Sim, precisamos falar sobre capitalismo

                                                                  

Uma interpretação histórica sobre o capitalismo realmente existente no Brasil, e de como ele se insere no contexto das transformações da economia mundial capitalista, faz-se necessária


Alexandre de Freitas Barbosa (*)

Em outubro, o economista Gustavo Franco publicou um artigo instigante nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo. O ex-presidente do Banco Central convida-nos a “falar sobre capitalismo”, pegando carona no livro lançado pelo seu colega Fabio Giambiagi, Capitalismo: modos de usar.

Logo me lembrei do opúsculo de John Kenneth Galbraith, “A economia das fraudes inocentes”, no qual o autor relata porque os economistas mercadistas abandonaram o conceito de capitalismo ao longo do século XX. Remetia a monopólio ou a conflito de classes, trazendo à tona a dimensão do poder a ser extirpada em prol do mercado impessoal. Optaram então pela fraude inocente de sistema de mercado.

Em seguida, veio-me a definição de Fernand Braudel, na sua trilogia sobre o capitalismo, em que o autor caracteriza o capitalismo como o reino do monopólio, do contra-mercado, lugar onde se produz – por meio de uma relação concupiscente com o Estado – uma alta taxa de remuneração do capital. A economia de mercado, para o historiador, seria apenas um dos andares da estrutura econômica. Na prática, portanto, quando os mercadistas “falam sobre capitalismo” estão tomando a parte pelo todo.

Basta ver a definição de Franco sobre o “capitalismo”: “um sistema econômico baseado na propriedade privada, na liberdade de empreender, na letra da lei e na centralidade do mercado para estabelecer os preços”. Para depois atacar: “Que há de tão errado nisso?”. Nada. Cada um crê no que quiser. Mas o seu “capitalismo” é mera criação da mente. Não vale como instrumento de análise para destrinchar as várias formas concretas que assume o capitalismo ao longo do tempo e nos vários espaços da economia mundial.

Mesmo os Estados Unidos, a pátria da livre iniciativa, parecem caminhar no sentido de um “capitalismo patrimonialista”, crescentemente desigual, como nos aponta Piketty. Isso porque a riqueza sob a forma de capital já acumulado e dos altos salários tende a predominar sobre o novo capital produtivo e a renda do trabalho em geral.

No seu artigo, Franco compara o continente africano com a “região hoje conhecida como Califórnia”. Os nativos de ambas as regiões tiveram diferentes destinos: uns ficaram à margem do capitalismo, outros o abraçaram de maneira empedernida. 

Nesta fábula, transparece a sua noção hamletiana de capitalismo. Ele é ou não é. Não existe um processo histórico ou um sistema internacional. Instituições e atitudes foram criadas em alguns países e não em outros. 

No capitalismo, prosperidade para todos. No não capitalismo, ou no “capitalismo pela metade”, como parece ser o caso brasileiro, cultivamos hierarquias e privilégios. No seu mundo binário, há os que aceitam o capitalismo e se “desenvolvem”. Os outros, o rejeitam, e “fracassam”. Simples assim.

Não parece haver muita alternativa para as nações que cresceram com a estrutura genética do que ele chama de “patrimonialismo”. Não conseguem desenvolver as virtudes burguesas, quais sejam “empreendedorismo, parcimônia, iniciativa e integridade”. Ficam reféns das “conexões com o governo, imprevidência, reservas de mercado e malandragem”. A fábula de Franco pretende salvaguardar a sua cria imaculada, o Plano Real, e jogar a culpa da crise atual no “capitalismo companheiro”.

Fica evidente o tom político-ideológico do seu método (teórico?). Enquanto a economia crescia nos anos 2000, o governo Lula não havia feito nada, colhendo apenas os louros do Plano Real e das suas “reformas”. Quando o barco começa a afundar, a culpa é do “capitalismo companheiro”. Algo parecido com o que fazem, com sinal invertido, alguns economistas do PT tão criticados por Franco.

Mas, em um ponto, ele está correto. Sim, precisamos falar sobre capitalismo. Para tanto, uma interpretação histórica sobre o capitalismo realmente existente no Brasil, e de como ele se insere no contexto das transformações da economia mundial capitalista, faz-se necessária.

Sobre esse capitalismo que se irradiou a partir do Sudeste de maneira seletiva, logrando níveis de acumulação de capital vultosos no período de 1930 a 1980 e gerando uma estrutura social diferenciada e profundamente desigual. Os anos 1980, no rastro da crise da dívida externa, dilapidaram o potencial de atuação do Estado, que passou a funcionar como guichê de remuneração do capital, por meio da expansão da dívida interna. 

Tal processo continuou com o Plano Real, em virtude da elevação dos juros, além de ter dado um tranco na capacidade de expansão via mercado interno. Desorganizou-se a pregressa estrutura de relações entre Estado, as frações do capital privado nacional e estrangeiro e a sociedade organizada – esta desalojada em 1964 e, de volta, ao final dos anos 1970 – sem colocar nada no lugar.

O ciclo expansivo da Era Lula procurou recompor essas relações. A aliança multiclassista – abarcando da grande finança ao MST – sustentou-se por meio da combinação de valorização cambial com boom de commodities e medidas de ativação à demanda interna. O capitalismo, que correra sérios riscos de involução, voltou a se “desenvolver”, mas sem que fossem explicitadas as suas relações de poder, ou que se procedesse à sua reorganização de modo a ampliar o horizonte de possibilidades.

A crise financeira de 2008 provocou reações em cadeia dos centros dinâmicos da economia mundial capitalista – Estados Unidos, União Européia e China –, desestruturando os novos laços que se estavam forjando internamente. A crise alterou substancialmente a posição do Brasil no sistema internacional e os mecanismos de política econômica deixaram de ser eficazes.

Os governos Lula e Dilma que não possuíam um projeto de nação consistente de longo prazo, nem antes e nem depois de 2008, viram o coreto paulatinamente se desarrumar. Foram surpreendidos pela crise política que aguçou as contradições do capitalismo realmente existente no Brasil.

Um capitalismo que remunera de maneira excessiva a grande finança, constrangendo a expansão da infraestrutura e da indústria. Que se ressente de uma integração passiva no sistema internacional. E que possui dificuldades para expandir os gastos sociais no atual momento de curto-circuito das relações entre Estado e capital privado, comprometendo a grande obra da década passada: a elevação do poder de compra do trabalhador na base da pirâmide e a criação de uma rede de proteção social ainda insuficiente para a redução efetiva dos elevados níveis de desigualdade.

Hoje a sociedade organizada e os novos movimentos sociais reclamam uma participação no acerto de contas entre o Estado e as várias frações do capital, feito a portas fechadas, num contexto de fragilidade propositiva do governo e excessiva disposição para fazer concessões.

O “ajuste fiscal” é apenas a espuma por trás da qual as decisões sobre as engrenagens de funcionamento do capitalismo são tomadas. A desfaçatez com que o ex-economista do Banco Central “fala sobre capitalismo” revela que ele está ciente do que está em jogo. Uma fraude nada inocente.

Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e de Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).

11 de Dezembro de 2015 (Com Le Monde Diplomatique)

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