Um dramático Fórum Social Mundial em Salvador
Ana Prestes (*)
Passados menos de 10 anos, hoje o FSM volta às origens de resistência: se antes foi palco da apreciação coletiva dos avanços da esquerda na América Latina, hoje a pauta é outra
Enquanto escrevia esse artigo, circulava a notícia de que o MBL – Movimento Brasil Livre – ingressou com uma ação popular para impedir a realização do Fórum Social Mundial em Salvador. Considerando que em 2018 o FSM completa 17 anos de existência, podemos pensar que parte dos que hoje se organizam no MBL não tinham nascido ou ainda engatinhavam quando teve início o maior movimento mundial antissistema do então nascente século XXI. O ambiente latino-americano em que cresceram os hoje MBL foi marcado por uma agenda que incorporava formulações produzidas ou projetadas no interior do FSM.
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Naquela época, nos idos de 2001, surgia um encontro cuja identidade era ser o oposto do Fórum Econômico Mundial, que se reúne todos os anos na cidade suíça de Davos, para definição da agenda mundial do capital. Suas três primeiras edições, todas realizadas em janeiro na cidade Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, chamaram atenção da mídia internacional pela crescente capacidade de mobilização e reunião de distintos movimentos com um propósito unitário de lutar sob a insígnia de que “Um Outro Mundo é Possível”. Em 2001 foram 18 mil participantes de 117 países, passando para 100 mil participantes de 156 países em 2003.
Porto Alegre, então governada pelo Partido dos Trabalhadores, foi a perfeita anfitriã para o sul global que se levantava contra o hegemonismo sistêmico do norte. Foi a antessala dos novos tempos que estavam chegando para a América Latina, só a Venezuela e a heroica Cuba eram governadas por forças avançadas na época. Para termos ideia da coincidência entre o crescimento do Fórum Social Mundial, a evolução de sua agenda e a ascensão da esquerda na América Latina basta lembrarmos da histórica foto do FSM de Belém, em 2009, onde apareciam os então presidentes Lula, Chavez, Evo, Correa e Lugo, respectivamente do Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador e Paraguai.
A esta altura, final da primeira década do século, já ultrapassando a primeira infância, os hoje membros do MBL viviam em um país que tirava 40 milhões de pessoas da extrema pobreza, ampliava exponencialmente as vagas em universidades públicas, garantia subsidio para estudo nas faculdades privadas, subia o salário mínimo em termos reais, quitava a dívida com o FMI, enterrava a ALCA, criava cerca de 10 milhões de empregos, fortalecia o Mercosul e etc. Adolescentes, os reacionários de hoje, cresciam em um país com déficit de engenheiros para inúmeras vagas e com incontáveis concursos públicos abertos ou em fase de preparação. Era um Brasil de amplas oportunidades para sua juventude.
Mas o investimento das forças de esquerda e dos movimentos sociais nas pautas nacionais curiosamente representou também consideráveis recuos para a magnitude do FSM. O auge da agenda de justiça social é também o período em que o FSM começa a definhar. Podemos considerar Belém, 2009 como o pico antes de iniciar a descida. Na América Latina tal dinâmica pode se explicar pelo cansaço dos movimentos com as infrutíferas tentativas de fazer com que o FSM não fosse apenas uma praça ou uma plataforma onde cada grupo apresentava suas demandas e suas sugestões de ação, sem afunilar em decisões comuns. Os movimentos, de trabalhadores, camponeses, mulheres, estudantes e vários outros defendiam que era preciso ter definições concretas de luta. Grandes ONGs discordavam e assim, movimentos e ongs, entraram em rota de colisão sobre o formato do FSM.
Ao longo de quase duas décadas de existência, o FSM perdeu consideravelmente em visibilidade mundial. Antes noticiado pela imprensa como o anti-Davos e com uma agenda que despertava interesse, hoje ficou estereotipado como um isolado encontro das esquerdas. Parte do impacto se deve também à crise econômica mundial iniciada em 2007/2008. Muitas organizações que investiam no encontro, viajando com grandes delegações e organizando atividades, deixaram de conseguir financiamento para seus projetos relacionados ao FSM.
Mesmo grandes ONGs deixaram de conseguir mobilizar recursos para investir no FSM. Nesta época, o FSM também sofre diversas modificações, deixando de ocorrer na mesma data de Davos, passando a ser eventualmente centralizado, mas também temático ou policêntrico (realizado ao mesmo tempo em várias localidades), alternando regiões do planeta para sua ocorrência. Seu Conselho Internacional, antes frequentado por intelectuais renomados como Noam Chomsky, Emir Sader, Atílio Boron, Edgardo Lander, Marta Harnecker, François Houtart, Bernard Cassen, David Harvey, Immanuel Wallerstein e outros, deixa de ser um centro formulador da resistência contra-hegemonica mundial.
Se o FSM definhava, movimentos como o MBL passavam a crescer mundo afora. O pensamento conservador conseguiu retomar a iniciativa e o ciclo virtuoso de governos progressistas na América Latina, por exemplo, começa a sofrer sérias contingências e a restauração conservadora tem início. As jornadas de junho de 2013 no Brasil, que serviram de alerta para nós, a uma primeira vista até pareciam uma versão nacional das marchas dos Fóruns Sociais Mundiais com uma profusão de bandeiras diversas e propositalmente horizontalizadas, mas por trás estavam sendo instrumentalizadas pela reação. Golpes em Honduras, no Paraguai, no Brasil, tentativas de golpes na Venezuela, na Bolívia, no Equador, derrota dos Kirchner na Argentina, mostram que não era mesmo um “cambio de época”, ainda, mas uma “época de cambios”, apenas, de dialéticos avanços e recuos.
A atual edição do FSM, portanto, enfrentará um contexto estranho às anteriores. Os já crescidos meninos do MBL são parte de um cenário de avanço de forças retrógradas e fascistas que agora recrudescidas se levantam não só contra a pauta do encontro, mas inclusive contra sua possibilidade de realização, de existência.
Sua pauta é antidemocrática na essência. Passados menos de 10 anos, hoje o FSM volta às origens de resistência. Se antes foi palco da apreciação coletiva dos avanços da esquerda na América Latina, hoje a pauta é outra. É preciso se organizar para resistir. Devem estar presentes na edição deste ano ex-governantes como Lula, Dilma, Cristina Kirchner, Manuel Zelaya, Fernando Lugo e Mujica.
Se no auge do seu sucesso, o FSM reuniu movimentos “com governos” e ONGs “com recursos”, hoje ocorre o impensável encontro de "movimentos sem governos" e "ongs sem recursos" para tentar reativar o motor contra-hegemônico do FSM. Tudo isso em uma Salvador com o peso simbólico de ser um território que é origem e portador das várias contradições do Brasil, das coloniais às contemporâneas.
Em uma Bahia que por um lado renova o legado coronelista de ACM, através do neto que governa Salvador, e reconhece os avanços vividos com os governos Lula e Dilma, mantendo os governos petistas na direção do Estado. Golpe e resistência convivem nas ruas de uma Salvador que vai receber um dos mais dramáticos Fóruns dos últimos anos, pela urgência de respostas e pela desarticulação das forças da resistência em nível mundial.
(*) Cientista política. Autora da tese de doutorado: “Três estrelas do sul global: O Fórum Social Mundial em Mumbai, Nairóbi e Belém”.
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