As ditaduras podem voltar


Frei Betto


Todos os ditadores – de Hitler a Médici, de Batista a Stalin, de Franco a Somoza – passam à história como figuras execráveis, cujos nomes, estigmatizados, se associam às vitimas de seus governos tirânicos.

Aliás, Tirano era o comandante da guarda do rei Herodes. Seu nome tornou-se sinônimo de crueldade por se atribuir a ele a execução da ordem real de decapitar, em Belém, todos os bebês, entre os quais estaria Jesus se José e Maria não tivessem fugido com ele para o Egito.

A América Latina carrega em sua história longos períodos de supressão do regime democrático. No século 20, o Brasil conheceu dois: sob o governo Vargas (1937-1945) e sob o regime militar (1964-1985), sem falar dos que governaram sob Estado de sítio.

O paradoxo é que todas as ditaduras latino-americanas foram suscitadas, patrocinadas, financiadas e armadas pelo governo dos EUA. Até o mandato de George W. Bush, para a Casa Branca, democracia consistia numa panacéia, mera retórica política. Fala-se que nos EUA nunca houve golpe de Estado porque não há, em Washington, embaixada americana...

O recente golpe em Honduras, que resultou na deposição do presidente Zelaya, democrática e constitucionalmente eleito, coloca o governo Obama frente à hora da verdade. Ao receber a notícia, Hillary Clinton, secretária de Estado, vacilou.

Talvez tivesse manifestado apoio aos golpistas se o presidente Obama, em viagem à Rússia, não houvesse reagido em defesa de Zelaya como legítimo mandatário. Ainda assim, os EUA não suspenderam sua ajuda financeira e militar às Forças Armadas hondurenhas, que sustentam o ditador de plantão.

A política externa da Casa Branca trafega sobre o fio da navalha. Sabe que Zelaya está mais próximo de Chávez que dos falcões usamericanos que ainda comandam a CIA. Essa agência, especializada em terrorismo oficial, não foi devidamente saneada por Obama.

E, agora, tenta justificar o golpe sob o pretexto, infundado, de que o presidente da Venezuela estaria prestes a remeter comandos militares a Honduras para derrubar os golpistas e devolver o mandato ao presidente Zelaya. A América Latina conheceu significativos avanços políticos nas últimas duas décadas.

Depois de destronar as ditaduras militares e rechaçar presidentes neoliberais – Collor no Brasil, Menem na Argentina, Fujimori no Peru, Caldera na Venezuela – demonstra preferência eleitoral por candidatos oriundos de movimentos sociais, dispostos a disputar o espaço das esferas de poder com os tradicionais grupos oligárquicos.

É verdade que o uso do cachimbo entorta a boca. Alguns mandatários, em nome da governabilidade, não têm escrúpulos em fazer concessões a velhos caciques políticos notoriamente corruptos, representantes de feudos eleitorais marcados pela mais extrema pobreza.

Quando um líder político de origem progressista se deixa cooptar pela oligarquia conservadora, o que está em jogo, de fato, não é a propalada governabilidade. É a empregabilidade. Perder eleição significa o desemprego de milhares de correligionários que ocupam a máquina do Estado.

Nesses tempos de crise financeira, não é fácil inserir órfãos do Estado na iniciativa privada. Seria, para muitos, atroz sofrimento perder o cargo e, com ele, as mordomias, tanto materiais – transporte e viagens pagos pelo contribuinte –, como simbólicas – a aura de autoridade que desencadeia em torno ondas concêntricas de bajulação. Todos sabemos que, hoje, no centro da vida política sobressai a questão ética.

A maioria dos políticos teme a transparência. Por isso, muitos, descaradamente, agem por baixo dos panos, promulgam decretos secretos, cumpliciam-se em maracutaias, tratam como de somenos importância o fato de o deputado do castelo usar verba pública em benefício próprio, ou um senador, ex-presidente da República, incluir sua árvore genealógica na folha de pagamento custeada pelo contribuinte.

Se não se estancar essa deletéria convivência e conivência de lideranças outrora progressistas com velhos e corruptos caciques, não se evitarão a descrença na democracia, a deterioração das instituições políticas, a perda do senso histórico na administração pública. O que constitui excelente caldo de cultura para favorecer o retorno de ditadores salvadores da pátria.



Frei Betto é escritor, autor de Batismo de Sangue, entre outros livros.(Reprodução de artigo publicado no Estado de Minas; imagem:Google)

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