                                
 António Santos    

Os EUA atravessam a pior epidemia de toxicodependência da sua história, onde 170 pessoas morrem diariamente de overdose. Uma estatística lúgubre que aumentou 400 por cento desde 1999, 800 por cento em estados como o Ohio, 1500 por cento em cidades pobres como Huntington, na Virgínia Ocidental, onde um em cada dez bebés já nasce toxicodependente. A droga responsável pela nova tragédia não atravessa clandestinamente a fronteira com o México. É receitada em consultórios médicos e comprada legalmente nas farmácias.

Choque é a reacção mais comum de quem visita os EUA pela primeira vez e entra numa farmácia. Refrigerantes, chocolates, hambúrgueres, latas de cerveja e batatas fritas designam os corredores do que podia ser um supermercado português. O mais chocante, contudo, não está exposto nas prateleiras. Trata-se da pior epidemia de toxicodependência da história deste país, onde 170 pessoas morrem diariamente de overdose. 

Uma estatística lúgubre que aumentou 400 por cento desde 1999, 800 por cento em estados como o Ohio, 1500 por cento em cidades pobres como Huntington, na Virgínia Ocidental, onde um em cada dez bebés já nasce toxicodependente, e superior, incomparavelmente superior, aos piores números do grande flagelo do crack dos anos oitenta. 

Ao contrário da cocaína crack, a droga responsável pela nova tragédia não atravessa clandestinamente a fronteira com o México. É receitada em consultórios médicos e comprada legalmente nas farmácias. 

Os opióides, substâncias que produzem os efeitos do ópio, são consumidos habitualmente por um em cada três estadunidenses adultos, cerca de 92 milhões de pessoas. Destas, um número equivalente à população de Portugal está em situação de dependência.

Foi neste quadro que Chris Christie, designado por Trump para presidir à recém-criada «Comissão para o Combate à Toxicodependência e à Crise Opióide», pediu ao presidente para accionar o estado de emergência nacional. Num relatório apresentado segunda-feira, o governador republicano do Estado de Nova Jérsia propôs um tímido plano baseado numa campanha informativa, na alteração de legislação obsoleta e no envolvimento directo de agências e programas federais. 

Terça-feira a administração Trump fez saber que não irá declarar emergência nacional, desautorizando a comissão e dando a entender que continuará a lidar com o problema atacando apenas os seus sintomas. Infelizmente, a crise dos opióides não pode ser aplacada com paliativos burocráticos nem atirando dinheiro para o incêndio. 

Ela é o reflexo de um sistema económico e social com características opiómanas: o capitalismo monopolista viciado na destruição da produção e na especulação, nos resgates financeiros e nas transferências de rendimentos do trabalho para o capital. Sim, a epidemia existe porque o capital está viciado nas receitas anuais de dez mil milhões de dólares que estas drogas geram, mas o problema é mais profundo. 

Os estadunidenses estão viciados em opióides porque as seguradoras estão viciadas em lucros fáceis. Mesmo com seguro de saúde, uma única sessão de fisioterapia nos EUA custa aproximadamente 25 dólares. Já um frasco de oxicodona suficiente para um mês inteiro custa 10 dólares. 

Enquanto não houver um serviço de saúde público e universal capaz de tratar as doenças, haverá a necessidade de calar os sintomas. Não é por acaso que entre a população sem acesso a um seguro de saúde a taxa de dependência de opióides é duas vezes mais alta. Enquanto não houver um sistema para resolver os problemas, existirão drogas para adormecer as dores.

(*) Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2280, 10.08.2017

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