Conjunturas, poemas e o velho ódio de classe



Mauro Luis Iasi.

Um vídeo com uma análise de conjuntura realizada na abertura do Congresso da CSP-Conlutas, em junho deste ano, que terminava com um poema de Bertolt Brecht (“Perguntas a um bom homem”), causou frisson nas hostes da extrema-direita.

Não foi a análise de conjuntura em si, coisa mais complexa e que exige certa cultura política, mas o poema citado ao final que despertou a ira dos conservadores, atentos ao espaço virtual da luta de classes.

Na análise, comentava que diante das pressões que vinham de atos de massa contra e a favor do governo, o Palácio do Planalto demonstrava uma grande “boa vontade” para com a direita, anunciando sua disposição ao diálogo, ao mesmo tempo em que ignorava as demandas que vinham das bases sociais que se mobilizaram em seu apoio.

Parecia-me, e ainda parece, algo equivocado e errático. Primeiro pelo simples fato de que os que se dispuseram a sair em apoio ao governo (aqueles atos foram mais claramente compostos pela base governista do que os que se dariam no dia 20 de agosto) anunciavam, além da defesa da legalidade e continuidade do mandato da Presidente, algumas outras demandas (contrárias ao ajuste fiscal, pela reforma agrária, em defesa da Petrobras etc.). E em segundo lugar porque era muito difícil derivar uma pauta clara do circo de horrores que foi a manifestação da direita, que em suma pedia a cabeça da Presidente na bandeja do impeachment.

Diante dessa constatação, alertava aos presentes que considerava uma ilusão a governante tentar manter-se pela via de aumentar as concessões à direita, já tão beneficiada pela linha geral do governo, e o evidente compromisso com os rigores do chamado “ajuste fiscal” que esfolava ainda mais os trabalhadores.

Passei por elementos conjunturais como a denúncia da reforma política que atacava os partidos de esquerda, enfatizando a necessidade de constituição de um “terceiro campo” à esquerda e que se fundamente nas demandas da classe trabalhadora e das massas exploradas. Após descartar que o modelo para isso viria do hoje já falecido Syriza, procurei recuperar, como fecho de minha fala, a ideia de que não devemos nos iludir, nem com as artimanhas governistas e muito menos com o canto de sereia da direita golpista.

Para tanto recorri, como costumo fazer, a um poema de Brecht que conheci ao ler o livro Violência: seis reflexões laterais, de Slavoj Žižek, para o qual a Boitempo gentilmente havia me convidado a escrever o posfácio. Sou absolutamente contrário a explicar piadas, metáforas e poemas. Mas vivemos tempos sombrios, então vamos lá (e quando digo “tempos sombrios” estou fazendo uso de uma figura de linguagem, não ensaiando um comentário meteorológico).

No poema, Brecht fala de um personagem que se queixa, diante daqueles com quem estava em guerra que, era afinal um “homem bom”, que não se deixava comprar, que era honesto, corajoso, sábio e não defendia “interesses pessoais”. O poeta então retruca a cada verso que um rio não pode ser comprado assim como o raio que incendeia uma casa, e passa a perguntar retoricamente a quem serve a sabedoria do homem que se achava bom, assim como que interesses defendia, se não os seus próprios.

Veja, para aqueles que não são muito afeitos a poemas e outras manifestações da alma humana, é bom explicar que não se trata de uma pessoa e outra conversando, muito menos uma posição pessoal. É uma metáfora de um encontro de classes numa situação dramática, na qual a classe dominante se encontra diante da possibilidade de ser julgada por aqueles que sempre explorou e dominou. 

As classes dominantes estão imersas numa falsa consciência (não vou pedir que a direita leia Lukács se ela mal entende Olavo de Carvalho…), isto é, ela realmente acredita que é “boa” e que faz o “bem” para a humanidade quando impõe o livre mercado, a propriedade privada dos meios de produção, o Estado burguês e seus instrumentos de repressão e extermínio. Ela realmente crê que faz isso para o nosso próprio bem, e por isso se espanta quando reagimos.

Por meio desse mecanismo ideológico, os membros de uma classe dominante podem se reunir na ceia de Natal, rezar ao nosso senhor Jesus Cristo, amar os mais próximos que estão à mesa, e sair mais tarde para crucificar, torturar e matar os “distantes”, criancinhas negras nas favelas, sírios, afegãos, palestinos ou líbios em seus países.

Quando esta autoilusão se vê numa situação limite da luta de classes, como aquela que o poema descreve, os trabalhadores apenas devolvem a ela seu discurso, envolto num belo embrulho de ironia. Brecht está aqui utilizando em seu texto este instrumento dramático que ele tanto gostava: “Está bem, já que dizes ser bom, vou matar-te com esta boa bala”.

É uma ironia, uma metáfora. Muitos foram mortos em fuzilamentos nos dois lados da luta de classes. Não há notícias de uma só pessoa que tenha morrido ao ser atacada por uma metáfora e ainda que muitos possam alegar que foram cortados por uma fina ironia, e que doeu, certamente não morrerão por isso.

Brecht ficaria muito contente se pudesse saber que seus versos ainda incomodam a direita 59 anos depois de sua morte (ele morreu, não é uma metáfora, morreu mesmo).

Agradeço às muitas pessoas – amigos, conhecidos, camaradas, companheiros, alunos, colegas, entidades e mesmo gente que não conheço – pelo carinho e solidariedade empenhadas nesta hora.

E àqueles que entulharam minha página com ameaças, dizendo que gostariam de me fuzilar, me levar para o DOI-Codi para “brincar comigo”, que ameaçaram matar minha família, que expressaram seu desejo de que eu tivesse tomado um tiro na época da guerrilha (bom, eu tinha uns oito anos de idade, mas como eles torturam crianças é possível, não é?), que enviaram a foto do Comandante Guevara morto para dizer que fariam o mesmo comigo, que afirmaram que eliminariam todos os comunistas da face da terra, que eu quero mesmo “é uma piroca” (foi difícil entender a princípio, mas parece haver uma relação comprovada entre o conservadorismo e a homofobia), que vão me demitir de meu trabalho, que jamais poderei sair à rua, ir a restaurantes ou ser bem vindo em shows do Lobão… reafirmo apenas que, com tudo isso, conseguiram – de maneira muito mais didática do que fui capaz em minha análise – comprovar meu principal argumento: com a extrema-direita não é possível nenhum diálogo.

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[Ilustrações de Ricardo Bezerra, para a peça “O patrão cordial”, da Companhia do Latão]

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

http://blogdaboitempo.com.br/2015/10/20/conjunturas-poemas-e-o-velho-odio-de-classe/

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