A luz como meio e limite: : Filmar os seres de luz: desafio ao cineasta do século XXI

                                                                              
PEDRO NEVES MARQUES

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Quanto mais as tecnologias do Ocidente ambicionam uma visualização total do mundo, mais o mundo parece escapar ao Ocidente. Será estranho apenas aos insistentes ideólogos da Razão um vago sentimento de estranhamento do mundo, aflição paradoxal dada a proliferação de técnicas de visualização. No entanto, é o próprio mundo que nos escapa climaticamente; a economia financeira que corrói nações na sua abstracção; o fundamentalismo religioso que retoma visões divinas; a humanidade dos espíritos, animais e paisagens afirmada por sociedades animistas, o que surpreende e enfurece as indústrias de extracção.

O impacto da perspectiva linear no pensamento Iluminista é uma história bem contada, embora a relação entre poder, colonialismo e iluminação continue tão ou mais urgente. Historicamente, esta relação encontrou uma metáfora, embora material e técnica, no filme. A essência lumínica da fotografia analógica mantém-se no digital, mas o processamento do visível é radicalmente distinto. A captação lumínica de imagens por sensores semicondutores processa o visível já não literalmente mas através de uma tradução dita pura do mundo em informação. Cada píxel é uma prova inegável daquilo que existe. Cada algoritmo e código booleano, um mundo. O problema aqui é a própria relação entre existência e visibilidade. Como referiu o escritor Oswald de Andrade: “Os índios nunca tiveram o verbo ser.” E nas florestas onde os animais e os espíritos são humanos o visível é completamente outro.

Como refere a artista alemã Hito Steyerl, assistimos hoje a uma revolução perspéctica: a passagem da perspectiva linear (o paralelismo entre ponto de vista e o horizonte) para a predominância da perspectiva vertical [1].O ponto de vista do satélite ou do drone. Uma passagem técnica mas também sociológica certamente, tamanha a obsessão e quantidade de filmagens feitas por drones, os quais podem ser comprados por um custo inferior ao das próprias câmaras. 

Porém, militar e cientificamente, a ambição é a total visibilidade planetária melhorada por scans multiespectrais capazes de medir frequências de luz, calor ou dados climáticos como carbono. Se a imagem térmica se alia hoje ao combate antiterrorismo, qual predador, por outro lado passa a ser possível medir a idade de florestas através de carbono e usar tais dados em casos de genocídio ambiental e indígena, como na Amazónia. 

Equipado com 368 objectivas, o drone militar americano ARGUS-IS é capaz de mapear até 96 km2 e fazer zoom em diferentes escalas com cada uma das suas lentes [2]. É o mais sofisticado Predador em acção. Em terra, as câmaras de filmar 360º da Google, usadas para cenários de realidade virtual, são o seu familiar próximo. Tal mapeamento informático tem também as suas ilusões. A peça Phantom pelo artista espanhol Daniel Steegman Mangrané oferece a possibilidade de caminhar numa porção de Mata Atlântica, scaneada digitalmente, através de óculos de realidade virtual. Habitar a floresta sem ter de ali entrar, objectificar cada átomo numa rede de píxeis. Parece que a tecnologia é incapaz de scanear o céu, longe, difuso e luminoso demais, restando-nos apenas uma floresta digital de espectros, abstracta, pontilhado branco sobre fundo petrolífero.

Este fenómeno do céu negro é um paradoxo que se tem imposto ao meu trabalho fílmico junto com a artista Mariana Silva [3]. Traduzimo-lo de um modo mais simples: o paradoxo entra-nos pela televisão todos os dias. Perante a complexidade sistémica entre crise económica, guerra e clima, é o perspectivismo da câmara e a edição monolítica do jornalismo que parece incapaz de registar as redes globais. Assistimos diariamente nos telejornais à negação da montagem política de Sergei Eisenstein: na TV, a montagem não une mas separa, cada bloco de informação é distinto e não sistémico ou agregador, como no cinema. Montagem negativa que passa de uma notícia sobre falências bancárias para o desemprego, da desertificação na Síria para a ascensão do ISIS sem percorrer o caminho entre.

Onde as nossas máquinas vêem e quantificam apenas uma floresta e as nossas ciências uma enciclopédia biotecnológica, as sociedades ameríndias vêem uma natureza social e sob a roupa dos animais uma forma humana. Onde os aborígenes australianos vêem uma relação de parentesco totémico com o deserto, as indústrias de minério vêem apenas lucro. Filmar Fukushima nada diz sobre a sua radiação.

Evidentemente, quando em Fukushima temos contadores Geiger para nos ajudar. Mas como representar a radiação visualmente para além dos seus efeitos físicos a posteriori? Em suma, como pode o filme participar numa cosmopolítica plural, material, cultural e ontológica, ali onde o Ocidente vê apenas 1 e 0? Desafio que se impõe ao cineasta do século XXI: como traduzir, ao invés de capturar, os espíritos xapiri da floresta amazónica, tão obviamente visíveis para os yanomami, os seres da luz mais brilhante que há no mundo?

Pedro Neves Marques é um artista e escritor. Nasceu em Lisboa e vive actualmente em Nova Iorque

1. Hito Steyerl, “In Free Fall: A Thought Experiment on Vertical Perspective” em The Wretched of the Screen (Nova Iorque: e-flux, 2012).

2. Adam Kleinman, “ARGUS IS: An Almost Cock and Bull Story”, e-flux jornal 65 (Julho 2013). http://supercommunity.e-flux.com/texts/argus-is-an-almost-cock-and-bull-story/.

3. Ver o canal online http://inhabitants-tv.org/   (Com Público)

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