Seis questões sobre a urgência da democratização da comunicação
Dênis de Moraes (*)
Retomo e amplio aqui seis pontos da entrevista que dei à jornalista Najla Passos, publicada pela revista MídiacomDemocracia, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), em janeiro de 2013. As questões se tornam ainda mais oportunas neste momento em que se intensificam duas importantes campanhas de entidades da sociedade civil que lutam por um sistema de comunicação democrático no Brasil: “Para expressar a liberdade”, que defende uma nova e abrangente lei geral de comunicações; e o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações, cuja finalidade é regulamentar os artigos da Constituição de 1988 que impedem monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação de massa e estabelecem princípios para a radiodifusão sob concessão pública (rádio e televisão).
1. Por que a luta pela democratização da comunicação é uma necessidade urgente da sociedade brasileira?
A democratização do sistema de comunicação é uma exigência incontornável e inadiável diante da absurda concentração monopólica da mídia em mãos de poucos grupos privados e dinastias familiares. A legislação de radiodifusão brasileira continua sendo uma das mais anacrônicas da América Latina. Até hoje, não foram regulamentados os artigos 220 e 221 da Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, que, respectivamente, impedem monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação de massa (art. 220, § 5º) e asseguram preferência, na produção e programação das emissoras de rádio e televisão, a “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”, além da “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” (art. 221, I e II).
No caso da radiodifusão sob concessão pública, torna-se essencial uma regulação capaz de estabelecer os requisitos de interesse social para que as empresas concessionárias de rádio e televisão cumpram adequadamente suas atribuições de informar, esclarecer e entreter. São urgentes mecanismos legais para coibir a concentração e a oligopolização, além de assegurar lisura e transparência nos mecanismos de concessão de outorgas de canais.
2. Qual tem sido a ação do Estado brasileiro no setor estratégico de comunicação?
O imobilismo dos sucessivos governos chega a ser alarmante. As políticas públicas de comunicação, quando existem, são absolutamente tímidas, limitadas, fragmentadas e desencontradas. Não há uma visão estratégica, por parte do poder público, sobre o estratégico campo da comunicação de massa. Isso é grave porque as políticas públicas são indispensáveis para a afirmação do pluralismo, como também para definir o que deve ser público e o que pode ser privado, resguardando o interesse coletivo frente às ambições particulares.
3. Quais as consequências deste imobilismo por parte do poder público?
As consequências são graves. A concentração da mídia não para de acentuar-se. É aguda a concentração na televisão aberta. De acordo com levantamento do projeto Os Donos da Mídia, seis redes privadas (Globo, SBT, Record, Band, Rede TV e CNT) dominam o mercado de televisão no Brasil. Essas redes privadas controlam, em conjunto, 138 dos 668 veículos existentes (TVs, rádios e jornais) e 92% da audiência televisiva.
A Globo, além de metade da audiência, segue com ampla supremacia na captação de verbas publicitárias e patrocínios. De maneira geral, tem-se a percepção de que os governos se omitem em relação a esse grave problema por receio de contrariar os megagrupos que controlam o setor. Se esse receio não existe, por que nada se faz?
Persiste o coronelismo eletrônico (concessões diretas ou indiretas de licenças de rádio e televisão a parlamentares e políticos profissionais). Até quando vamos testemunhar o fechamento de rádios comunitárias, com a apreensão, autorizada pela Anatel ou por mandados judiciais, de equipamentos pela Polícia Federal e o indiciamento dos responsáveis com base em dispositivos dos arcaicos Código Brasileiro de Telecomunicações (1962) e Lei Geral de Telecomunicações (1997)?
4. Na América Latina, o quadro parece bem diferente do brasileiro, pois governos progressistas têm tomado medidas importantes para atacar os monopólios e democratizar a comunicação em seus países. Quais as mais relevantes?
A defesa do direito social e humano à comunicação constitui um relevante avanço de perspectiva em países latino-americanos com governos progressistas. A participação protagônica do Estado nas questões comunicacionais é ponto consensual. Durante 30 anos, o neoliberalismo tentou nos convencer de que o mercado seria capaz de distribuir informações e conhecimentos de maneira equânime. Um engodo, já que o mercado é elitista e está estratificado, o que marginaliza os setores populares de maneira dramática. Então, numa região marcada por desequilíbrios e profundas desigualdades, o Estado precisa intervir para garantir a diversidade cultural, a soberania nacional e o acesso e o usufruto social das tecnologias.
Desde a última década, a comunicação ingressou nas agendas públicas como um dos temas prioritários. Da atitude de comprometimento assumida por presidentes progressistas, como Cristina Kirchner, Rafael Correa, o saudoso Hugo Chávez e Evo Morales, resultaram legislações antimonopólicas, como, por exemplo, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (a chamada Ley de Medios), a Lei Orgânica de Comunicação do Equador, a Lei de Radiodifusão Comunitária do Uruguai e a Lei de Comunicação Popular da Venezuela.
São leis avançadas e inclusivas, que renovam marcos regulatórios para a outorga de canais de rádio e televisão, apoiam meios alternativos e comunitários, fomentam o audiovisual independente e a integração cultural em bases cooperativas. Em suma, invertem, beneficamente, as prioridades em favor da liberdade de expressão e da cidadania, desfazendo privilégios e discriminações acumulados ao longo de décadas pelo capital privado.
5. O descompasso entre o Brasil e países vizinhos fica mais evidente...
O descompasso é gritante. Basta olharmos para os países vizinhos e verificarmos como o nosso país ficou para trás em termos de providências governamentais em prol da diversidade informativa e cultural. Os governos daqueles países não retrocedem, mesmo diante das sórdidas campanhas opositoras movidas por grupos monopólicos de mídia e elites reacionárias cujas vantagens e conveniências estão sendo afetadas pelas medidas democratizadoras. No Brasil, a menos de um ano e meio do término do mandato de Dilma Rousseff, vai se reduzindo muito a expectativa de que a presidenta rompa com a inércia de seus antecessores e demonstre vontade política para promover mudanças significativas no atual sistema de comunicação, a partir de consultas e discussões com os setores da sociedade civil envolvidos. Se isso acontecer, a era Lula completará 16 anos de convivência com a concentração monopólica da mídia e suas sérias consequências.
6. Qual o papel dos movimentos que lutam pela democratização da comunicação, neste cenário?
Não é por falta de diagnósticos e proposições consequentes que não se renova o sistema de mídia do Brasil. A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em dezembro de 2009 com a expressiva participação de delegados escolhidos por entidades da sociedade civil, pelo empresariado e pelo próprio governo, foi um marco histórico em termos de esclarecimento e discussão pública das questões comunicacionais, tendo sido precedida por uma série de conferências estaduais e municipais. A Confecom definiu os temas prioritários que devem ser enfrentados pelo poder público para a democratização da comunicação no país. E, no entanto, três anos e meio depois, a imensa maioria das 633 proposições da Conferência não foi implementada.
Nos últimos meses, vem crescendo a mobilização de entidades da sociedade civil em torno de duas iniciativas convergentes na luta pela democratização da comunicação no Brasil: a campanha “Para expressar a liberdade” (http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/) e o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações (http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/index.php/2013-04-30-15-58-11). São propostas fundamentais que têm como pressuposto a necessidade de se pôr fim à concentração monopólica da mídia. Visam esclarecer, sensibilizar e mobilizar a sociedade civil para a importância de construirmos um sistema de comunicação descentralizado e plural, com equilíbrio entre os três setores envolvidos: o estatal/público, o privado lucrativo e o social/comunitário não lucrativo. Essas iniciativas merecem o mais amplo respaldo popular.
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Desenvolvo questões abordadas neste artigo nos meus livros Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação,em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano (São Paulo, Boitempo/Faperj, 2013), e Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação (Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011).
(*) Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Autor de mais de 25 livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba. Foi contemplado em 2010 com o Premio Internacional de Ensayo Pensar a Contracorriente pelo Ministerio de Cultura de Cuba e pelo Instituto Cubano del Libro. (Com a Editora Popular/Prestes a Ressurgir)
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