A filha do “Cavaleiro da Esperança” (Entrevista de Anita Prestes ao jornal "O Público" de Portugal)
SÃO JOSÉ ALMEIDA (Texto), DANIEL ROCHA (Fotografia) e R ICARDO REZENDE (Vídeo)
Luiz Carlos Prestes chefiou duas revoltas militares e determinou a vida do Partido Comunista do Brasil durante cinco décadas. A filha e historiadora Anita Prestes lança agora a sua biografia política.
Chama-se Anita “em homenagem a Anita Garibaldi” e Leocádia por causa da avó paterna, mas o peso político do seu nome assenta sobretudo nos apelidos, ou não fosse ela filha de duas lendas do imaginário político ocidental do século XX: Olga Benário Prestes e Luiz Carlos Prestes. “Ser filha de Prestes e de Olga leva a que as pessoas os homenageiem através de mim, eu tenho a clareza de espírito de que o fazem por eles, não por mim”, diz à Revista 2 Anita Leocádia Prestes, que esteve em Portugal este mês para dar uma conferência em Beja e no Porto e para lançar a obra Luiz Carlos Prestes — Um Comunista Brasileiro, de que é autora.
“O livro é uma biografia política do meu pai, que [em 1990] morreu com 92 anos, 70 dos quais com actuação política”, explica, precisando que, como historiadora, fez vários livros sobre o pai, mas que este sintetiza toda a obra anterior, enriquecida com investigação de base sobre períodos que não tinha ainda analisado, como por exemplo a consulta de arquivos em Moscovo. “Tudo o que está no livro foi documentado em arquivos, não é trabalho de memórias nem tem vida pessoal, só o que interessa para a vida política” de um homem que “foi um comunista e um patriota”. Em Lisboa, foi convidada a visitar a Torre do Tombo e a conhecer o dossier da PIDE sobre Luiz Prestes.
Aos 78 anos, Anita Prestes continua a investigar e a divulgar a história do pai, o mítico “Cavaleiro da Esperança”, que entre o final de 1924 e o início de 1927 liderou uma revolta militar no Brasil, que ficou para a história como “a Coluna Prestes” — o capitão do Exército comandou centenas de homens e mulheres ao longo de 25 mil quilómetros, do Rio Grande do Sul pelo interior até ao Nordeste e depois para sul de novo, até Minas Gerais.
A “Coluna Prestes” exilou-se na Bolívia e depois na Argentina, tendo Luiz Carlos Prestes viajado, em 1931, para a União Soviética onde fez formação ideológica. Em final de 1934, já como funcionário da Internacional Comunista, regressa ao Brasil para integrar e liderar o Partido Comunista do Brasil, que passa a ser uma secção da III Internacional. Com ele vinha a sua mulher, Olga Benário Prestes, de nacionalidade alemã. Nos documentos oficiais, ele é António Vilar, de nacionalidade portuguesa, ela é Maria Bergner Vilar.
Luiz Carlos Prestes chefiou duas revoltas militares e determinou a vida do Partido Comunista do Brasil durante cinco décadas. A filha e historiadora Anita Prestes lança agora a sua biografia política. Estivémos com ela na Torre do Tombo no momento em que abriu as pastas que a PIDE organizou sobre si e a sua família. SÃO JOSÉ ALMEIDA, RICARDO REZENDE
No Brasil, Luiz Carlos Prestes lidera o PCB e a Aliança Nacional Libertadora, que se opõem ao Governo de Getúlio Vargas. Em 1935, desencadeia-se o movimento para derrubar o Governo de Getúlio que ficou para a história como “Intentona Comunista”, uma insurreição militar que se inicia em Natal e que Prestes procura, sem êxito, que se torne nacional. A ANL é ilegalizada e, em 5 de Março de 1936, Luiz Carlos e Olga Prestes são presos na casa clandestina onde moravam havia pouco tempo, o n.º 279 da Rua Honório, no Rio de Janeiro.
Olga e Luiz Carlos não mais se voltarão a ver. Ele fica preso até 1945. Ela é deportada para a Alemanha, referenciada como comunista e de origem judaica. Olga estava grávida de Anita Leocádia, que nascerá em Berlim, a 27 de Novembro, na prisão de mulheres da Gestapo, em Barnimstrasse. “Nasci na prisão, depois é que a minha mãe foi para o campo de concentração”, conta Anita Prestes.
Anita está com 14 meses quando é entregue à avó paterna, Leocádia Prestes, que se desloca a Berlim acompanhada pela sua filha Lygia, irmã de Luiz Carlos e tia de Anita. A Gestapo decide entregar a bebé como forma de sossegar a campanha internacional em curso no Brasil, nos EUA e na Europa pela libertação da família Prestes. “A Gestapo estava disposta a ver-se livre de mim, porque era muito emocional o impacto na opinião pública, eu era uma criança presa. Já em relação à minha mãe era diferente, ela era uma comunista”, explica agora Anita. “Até 1945, havia a esperança de que a minha mãe estivesse viva. A minha avó viveu na ansiedade de saber como vamos libertar Olga”, acrescenta. De facto, a líder comunista será transferida para o campo de concentração de Lichtenburg, depois para o de Ravensbruck e por fim para Bernburg, onde é executada numa câmara de gás a 23 de Abril de 1942.
Por seu lado, a bebé Anita vai para o México. “Tinha em casa a foto dos meus pais, desde nova explicaram-me que eles lutaram por um mundo melhor para as crianças. No México havia muita solidariedade e muito apoio a exilados por causa da abertura do Presidente Lázaro Cárdenas del Rio. Cresci sempre com muita solidariedade”, assume Anita. “Agradeço muito à minha avó e à minha tia que me deram a entender que a solidariedade era pelos meus pais e que eu tinha de me fazer por mim”, conclui.
Nasci na prisão, depois é que a minha mãe foi para o campo de concentração
É com nove anos que Anita regressa ao Brasil, para viver dois anos no Rio de Janeiro. É então que conhece o pai. “Em 1945, houve amnistia e fomos para o Brasil, o meu pai voltou [da prisão]. Foi eleito senador. Os comunistas eram legais.” Demonstrando como nos padrões da militância comunista da III Internacional os objectivos políticos estavam acima de conjecturas pessoais e de emoções privadas, Prestes e o PCB defendem que a eleição do novo Presidente seja feita apenas depois da eleição da Assembleia Constituinte, de modo a garantir a estabilidade. Uma posição política que ainda hoje surpreende, já que foi sob a governação de Getúlio que Prestes foi preso durante dez anos e que Olga foi deportada e entregue à Gestapo e à morte.
Em 1946, Prestes lidera a bancada comunista que conta com 15 deputados. São dois anos de harmonia familiar, mas também de formação política intensa para a jovem Anita. “Eu era filha da Olga, o grande amor da vida dele, ele levava-me para todo o lado, para os comícios, para a vida política. Fui criada num ambiente político.” E ao lado de um homem que era já então um mítico revolucionário e um líder. “A quantidade de presentes que recebia enchia armários. Distribuíamos os presentes pelos primos e pelos pobres. Sempre fui muito orientada no que tinha para olhar para os outros.”
Mas em 1947 o Governo de Gaspar Dutra consegue a ilegalização do PCB e os mandatos dos deputados são cassados. “O meu pai foi para a clandestinidade, mas correspondíamo-nos”, conta Anita, recordando: “Eu tinha segurança. Ia para a escola com dois guardas, o partido tinha medo que me fizessem mal. Mas aos 14 anos fui para Moscovo com a minha tia Lygia.”
É na URSS que Anita faz os estudos secundários. E começa a sua militância comunista. “Eu era já tão comunista que queria ficar no Brasil e ser guerrilheira, mas fui para Moscovo e até pertenci ao Komsomol [Juventude do Partido Comunista da União Soviética]. Tive uma autorização especial para entrar porque era estrangeira. Ser comunista foi um processo natural”, explica.
Em 1958, Prestes volta a viver legalmente no Rio de Janeiro e casa-se com Maria do Carmo Ribeiro Prestes, de quem terá sete filhos. Em 1964, com o golpe militar que deu início à ditadura militar, Prestes passou à ilegalidade. Em 1971, o Comité Central do PCB decide que ele deve exilar-se. Viaja clandestinamente para a Argentina, daí voa para Paris e depois para Moscovo.
Já Anita terminou em 1974 o curso de Química Industrial na Escola Nacional de Química da actual Universidade Federal do Rio de Janeiro, e dois anos depois o mestrado em Química Orgânica. Sem nunca abandonar a militância comunista, acabou por exilar-se em 1973 de novo na União Soviética, onde em 1975 recebe o título de doutora em Economia e Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscovo. Desde aí dedicou-se a fazer a história do comunismo no Brasil e da actividade política de Luiz Carlos Prestes, de quem foi assessora política até à sua morte. Regressada ao Brasil após a amnistia de 1979, doutora-se em História Social pela Universidade Federal Fluminense e é professora de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.
Com a amnistia de 79, também o pai regressa ao Brasil. Escreve então “Carta aos Comunistas”, um documento onde defende a orientação doutrinária tradicional do partido, entrando em ruptura com o PCB, que acaba por abandonar em 1982, com um grupo de militantes. Não voltou a militar em nenhum partido, mas foi tomando posição na vida pública brasileira: apoiou a candidatura de Leonel Brizola, mas nunca aderiu ou apoiou o Partido Trabalhista (PT) nem Lula da Silva.
Luiz Carlos Prestes à frente da “Coluna Prestes”, em 1925
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“Desde o início, o meu pai foi muito crítico com o PT. Em 1980, havia a ilusão, mas o PT não é um partido revolucionário, nem socialista. Era já então um partido burguês”, considera Anita Prestes. E vai mais longe dizendo que “Lula foi derrotado três vezes e na quarta entendeu que só conseguia ser eleito se fizesse cedências ao capitalismo internacional, por isso escreveu a ‘Carta aos Brasileiros’ [onde se comprometia a não mudar a política económica]”.
Hoje em dia, Anita Prestes continua a ter uma visão crítica dos governos de Lula, bem como dos de Dilma Rousseff: “Eu e os meus companheiros achamos que é um prolongamento do neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso.”
A historiadora sustenta que “as políticas compensatórias dos dois governos de Lula e do primeiro de Dilma conseguiram melhorar as condições dos mais pobres, mas não acabou a miséria, basta andar nas ruas das maiores cidades do Brasil”. Defende que o momento político “é bastante complexo, o Governo Dilma e o PT estão extremamente desgastados e nos estudos de opinião a apreciação da Presidente obtém apenas 8%”. Mas admite também que “conseguiram paz social até 2013”. E foi a partir de então, afirma, que “os reflexos da crise mundial do capitalismo tiveram consequências no Brasil”: explodiram as “manifestações de protesto, que eram desorganizadas, sem liderança e sem proposta e que não resultaram num movimento político”, até porque tinham orientações políticas diversas e “houve mesmo elementos fascistas”. Estas manifestações, analisa, revelaram que “o povo estava desiludido com os partidos, à semelhança da Argentina em 2001”, assim como o facto de que “há uma grande despolitização”.
Sublinha, no entanto, que “as palavras de ordem causaram espanto”, pois revelaram “a defesa dos serviços públicos, dos transportes públicos, da saúde pública, do ensino público”. E destaca também o quanto essas manifestações mostram que “há uma insatisfação muito grande com a incompetência da Presidente”. O ano de viragem foi 2013, “em que a situação começou a mudar”. Daí que em 2014, nas presidenciais, Dilma tenha tido “uma vitória curta contra Aécio Neves, que representa alinhamento com os EUA, enquanto o PT tentou alinhamento com os BRIC [que para além do Brasil inclui a Rússia, Índia e China]”.
Desde então, segundo Anita Prestes, a governação do PT tem reflectido problemas e contradições: “Dilma nomeou Kátia Abreu ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ela é representante dos latifundiários e dos interesses agrários e a reforma agrária está parada. E Joaquim Levy, ministro da Fazenda, é o representante da Bradesco [banco] e propôs ajuste fiscal, que é um exemplo da típica política ortodoxa fiscal. Assim, o PT está dividido e a reforma fiscal está parada.”
Havia, no Brasil, muitos portugueses de esquerda e comunistas, a PIDE tinha interesse em ter informador
Já no que toca à destituição ou não da Presidente, Anita considera que é uma questão que revela o mesmo tipo de contradições. “Entre os tucanos, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), também há divisões, a área mais radical quer o impeachment de Dilma mas o grande capital não quer, os presidentes da Bradesco e do Itaú [os dois maiores bancos brasileiros] que são os representantes do grande capital.” Prova de que “os representantes do grande capital são a favor da permanência de Dilma”.
É precisamente a notícia da sua condenação à revelia, em 1973, que Anita Prestes viu em primeiro lugar quando abriu o dossier referente a Luiz Carlos Prestes que existe no Arquivo da PIDE, na Torre do Tombo em Lisboa, que visitou a convite do seu responsável, Silvestre Lacerda. “Se não tivesse saído do Brasil, se calhar não estava aqui para contar a história”, comenta olhando o recorte de jornal.
Vê o dossier com algum cuidado mas sem grande surpresa e sem deixar transparecer emoção. Afinal, é uma historiadora batida em arquivos e está habituada a ver materiais históricos sobre a vida política do seu pai. Alguns dos materiais são-lhe tão familiares que os explica à Revista 2. A começar pelo álbum comemorativo dos 50 anos de Prestes, apreendido quando foi enviado por correio para Portugal dirigido a Maria Helena Mântua — cidadã portuguesa que também tem um dossier no Arquivo da PIDE. Um álbum onde Anita Prestes reconhece duas cabeças do seu pai desenhadas por Carlos Portinari — “Ele era muito simples, era um camponês”, diz Anita sobre o pintor brasileiro.
Reage com interesse a um documento que aparentemente não se lembra de ter visto: o Avante! clandestino que inclui a saudação de Prestes à liberdade de Cunhal, após a fuga de Peniche em 6 de Janeiro de 1960.
Entre a leitura do que consta nos relatórios internacionais enviados à PIDE pelos serviços secretos franceses e norte-americanos, lá vai comentando que “a PIDE era bastante competente no que fazia”. E recorda que “havia um informador na comunidade dos portugueses no Brasil, o mesmo que dava informações sobre Humberto Delgado”, depois de o “General Sem Medo” ter pedido exílio da embaixada do Brasil em 1959 e rumado àquele país, onde viveu até ser assassinado pela PIDE, em 1965, em Espanha. “Havia, no Brasil, muitos portugueses de esquerda e comunistas, a PIDE tinha interesse em ter informador”, sublinha.
E recorda a primeira vez que ouviu uma palestra de Delgado no Rio de Janeiro: “A gente não entendia o que Delgado falava, tinha sotaque muito carregado, se tivesse falado em francês, o pessoal tinha percebido melhor. Mas com o sotaque dele, nem sabíamos quando havíamos de bater palmas.”
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