Bíblia: o livro do qual nada se sabe
A Bíblia de Gutenberg, primeira edição
O seguinte artigo é parte duma conferência de Mauro Biglino que, como sabemos, é um académico especializado na tradução do antigo hebraico. Sabemos também como o termo Elohim (que na Bíblia é utilizado para indicar "Deus") seja na verdade um pronome substantivo singular ou plural, dependendo o sentido do verbo e/ou do adjectivo que seguem.
Mas vamos além disso.
É possível escrever um livro de receitas para fazer o pão, livro no qual não existem os termos "Farinha", "Água" e "Amassar"? Complicado, não é? A resposta é "Não", não podemos escrever um livro de receitas de pão sem utilizar aqueles termos. Mas isso é exactamente o que acontece no Antigo Testamento (de seguida: A.T.).
O idioma no qual foi escrito o A.T. não tem o termo "Deus". Não tem o termo "Eternidade". Não tem o verbo "Criar". Este é o dado do qual partimos. E visto que não é possível escrever um livro nestas condições, a lógica consequência é que a Bíblia não fala de Deus. Pronto, seria possível acabar aqui porque no antigo hebraico não existem os termos Deus, Eternidade ou Criação: portanto é impossível que a Bíblia fale de Deus.
Mas vamos fazer um esforço: se os termos citados não existem, como é que a Bíblia sempre foi considerada qual livro sagrado, inspirado directamente por Deus? A resposta é: fantasia teológica. Com a Bíblia podemos só "fazer de conta que...".
"Deus"
Na Bíblia original o termo "Deus" não existe. Não é uma afirmação feita por um possuído, é a afirmação da exegese hebraica (exegese, em âmbito filológico, é uma explicação ou interpretação crítica de um texto, particularmente de um texto religioso): no antigo hebraico não existe um único termo que signifique ou exprima o conceito de "Deus". Se num idioma não existe o termo "Deus" é porque não existe o conceito de Deus: cada palavra é a elaboração dum conceito pré-existente. Nada de palavra "Deus"? = Nada de conceito de Deus. E vice-versa. Muito simples. Esta não é uma questão de interpretação, este é um facto, perguntem a qualquer linguista.
"Eternidade"
Peguem num qualquer dicionário de hebraico e aramaico bíblicos, como por exemplo aquele da Sociedade Bíblica Britânica (página 304) e procurem o termo olam, que na Bíblia é sempre traduzido como "Eternidade": no referido dicionário, a primeira coisa escrita é "Não traduzir como eternidade". Olam é um tempo "muito comprido" mas não eterno. Por qual razão a Bíblia traduz sempre olam com "eternidade"?
"Criação"
É possível encontrar em rede estudos conceituados no qual é afirmado que na Bíblia não existe nenhum Deus criador. A razão? Bara, termo do antigo hebraico que a Bíblia traduz como "criação", indica mais simplesmente "intervir numa situação já existente para modifica-la".
Procurem o rabino Edward Greenstein, Professor Bíblico na Universidade de Tel Aviv, na Universidade Bar-Ilan e na Jewish Publications Society de New York (onde são admitidos só rabinos, sendo a instituição o topo mundial das publicações de estudos teológicos hebraicos): Greenstein escreve que "a história do primeiro capítulo da Génesis é na realidade uma sucessão de divisões".
A Génesis não fala de "criação" mas de "divisões" operadas pelos tais Elohim com o fim de tornar uma situação preexistente algo mais idóneo do ponto de vista das suas necessidades. Nenhum filólogo traduz bara com "criar": essa é uma tradução sucessiva, introduzida por necessidades teológicas.
Resumindo: na Bíblia não há o conceito de Deus, falta o conceito de Eternidade e nunca se fala duma Criação. O A.T. não fala da origem do Universo, não fala dum Deus criador, nem fala dum Deus.
Este é um facto.
Quem escreveu a Bíblia?
O Profeta Isaías
A Bíblia é um livro (melhor: um conjunto de livros) do qual sabemos praticamente nada. Os autores?
Foram dezenas de indivíduos dos quais, outra vez, nada sabemos. Alguém, numa determinada altura, decidiu reunir uma série de escritos e tradições orais para criar o cânone bíblico, o conjunto de 46 livros considerados pela Igreja Católica como verdadeiros.
Os Protestantes têm 39 livros "verdadeiros". Os hebraicos têm também 39 livros. Os cristãos coptas têm 39 livros (que são os mesmos dos hebraicos) mais outros que não são considerados "verdadeiros" nem pelos hebraicos nem pelos outros cristãos. Os Samaritanos têm 6 livros "verdadeiros", os outros são considerados como falsos.
Na prática, os livros "verdadeiros" dependem do lugar onde nascemos.
Mas voltemos aos autores. Os primeiros 5 livros que formam o Pentateuco, tradicionalmente atribuídos à Moisés, foram escritos depois do exílio babilonês, portanto no V século a.C.. Isso significa, no mínimo, 7 séculos depois de Moisés. 700 anos. Imaginem escrever hoje um livro acerca de vida e obras dum indivíduo que viveu na altura em que a América nem tinha sido descoberta pelos Europeus.
E mais: no tempo de Moisés o idioma hebraico não existia. A primeira prova da língua hebraica antiga é do X século a.C. e é composta por um alfabeto proto-hebraico encontrado no sitio de Tel Satia. Ou seja: pelo menos 300 anos depois de Moisés.
Mesmo assim, vamos tentar perceber algo acerca dos autores da Bíblia.
Pegamos no Livro de Isaías, o maior dos Profetas do A.T..
O livro de Isaias é composto por 66 capítulos dos quais os primeiros 39 são atribuídos a Isaías "porque não temos razões sérias para nega-lo" (ver estudos do Prof. Penna, consultor do Pontifício Conselho Bíblico do Vaticano). Ou seja: não sabemos se foram verdadeiramente escritos por Isaías, simplesmente não temos motivos suficientes para provar o contrário. O que é diferente. Mas estes são os primeiros 39 capítulos: e os outros?
Os capítulos desde o 40 até o 55 foram escritos por um indivíduo chamado Deutero-Isaías. Deutero em grego significa "segundo", portanto o Segundo Isaías. Pormenor: o Segundo Isaías escreveu 200 anos após o primeiro. Os capítulos desde o 56 até o 66 foram escritos pelo Terceiro Isaías, que viveu algumas décadas após do Deutero-Isaías. Portanto, na melhor das hipóteses, o Livro de Isaías foi escrito num período de 250 anos.
Três pessoas escreveram o Livro de Isaías? Não. Os estudos do citado Prof. Penna, que reconhecem os primeiros 39 capítulos como de autoria do primeiro Isaías, admitem todavia que os entre o 10 e o 23 não foram escritos por ele.
É com se eu hoje decidisse acabar um livro iniciado em 1765, afirmando ser obra dum tal Max 1º mais a participação de outro ou outros autores desconhecidos; continuado em 1965 por um alegado Max 2º; acabado hoje, em 2015, por mim, que declaro a obra "autêntica" e "inspirada por Deus" (mas não posso utilizar o termo "Deus" porque não tenho este conceito). Alguém poderia duvidar das minhas afirmações?
Qual Bíblia?
A Torah
Acabou? Nem por isso.
Porque o Livro de Isaías que temos hoje nas nossas Bíblias é a versão dos Massoretas (escribas hebraicos que se dedicaram a cuidar das Escrituras que actualmente constituem o Antigo Testamento, entre o VII e o XI século d.C.) e é diferente da versão presente nos Manuscritos do Mar Morto (II século a.C.): há pelos menos 300 variantes, das quais algumas são inteiras palavras presentes numa versão e não na outra.
Portanto, mesmo admitindo que um único Isaías tenha escrito o Livro dele (o que sabemos de certeza não ser verdadeiro), temos que perguntar: qual versão escreveu?
A única certeza que temos é que a Bíblia que nós temos não é a Bíblia original. E esta não é uma afirmação de ateus ou antisemitas, mas de docentes hebraicos que estudam o A.T., como o Prof. Alexander Rofé ( 40 anos passados na Universidade Hebraica de Jerusalém). Não é a mesma porque cada vez que a Bíblia era transcrita era também modificada. O que, já por si, é um processo bastante natural, que aconteceu também no caso de obras não religiosas (como os clássicos gregos).
A Bíblia era modificada também em função das ideias de quem a lia. Na Bíblia dos Saduceus, por exemplo, existia o versículo "O justo permanece firme na sua firmeza", enquanto na Bíblia dos Fariseus o versículo era "O justo permanece firme na sua morte": isso porque os Fariseus achavam existir vida além da morte, pelo que entendiam transmitir a ideia de que o justo permanece tal também no além; os Saduceus, pelo contrário, não achavam possível uma vida após a presente (como afirmado no A.T., inclusive) e tinham um versículo baseado exclusivamente no presente.
No livro de Jeremias é presente uma conhecida profecia acerca da captura de Jerusalém por parte de Nabucodonosor II (634 a.C. – 562 a.C., mais ou menos): mas os académicos hebraicos reconhecem que esta profecia foi inserida só depois do evento, para que as pessoas acreditassem nas capacidades proféticas do Livro. Todas as profecias bíblicas, todas sem excepção, foram inseridas depois do evento que "preveem".
O livro de Daniel, livro profético por excelência, no Cânone hebraico nem é considerado. O livro de Daniel serviu e ainda serve como base para teorias alucinadas ao longo dos séculos (por exemplo, foi utilizado para confirmar a "profecia dos Maias" em 2012): a "profecia dos 490 anos", como explica o Rabino Maior do Sinai Temple de Los Angeles, é fruto duma mistificação. A profecia original era de "70 anos", depois dos quais algo deveria ter acontecido. Dado que nada aconteceu, os 70 anos foram transformados em 70 semanas de anos.
O problema é que a Bíblia original já não existe. E nós hoje sabemos que era diversa: por causa dos processos de transcrição apenas citados, e por causa de omissões voluntárias. O A.T. original incluía 11 livros que, simplesmente, foram feitos desaparecer e acerca dos quais nada sabemos. Só sabemos que existiam porque são citados na mesma Bíblia que temos ainda hoje.
A Bíblia é apenas um dos muitos livros escritos pela Humanidade. O problema nasce na altura em que alguém decide utiliza-lo como base para o poder. Então torna este livro "palavra de Deus" e, como tal, impossível de ser discutida, conjunto de "verdades absolutas". As contradições, os anacronismos, as mistificações, são presentes em todos os livros, neste aspecto a Bíblia não é pior de que outras obras. O problema, como afirmado, é que a Bíblia foi transformada em algo mais, então, como tal, merece mais atenção e procura.
A Bíblia sem vogais
A Bíblia não é um livro "mau". É um "tijolo", sem dúvida, mas consegue ser fascinante se encarado
por aquilo que é: não um livro religioso.
Mas a Bíblia foi elevada até o grau de "Livro dos livros", o que implica uma enorme responsabilidade. Podemos considerar como "Livro dos livros" uma obra da qual nem sabemos como deve ser lida?
A Bíblia, como todos os textos semíticos, é escrita apenas com as consoantes. As vogais não existem, existem só os sons vocálicos que são introduzidos na altura da leitura. Quais eram os sons vocálicos que eram utilizados em origem na leitura do A.T.? Ninguém sabe disso e ninguém poderá alguma vez sabe-lo, porque este é um conhecimento que existia apenas na forma oral e que foi perdido com o tempo.
As nossas Bíblias derivam dos sons vocálicos que foram introduzidos pelos citados escribas Massoretas (em particular no trabalho desenvolvido entre o VI e o IX séculos d.C.): os Massoretas introduziram pontos e linhas no texto bíblico para estabelecer quais sons vocálicos deveriam ser utilizados.
Pegamos na palavra hebraica "Terra" (אֶרֶץ) que é lida tebel: existem dois pontinhos debaixo das duas primeiras consoantes (o hebraico é lido de direita para esquerda) que indicam quais vogais inserir, neste caso a vogal "e". É suficiente acrescentar um outro pontinho a estas duas consoantes para que o sentido da palavra seja totalmente transformado: neste caso o termo já não significa "Terra" mas "mulher que tem um relacionamento sexual com um animal" ou "nora que tem um relacionamento sexual com o sogro". Admitimos: é um pouco diferente da ideia de Terra.
É como se num livro encontrássemos as letras "pt". Nós temos que introduzir as vogais e "pt" pode tornar-se "pata", "pota", "puto" ou aquele termo no qual todos os Leitores malandros estão a pensar. Apenas no século IX d.C. (portanto há 1200 anos) foi estabelecido quais vogais utilizar e, portanto, qual o sentido das palavras.
Mas no IX d.C. os livros do A.T. já tinham pelo menos 1400 anos de vida (os fragmentos mais antigos são os de Ketef Hinnom, do VII século a.C.). Pelo que, os Massoretas pegaram num livro antigo de séculos, do qual não conheciam a forma original em como devia ser lido, e escolheram introduzir as vogais que ainda hoje utilizamos, dando assim um significado definitivo às palavras do A.T.. "Definitivo" mas incerto: era mesmo assim que a Bíblia era lida em origem? Outra vez: ninguém pode afirma-lo.
Não é um problema de tradução, mas de interpretação: os Massoretas, ao introduzir os sons vocálicos, deram um determinado sentido a todas as palavras da Bíblia, sem ter a certeza de que aquela interpretação fosse a correcta. Na prática, o que os Massoretas fizeram foi dizer "A partir de agora a Bíblia vai ser lida assim". Ámen.
Stop, paremos outra vez. Porque, considerando tudo quanto escrito até agora, isso significa que nós não sabemos:
quem escreveu a Bíblia;
quando foi escrita;
como era escrita;
como era lida.
Em compensação, temos a certeza de que a Bíblia actual é sem dúvida diversa do original.
Nada mal como livro sagrado.
E o panorama piora. Porque ao ler a Bíblia tal como ela é, sem uma interpretação teológica, o resultado é deprimente. A ninguém passaria pela cabeça de fundar uma religião baseando-se exclusivamente na Bíblia tal como ela é: é preciso que alguém explique que "não, não é assim, quando foi escrito isso na verdade era intenção dizer outra coisa". Mas a verdade, como vimos, é que não sabemos quase nada daquele livro.
Então, pelo menos, tentamos ver o que realmente está lá escrito.
Ipse dixit.
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