'Desde criança eu sonhava em ser cantora, em ser gente. Como pode uma pessoa sonhar em ser gente?', questiona Elza Soares
Reprodução/Facebook/Roberto Assem
Maitê Freitas | Santos (SP) | Rede Brasil Atual - 23/02/2016 - 14h33
'Eu canto para me vingar de tudo que eu passei e vi fazerem com a minha mãe, comigo. Eu vingo as mulheres negras que são discriminadas. Elas me veem e sabem que podem chegar em algum lugar diferente', diz a cantora
No ano passado, o Brasil e as redes sociais se viram pautados por movimentos afrofeministas: de vlogueiras às blogueiras, de debates à Marcha das Mulheres Negras, eventos fizeram a sociedade repensar a invisibilidade da mulher negra, o machismo e o racismo. Nas espirais desses movimentos, Elza Soares fez surgir do centro de sua voz vulcânica A Mulher do Fim do Mundo.
O disco, lançado há poucos meses, nasceu histórico. Neste mês de fevereiro, Elza foi homenageada no carnaval de rua de São Paulo pelas 350 percussionistas do bloco Ilu Obá de Min. Quando o assunto é poder, superação e luta, Elza é fonte fértil de inspiração às mulheres e feministas negras. Aos 85 anos, a dama do samba não teme e se reinventa. Vai do jazz ao blues, do samba ao tango e une todos esses estilos no “samba-punk”.
Quando criança, sonhava ser gente, e hoje é estrela no mundo. Aos 13 anos, enfrentou olhares racistas e machistas no programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi. Diante daquela menina mirrada, o autor de Aquarela do Brasil perguntou de que planeta ela vinha. E Elza respondeu: “Do planeta Fome, seu Ary”.
Ela cantou, e no mesmo instante Ary Barroso proclamou: “Senhoras e senhores, nasce uma estrela!”. A estrela, filha do operário Gomes Soares e da lavadeira Rosária Maria Gomes, já era nascida. Subia o morro com lata d’água e trouxa de roupas na cabeça. Do som da água batendo na lata, da brincadeira de criar sons e timbres, descobriu seu som gutural. Ao cantar, evoca as vozes emudecidas da profundeza do planeta Fome.
Elza cantou blues e jazz num tempo em que ninguém falava disso. Seu canto se fez sobrevivência e sustento. Viu sua mãe morrer num acidente de carro. Viu Mané Garrincha, com quem foi casada por 17 anos, lutar contra o alcoolismo. Foi xingada, perseguida pela ditadura, pela sociedade e por meios de comunicação. Virou referência para gerações. “A gente sabe o quanto é difícil para um negro conseguir caminhar. Eu venci e estou aqui representando a mulher negra. Eu sou negra!”
O disco A Mulher do Fim do Mundo reúne as bandeiras que você levantou ao longo da carreira e, musicalmente, integra os caminhos sonoros do Cóccix ao Pescoço e de todos os seus outros discos.
Você já foi tantas, quem é esta Elza?
É uma Elza Soares que caminhou do cóccix ao pescoço para chegar ao fim do mundo. É uma Elza que traz essa mistura forte, que integrou essas forças e formou um corpo só. Um corpo só que não pode ser dividido. Para carregar as bandeiras que eu carrego é preciso força e ser uma só.
Eu carrego a bandeira da mulher negra, da mulher que luta e sobrevive ao machismo, ao racismo e a essa guerra diária. OCóccix foi um trabalho forte, e agora no Fim do Mundoreunimos essas forças. As pessoas estão gostando. Estou muito feliz.
Essa mulher do fim do mundo representa uma mulher de um novo mundo, uma nova mulher?
Sim. Hoje temos poder, voz. Ainda existem mulheres caladas, submissas, reprimidas e é para essas mulheres que eu falo. Não podemos nos calar. Precisamos gritar quando algo ruim acontece contra nós, mulheres. Não podemos ter medo. Quando nos encorajamos, fortalecemos as que estão enfraquecidas.
Através do canto, você encontrou um jeito de se impor diante das coisas a que tentaram submetê-la. Que poder é esse que a voz tem?
Esse poder eu não sei explicar, mas existe. A minha voz é uma voz que não é submissa, existe para gritar e para fazer força.
Em tempos de tanta intolerância religiosa, qual o papel da espiritualidade na sua vida? Você tem uma reza?
Eu sempre rezo, eu tenho fé. Rezo um Pai Nosso, uma Ave Maria, peço licença e proteção aos meus orixás, aos seres de luz. Rezo todo dia, sou uma mulher de fé. Estão faltando amor e fé no mundo.
O planeta Fome mudou?
O planeta Fome teve uma virada. Ele ainda existe. Hoje em dia, você vê que as pessoas têm um pouco de qualidade de vida. Você passa na favela e vê que as coisas mudaram um pouco. Mas ainda há muito para mudar.
Quando você canta A Carne, Haiti ou Maria da Vila Matilde acontece uma catarse, o público se comove, se arrepia. Como você sente essas músicas?
Eu abro o coração e encontrei uma voz de oração para cantar essas canções, são músicas que exigem muito de mim, exigem entrega. Eu me entrego cantando A Carne, o Haiti. Quando eu canto Maria da Vila Matilde é um momento de explosão, deixo que as pessoas cantem, gritem e liberem a raiva, a indignação.
Eu acho lindo, é como se abrisse uma porta e as mulheres entrassem falando “você vai se arrepender de levantar a mão para mim”, os homens ficam incomodados, é um momento forte onde muitas vozes se encontram e fica uma voz só: a voz das mulheres. As mulheres se libertam, cantam, e eu canto com elas.
Neste ano você foi homenageada pelo bloco afrofeminino Ilu Obá de Min, 350 mulheres tocando percussão, cantando e a saudando.
É uma loucura... Eu me sinto pequenininha diante dessas coisas gigantes que acontecem e aparecem na minha vida. Eu me encolho, fico pequena para receber. Somos nada diante dessa coisa tão grande que é esse reconhecimento.
Ano passado, teve a Marcha das Mulheres Negras em Brasília. Em 2000, a rede britânica BBC atribuiu-lhe o título de “Cantora do Milênio”. Você é porta-voz do movimento feminino negro?
Eu sou. A mulher negra continua sendo mulher negra, não somos apenas mulheres, somos negras. Sofremos com o machismo e com o racismo, não temos liberdade de apenas ser mulher. Quando eu vejo as mulheres negras reunidas num movimento como a Marcha, vejo que não tem nada que nos limite, que a liberdade existe, que podemos abrir a boca aos quatro ventos.
Os artistas negros fizeram história na música e na cultura, mas poucos receberam homenagens quando estavam vivos. Ser homenageada e viver tudo isso é um sinal de que estão aprendendo a respeitar?
Pois é... Isso é sinal de que estão me enxergando. Isso é muito bom. Mas não adianta me enxergar e não me dar espaço para falar. Tem que me enxergar e me deixar falar. Esta Elza fala.
As mulheres negras hoje estão se reunindo em grupos, em produções e em movimentos para restaurar a autoestima. Como foi o seu processo?
Tudo o que eu fiz foi para sobreviver, não passei por cima de ninguém. Recebo todo esse reconhecimento me encolhendo, mas na hora de lutar eu luto, eu cresço. Sempre foi assim, lutei sozinha. Me empoderei sozinha. Na época das manifestações em 2013, eu fui a primeira a cantar “20 centavos eu não pago não”. Eu sempre me coloco e estou à disposição para qualquer movimento que queira vir lutar comigo.
Em seus discos, o samba está sempre presente, e você ainda diz ter vontade de gravar um CD apenas de samba. Por que ainda não gravou?
Ainda não chegou o momento. O mercado está sempre aberto, mas o que define isso é ter um bom samba, com boas letras, bons arranjos. Não dá para ser qualquer coisa, sem qualidade, como vemos por ai.
Flickr/CC/Back2Black Festival
Elza e Martn'ália no Festival Back2Black em 2010
Você costuma dizer que A Mulher do Fim do Mundo é um disco de samba-punk. Como pode o samba dialogar com tantos estilos?
O samba é muito poderoso, ele faz comigo o que ele quer e eu levo ele aonde eu quiser. Eu levo e ele vem. Tem que ter coragem para fazer isso com o samba: misturar, buscar o novo. Eu tenho, misturo e fica lindo, reúno pessoas diferentes, gerações diferentes. Precisa ser e ter algum louco para fazer o que eu faço.
Acha que tentam marginalizar o funk tal como fizeram e ainda fazem com o samba, por ser música de origem negra e periférica?
Eu não sou contra, é um movimento. É um movimento que pode passar. Eu gosto, acho bonito, é lindo ver os meninos dançando o passinho. Tentam marginalizar. Dizem que não presta. A gente precisa ter cuidado com essa nova geração que está chegando. Não há nada que faça com que ela se identifique e se veja como negra.
Na televisão você não vê apresentadores negros, essa criança negra que nasce e cresce hoje não se vê. Como ela vai se sentir? Branca. Não há nada que a identifique e que faça ela se sentir bem, bonita e valorizada por ser negra. Não temos negros na primeira escala social, isso precisa mudar. Eu assisto televisão, e se tem algo que me incomoda é que só tem programa de esportes, e você não vê uma apresentadora negra. Por quê?
Você liga a televisão e não vê um canal de música, um canal de arte. Não existe um programa que entreviste as cantoras e os cantores e que fale o que está acontecendo. Falta na TV aberta espaço para arte, são sempre as mesmas cantoras e os mesmos cantores que estão lá. Quero ver o dia em que eu vou assistir a uma mulher negra bonita falando de esportes, de arte e de cultura.
Em novembro do ano passado, o assassinato de cinco jovens pela polícia carioca acabou ganhando repercussão, o que geralmente não ocorre. Como você vê esse genocídio da juventude negra?
Eu me arrepio sempre que penso nisso. Sou mãe, sou mulher, vim do morro. Quando vi aquele pai chorando e tendo que explicar aquela coisa horrível que fizeram com o filho dele, tive vontade de abraçar ele. Um pai chorando e tentando entender o porque do filho dele ter sido covardemente assassinado...
A vida é uma coisa muito gozada, um misto de amor e ódio. Somos todos humanos e essas diferenças não deveriam existir. Existe muito ódio colocado sobre o negro. Esse ódio precisa acabar, para a igualdade poder existir. É com amor que vamos mudar as coisas.
Sua história é de muita superação e você sempre fala em amor...
Historicamente, a mulher negra é marginalizada na vida afetiva. Essa solidão é imposta? Amor e ser amada é direito ou privilégio?
O amor e o amar são um direito e são um privilégio. Todos merecem amar e ser amados. Tem muito amor por aí e também existe uma solidão. Nós, mulheres, precisamos aprender com essa solidão, ela não é má. A solidão nos faz pensar, nos ensina a ter amor-próprio, protege, faz crescer. Para quem sabe conviver com a solidão, ela traz poder, traz força.
Você sempre fala que a favela está dentro de você. Que favela é essa que a habita?
Nasci num bairro pobre, cresci no morro. Meu pai era pedreiro, construía casas e morávamos no morro. Tudo foi muito difícil, mas eu nunca tive medo. Essa favela que me habita me dá coragem e força, me dá chão. Nada me dá medo. Tudo que existe é para ser encarado. Quem tem medo retrocede, você precisa ter respeito por tudo. Não medo.
Você é o que você quis ser ou tem uma Elza Soares que você gostaria de ter sido e não foi?
Eu sou o que eu gostaria de ser. Desde criança eu sonhava em ser cantora, em ser gente. Me diz, como pode uma pessoa sonhar em ser gente? Eu sonhava em ser gente! Minha mãe lavava roupa para fora e nas casas onde trabalhava todo mundo era gente, “senhor, senhora”.
Existia um tratamento diferente, eu ficava só olhando, a minha mãe de cócoras, pegando as roupas sujas para lavar e dizendo “sim senhora, madame”, era dolorido. Eu canto para me vingar de tudo que eu passei e vi fazerem com a minha mãe, comigo. Eu vingo as mulheres negras que são discriminadas. Elas me veem e sabem que podem chegar em algum lugar diferente desse em que tentam colocá-la. Sou correta, ando direito porque sei que elas me fazem de exemplo. Mas não sou boba, não sou boazinha.
Existe algo que esta mulher do fim do mundo ainda não expurgou? Que ainda precise dizer?
A mulher do fim do mundo tem que lutar. Lutar. Gritar. Se ela não gritar, ela não vai se libertar desse espaço pequeno. O jogo não está ganho. A luta não está ganha. Ainda há muita coisa para ser feita, muito chão para correr. É como a Folia de Reis: você precisa sair batendo de porta em porta, eu me sinto como um palhaço da Folia, vou pedindo licença e quebrando essas maldições impostas às mulheres, à mulher negra.
Flickr/CC/ Universo Produção
Exibicao do documentario " My Name is Now, Elza Soares" diretora Elisabete Martins Campos na praça Tiradentes em Ouro Preto
O que precisa morrer?
O desrespeito. Essa falta de união, essa falta de fé. Acabou o respeito. Acabou a fé. Quando não se tem respeito, não se tem fé...O que mais pode ter? Nada. Se eu pudesse, eu tiraria um dia no mês para me reunir com outras mulheres negras e rezar pelo planeta.
Você viveu mais de 15 anos ao lado de um dos ícones do futebol, o Garrincha...
Esse mundo que vendem do futebol é de ilusão. Tem meninos por aí com muito talento que ganham um salário mínimo e outros que ganham milhões... Não pode ser assim. Divulgam como se fosse o melhor mundo, e isso tudo é uma mentira. Garrincha foi uma das maiores estrelas do futebol, nenhum jogador chegou aos pés dele. Adoeceu, foi marginalizado, esse mundo do futebol é cruel com esses meninos.
Há alguma mulher que a inspire, empodere?
Elza Soares. Minha caminhada foi muito sozinha... Vindo para cá (a entrevista foi realizada em Santos, em 28 de janeiro), eu pensei: “Meu Deus, como esses pés já andaram...”.
Existe algum lugar que você gostaria de conhecer, de cantar?
Não... Eu vou aonde me chamam, se me chamar eu vou. Eu não tenho essa ambição... Se quiserem a minha arte, eu vou. Eu nunca fui à África. Dentro de mim mora uma África negra linda, maravilhosa, alegre... Uma África-Brasil. Embora não queiram que o Brasil seja uma África, nós somos parte dela. O Brasil é africano.
O Paulinho da Viola compôs Meu Mundo é Hoje, é uma canção que te traduz...
Eu amo o Paulinho, e não sei o motivo de ele ter escrito esse samba, mas eu me vejo nele, foi feita para eu cantar: “Meu mundo é hoje, não existe amanhã para mim”. Eu sou o agora, neste exato momento eu sei que eu sou. Não tenho nenhuma ilusão do futuro, estou trabalhando hoje. Se o futuro chegar, vai chegar porque eu trabalhei.
(Com Opera Mundi/Revista Samuel)
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