“Barba, Cabelo e Bigode”: um filme muito além do futebol
Cartaz do filme, criado por Louise Xavier Dantas
Gabriel Brito (*)
Depois do inclassificável 7 a 1 na semifinal da Copa do Mundo, muitos debates e reflexões sobre os rumos históricos que o futebol pentacampeão do mundo tomou ganharam espaço, ao lado de produções culturais e intelectuais que tentam de algum modo dar conta do tema. Uma delas é o filme Barba, Cabelo e Bigode, que retrata três grandes jogadores e rebeldes da chamada era de ouro do futebol brasileiro, em meio a uma ditadura que imporia mais tendências ao jogo do que parece. É sobre tudo isso que conversamos com Lucio Branco, autor do longa-metragem.
“Pretendi ir bem além do simples estereótipo da versão boleira do guerrilheiro barbudo que lutou pelo passe livre (Afonsinho); do jovem negro cheio de cacoetes de um black soul brother de seriado made in USA (Paulo Cezar Caju); e da caricatura do bicho grilo doidão, no estilo flower power (Nei Conceição). Eles são muito mais do que a redução a essas tendências de comportamento político e contracultural, apesar das evidentes afinidades com o seu tempo, com a sua geração. Mas o elemento capilar tinha apelo demais para essa minha relativa restrição”, explicou.
Além de detalhar o trabalho de concepção e execução do filme, Lucio fala da dificuldade em vermos surgir no futebol dos tempos neoliberais figuras como essas e outras que marcaram a história por sua independência de pensamento e atitudes antissistêmicas. No campo cultural, critica a permanência de um bloqueio ainda vigente ao reconhecimento do futebol e seus ídolos como grandes expressões artísticas e sociais do país, mesmo em tempos de elitização da modalidade.
“O que acho curioso na carreira do Barba, Cabelo & Bigode é o quanto acabou servindo como testemunho do preconceito arraigado contra esse filão de cinema no país que ainda se (auto)define como sendo 'do futebol'. Apesar de ser um trabalho abraçado por muita gente que o assistiu mais de uma vez e o recomenda a terceiros, a recepção ao filme é um pouco comprometida por um comportamento cultural instituído, típico de uma classe média sempre zelosa com a sua condição de 'formadora de opinião’”, observou.
A entrevista completa com Lucio Branco, que termina com uma notícia em primeira mão, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como se deu o processo de produção do filme Barba, Cabelo e Bigode? Por que esse nome?
Lucio Branco: A ideia do filme é antiga. Quando muito novo, gostava de ver o Afonsinho e o Paulo Cézar Caju em reportagens na televisão metendo o dedo na ferida do futebol brasileiro e nos rumos que ele assumira desde o tempo em que começaram a atuar profissionalmente. Cresci acompanhando parte da trajetória deles, já fora dos gramados, sabendo que eram figuras sui generis dentro do universo esportivo. Pouco tempo depois, ouvi falar do Nei Conceição – sobre quem desconfiei, de cara, ser muito mais que um craque que preferia treinar com os Novos Baianos do que em General Severiano, como o folclore consagrou – e do quanto ele tinha afinidades com os outros dois em termos de dissidência sobre o que o futebol passou a representar desde o período militar.
Posso dizer que o meu botafoguismo, em medida considerável, foi influenciado pela presença deles no rol dos grandes nomes do Glorioso – mesmo só lembrando de ter testemunhado o Caju jogar pelo Grêmio na final do Mundial Interclubes, em 1983, contra o Hamburgo. Não demorei a intuir que a história do trio dava filme.
Em meados dos anos 1990, o João Moreira Salles fez o Futebol, com participação do Caju, e, pela mesma época, através do meu então professor de Sociologia do Futebol, Mauricio Murad, soube da existência do Passe Livre, obra-prima do Oswaldo Caldeira, realizada em 1974. Não fui pioneiro na abordagem da vida e da carreira desses craques da bola e da consciência nas telas. Mas me sinto muito privilegiado por ter podido usar imagens dos dois filmes no meu.
Quando ouvi no rádio, em dezembro de 2011, uma edição do programa roNca roNca, apresentado pelo Mauricio Valladares, com o Paulinho Boca de Cantor, em que ele falava sobre a participação do Nei Conceição nas peladas dos Novos Baianos, meio que caiu uma luz de que estava se aproximando o momento de realizar o longa. Meu primeiro contato por e-mail com o Afonsinho para informá-lo sobre o que pretendia com ele e os seus dois parceiros foi exatamente dois anos depois. Estávamos prestes a entrar no ano da Copa do Mundo no Brasil. Ele topou na hora, afirmando que seria uma grande oportunidade de rir lembrando das histórias do Nei. Acho que não poderia haver melhor forma de adesão ao projeto.
Explicar o título é simples: “Barba” é o Afonsinho, que se recusou a cortar a sua como gesto de protesto contra a imposição de um Botafogo comandado por uma diretoria e uma comissão técnica submissas ao projeto de disciplinarização que a ditadura militar reservava para o futebol, o que implicava controle sobre a aparência física do jogador; “Cabelo” é o Paulo Cézar Caju, que tem este apelido por ter pintado o seu de acaju – era o tempo do corte black power, ou, como se fala nos EUA, afro hair, associado à afirmação da negritude, à cultura da indumentária black, ao black soul criado pelo James Brown; e o “Bigode” é o Nei Conceição, que cultivou o seu à la Zapata, no auge da carreira e da sua insubordinação contra os códigos de quartel que passaram a regular a conduta dos atletas nos clubes.
Pretendi ir bem além do simples estereótipo da versão boleira do guerrilheiro barbudo que lutou pelo passe livre; do jovem negro cheio de cacoetes de um black soul brother de seriado made in USA; e da caricatura do bicho grilo doidão, no estilo flower power. Eles são muito mais do que a redução a essas tendências de comportamento político e contracultural, apesar das evidentes afinidades com o seu tempo, com a sua geração. Mas o elemento capilar tinha apelo demais para essa minha relativa restrição.
Por fim, a expressão “barba, cabelo e bigode” tem origem no futebol. Usava-se para dizer quando o clube “deitava e rolava” aos domingos, ao ganhar com os juvenis, de manhã; com os aspirantes, à tarde; e com o time de cima, à noite. Resumindo: o título do filme não poderia ser outro.
Correio da Cidadania: Como você posiciona os três personagens do filme na história do futebol brasileiro?
Lucio Branco: São figuras com uma experiência ímpar. Os três se dispuseram a enfrentar uma máquina trituradora de personalidade e talento que ainda está em pleno funcionamento, como parte do legado do período autoritário que, hoje, tem solo firme no modo como se estruturou o futebol no mundo dito globalizado. Eles pagaram um preço elevadíssimo: tiveram suas carreiras profissionais sabotadas, foram perseguidos e sofreram sacrifícios também na vida pessoal por conta disso.
Tenho convicção de que qualquer abordagem sobre os três tem de partir do fato de que foram jogadores extraclasse, associados à melhor tradição do futebol arte, essa escola fundada na América do Sul e que teve o Brasil como o seu representante de ponta. Eles são filhos de 1958, como o Afonsinho frisa tantas vezes no seu depoimento, no que concordam Caju e Nei, em sua defesa do estilo de jogo de Garrincha, Didi, Nilton Santos, Pelé, Ademir da Guia, Almir Pernambuquinho, Silva Batuta, Gerson, Rivelino, Marinho Chagas, Geraldo “Assoviador” e outros craques daquela geração e de outra, subsequente.
Associaram a essa qualidade técnica uma atitude existencial singular que contava então com um ambiente cultural mais favorável para acontecer, apesar da intervenção da ditadura nos esportes. Uma atitude existencial que nem implicaria anacronismo se fosse empregada pelo jogador atual: a atualidade é que está presa demais ao seu próprio tempo, com os seus atletas programados em campo e fora dele.
Lamentável que já esteja mais que institucionalizada a regra das respostas ensaiadas nas entrevistas. A imagem do jogador virou uma mina de ouro, e o assessor de imprensa, antes só utilizado pelo clube, se converteu num profissional de imenso valor na gestão da carreira dos atletas. Por sinal, já reparou que meritocracia é um dos termos mais repetidos nessas entrevistas?
Mauricio Valladares.
Na foto da foto, Caju e ninguém menos que Bob Marley, que fez questão de conhecê-lo em sua primeira visita ao Brasil.
Correio da Cidadania: Já que você fez a comparação, como enxerga os três ex-jogadores em relação ao futebol atual e o universo que cerca o jogador de futebol?
Lucio Branco: É necessário dizer que os três são a antítese do protótipo do jogador contemporâneo, em inúmeros aspectos. Por conta de sua vivência dentro do futebol, segundo o modo como entendiam a sua identidade cultural, priorizaram uma série de valores e desenvolveram personalidade própria, posicionamento político, consciência social, sensibilidade estética, respeito pela história etc. É uma questão de formação. Não negligenciaram esses valores, que já são evidentes nas peladas de rua, este estágio primário – e fundamental – na relação com a bola.
O futebol é um fator de sociabilização dos mais relevantes, de criação de laços profundos de convívio. É uma modalidade esportiva que tem uma dinâmica que possibilita a articulação do individual com o coletivo como poucas outras. No caso da contribuição brasileira, podemos dizer que houve praticamente uma remodelação, ou melhor, uma reinvenção da modalidade. Não é errado dizer que foi fundada uma tradição.
Assim, o ritmo das partidas passou a ser ditado pela criatividade do craque, coordenada sempre com a do outro craque da mesma equipe, ou com o senso coletivo de outros colegas de menor talento, mas que sempre punham o craque no centro de qualquer esquema tático. O talento individual e a ofensividade pautaram a maioria dos esquemas, criou-se uma nova concepção de jogo que influiu determinantemente em várias escolas de futebol pelo mundo.
Houve uma época em que os times tinham, em média, cinco ou seis jogadores de alto nível no plantel – incluindo os times “pequenos”. Afonsinho, Caju e Nei sabem do lugar que ocupam no interior dessa tradição – eles e outros craques. É uma noção que sempre renova a afinidade entre jogadores desse naipe para além do tempo em que atuaram numa determinada equipe, gerando um respeito mútuo que não fica restrito ao mérito estritamente profissional do convívio. É uma identificação associativa, afetiva e profundamente humana.
Ney Conceição. Foto: Tay Nascimento
Correio da Cidadania: Acha possível que surjam novas figuras como as retratadas no filme, ou como Sócrates, dentre outros jogadores ditos subversivos?
Lucio Branco: Numa entrevista que fizeram comigo um tempo atrás, respondi a uma pergunta muito parecida com esta, mais ou menos nos seguintes termos: “a não ser que haja uma revolução que ainda não mostrou a cara, definitivamente não há espaço para jogadores como Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição no futebol dito ‘moderno’. Portanto, azar o dele”.
Mantenho a opinião. Do ponto de vista da possibilidade de organização coletiva, nada mudou de lá para cá. Um personagem como o Sócrates ou o Wladimir não vêm do nada. A Democracia Corintiana foi realmente um processo social. A prova é que a arquibancada aderiu na hora. Aconteceu no período da Abertura, e também por isso foi possível. É uma questão de contexto histórico, o que em nada desmerece ou diminui o fenômeno.
Aconteceu naquele momento porque o próprio momento pedia, de certa forma. Mas já peço perdão por não me estender muito sobre essa belíssima experiência de autogestão que pude acompanhar – e pela qual torcer – quando criança. É que, por uma questão de justiça histórica – e não de divulgação do filme –, tenho defendido a ideia de que se fale menos da Democracia Corintiana quando se fala do trio que representou a “Democracia Botafoguense” (que acabou não acontecendo de modo mais organizado por ela ter enfrentado o momento mais repressivo da ditadura, a era Médici), e que, em contrapartida, se fale mais da “Democracia Botafoguense” quando se falar da Democracia Corintiana.
Há um pioneirismo evidente aí não devidamente reconhecido por questões de ordem midiática e torcedora – ou antitorcedora, porque a história do Botafogo é incômoda, não corresponde à versão que o senso comum tenta institucionalizar a seu respeito (há quem não se conforme com o fato de o Glorioso ainda liderar a lista dos clubes brasileiros que mais cederam jogadores para as Copas do Mundo – e os melhores, acrescento, se considerarmos que a sua contribuição mais generosa foi em 1958, 62 e 70). É preciso combinar antes com a História que ela se apague para colocar no lugar a versão que toma o Botafogo como um penetra na galeria das grandes agremiações do futebol mundial.
E, claro, digo isso sem desconsiderar que, apesar da sua identificação com o clube (e da torcida que mantêm por ele até hoje, não obstante tudo o que sofreram nas mãos de seus dirigentes e técnicos), Afonsinho, Caju e Nei jogaram também em outros.
De resto, me parece bem emblemático dos tempos atuais que, entre nós, o profissional do meio que demonstra melhor noção sobre as verdadeiras dimensões do futebol brasileiro seja um argentino que já pendurou as chuteiras: Sorín.
O barba
Correio da Cidadania: O movimento Bom Senso Futebol Clube não é uma contribuição pouco reconhecida neste sentido? Não teria sido enfraquecido por forças políticas não muito diferentes daquelas que pontificavam no período da ditadura?
Lucio Branco: A estrutural feudal do futebol brasileiro faz o mesmo que esse atual governo ilegítimo na sua cômoda sobrevida: ri da nossa desmobilização. Por uma questão de princípio, sou inteiramente favorável à mobilização, à criação de movimentos, organizações, associações que se formem pela base. Não ponho fé que articulações nas altas esferas deem solução de um problema tão historicamente arraigado. A casta contemplada com os melhores contratos no mercado da bola pensa exclusivamente em si. A rigor, o Bom Senso FC entrou nessa como uma grande iniciativa comercial. O discurso, claro, era outro.
Até creio na boa intenção – mais ou menos ingênua – de um ou outro membro, mas o que prevaleceu mesmo foi o interesse na exploração da marca comercial a que, inevitavelmente, todo jogador-celebridade contemporâneo acaba se reduzindo. A imagem das superestrelas é que, desde o início, estava em questão. Os seus gestores não estavam querendo mais perder para as grandes emissoras de TV o capital que as suas marcas de elite geram.
A participação dos jogadores de divisões inferiores era mais para constar mesmo, sair bem na foto. Nesse quesito – por princípio, dos mais relevantes e necessários –, o Bom Senso não foi muito diferente de uma grande empresa que entra competitivamente no mercado. Assim como 100% das outras, assumiu a iniciativa, antes de tudo, para garantir lucro imediato. Mas, claro, sem deixar de colocar no rótulo do seu produto a inscrição “responsabilidade social”. A pergunta pertinente aqui é: exatamente onde?
Não era assim no passado. Por exemplo, o Pelé, já se encaminhando para pendurar as chuteiras, depois de acompanhar atentamente os passos do Afonsinho na sua luta pelo passe livre, o procurou – ele próprio, o “Rei do Futebol”, e não um representante seu – para ouvir os conselhos do camisa 8 sobre como lidar com os cartolas do Santos, que estavam para lhe aplicar mais uma volta na renovação do seu contrato.
Estou falando simplesmente do maior de todos que, na ocasião, se posicionou sobre as relações de exploração no futebol profissional, chamando atenção, publicamente, para o problema em nome da categoria. Ele pode ter se equivocado a sério depois nessa questão, mas ali, em 1973, ele sabia bem de que lado estava.
Um superestrela atual seria incapaz de não deixar uma incumbência dessa na mão do seu empresário, após reuniões com profissionais de marketing e afins. As únicas modificações que interessam a um Daniel Alves, para citar um nome, são aquelas que dizem respeito diretamente ao seu bolso – nenhuma é estrutural. Portanto, só acredito em quem tem a perder e, de fato, se disponha a isso em nome de uma causa maior. Messianismo nenhum, nada de exaltação ao martírio. Falo de um princípio elementar da luta por direitos no âmbito do trabalho: disposição para pagar o preço que for em nome da classe – afinal, privilégio não é direito. E dessa luta, um Daniel Alves está fora.
Nunca pus fé no Bom Senso, embora ainda defenda o legítimo princípio da sua existência. Foi muito espetáculo para pouca ação concreta. Um simulacro que até convenceu (ou iludiu?) por certo tempo gente solidária e de valor, que não abdica da esperança. Não à toa que acabou como acabou. Foi uma iniciativa que perdeu para si mesma, por não conseguir expor convincentemente a que vinha. E que nem precisou das forças políticas herdeiras da ditadura que você mencionou na pergunta para servir como desculpa para a sua derrota: o confronto foi mínimo e nada heroico. Perdão pela parte que toca ao meu “clubismo”, mas esse negócio de briga com a estrutura é mesmo para gente da estatura de Afonsinho, Paulo Cézar Caju, Nei Conceição, Democracia Corintiana, Carlos Caszely no Chile etc.
Falo isso sem a menor presunção. Torço para que uma organização sólida e atuante desponte no meio das trevas e, pelo menos, inicie um processo mais transparente e democrático na defesa dos interesses dos profissionais da bola de todas as divisões e ligas.
O cabelo
Correio da Cidadania: Falando em ditadura, temos um legado do regime militar menos reconhecido no futebol, sua gestão, política e rumos da era Ricardo Teixeira em diante, do que seria correto analisar?
Lucio Branco: Com certeza. Ricardo Teixeira aprendeu muito com o falecido ex-sogro. Foi preparado por ele para dar sequência a um tipo de mandonismo que começou antes dos generais, mas que foi melhor elaborado e, ainda mais autorizado, sob o seu poder. Não surpreende que o Havelange assumiu a presidência da FIFA em 1974, após uma década de ditadura. O que ele fez politicamente no futebol, sempre cortejando os donos da situação, é uma prática que ele não aprendeu lá fora.
A projeção internacional dele se deve, em grande medida, ao know-how tipicamente nacional que se desenvolve no bom convívio com as oligarquias locais. A desenvoltura foi tanta que conseguiu se vender como um gestor qualificado para assumir o comando do órgão máximo do futebol mundial. Tempos atrás, tinha gente que mencionava isso sem esconder certo ufanismo. Hoje, nem é necessário lembrar do atual paradeiro dos “filhos” do Havelange que se criaram na CBF.
Esse cenário mafioso de desmando e corrupção em âmbito internacional traz também a marca da contribuição brasileira. Um caso de exportação de expertise, com o amparo do mais alto crime organizado lá de fora. Foi um casamento de interesses que já não está dando mais tão certo para a parte mais fraca envolvida, como é a praxe (são os latino-americanos os principais alvos de processos e prisões).
Por razões como essa é que Afonsinho, Caju e Nei são de uma coerência monolítica e mesmo – por que não dizer? – visionária. Eles perceberam, mal adentraram o gramado, que o jogo estava perdido. E que o futebol arte não era apenas uma ideia, uma utopia delirante, mas um fato concreto que começou a ruir, mesmo que gradativamente, com a ditadura no papel de juiz. E eles sabem que, em tempos neoliberais, esse projeto de destruição da identidade do modo brasileiro de jogar está para se completar, embora não desistam da luta.
Correio da Cidadania: Como você vê o futebol brasileiro neste momento histórico, tomando como referência a final da Copa Sul-Americana entre Flamengo e Independiente (com todos os acontecimentos que a cercaram) e do Mundial de Clubes, entre Grêmio e Real Madrid?
Lucio Branco: Estamos apenas colhendo frutos podres nos últimos anos. A crise foi um processo relativamente gradativo. O 7 x 1, na verdade, foi um sintoma apenas mais pronunciado de um problema que começou antes e parece longe de terminar. Quanto à participação brasileira na Copa da Rússia, acho tudo uma grande incógnita, apesar de todo o entusiasmo com a campanha vitoriosa nas Eliminatórias desde que o Tite assumiu a seleção. E convenhamos: achar, nesta altura, tudo uma grande incógnita, apesar da campanha inquestionável nas Eliminatórias, já diz o quanto estamos longe da confiança que o futebol brasileiro inspirava.
Lembro de perguntar ao meu pai, durante as Eliminatórias de 1982, se os placares favoráveis (muitas vezes, com direito a goleadas) do Brasil contra os adversários já estavam combinados previamente. A certeza do espetáculo a cada partida despertava a minha ingênua suspeita infantil. Era então outro o tipo de desconfiança que uma criança podia ter sobre a seleção num momento como aquele. Acho que, hoje, um garoto só acredita realmente na vitória certa da seleção na Copa porque é muito torcedor mesmo.
Já o Flamengo, perdeu para um time sul-americano que tem experiência em competições locais e, imagino, não tenha uma folha de pagamento das mais altas do continente. O que faz pensar sobre os equívocos daqui. Aquilo que aconteceu fora – e depois dentro – da “Arena Maracanã” foi aterrador, sem dúvida. Mas ninguém pode dizer que foi inesperado. Todos errados, a começar pela maior responsável de todas: a gentrificação daquele que já foi o maior estádio do mundo – e não só em tamanho físico. É o efeito cascata em marcha. Não é de hoje que as mazelas do futebol globalizado fazem suas vítimas. Todos perdem, e não só o time brasileiro no placar. E, para variar, a grande imprensa só pôs a culpa de todo o ocorrido numa torcida organizada – uma tática manjada.
Sobre o Grêmio, não sei bem o que dizer... O Real Madrid foi muito superior. O time gaúcho parece que reproduziu a postura do Santos frente ao Barcelona, na decisão do Mundial de 2011, apesar do placar magro da decisão do ano passado. Seria talvez um acovardamento meio deslumbrado diante de uma das grandes potências do futebol mundial? Lembro que em 1995, o mesmo Grêmio caiu de pé diante do Ajax, que o mundo então considerava também uma potência futebolística, mesmo tendo um jogador expulso no primeiro tempo. O jogo foi para a disputa de pênaltis e podia ter dado Grêmio (se não fosse o goleiro Danrlei!).
Realmente, acho que algo mudou ao longo dessa “evolução” do futebol nos últimos tempos...
Correio da Cidadania: Em que nível você considera estar a produção cultural relacionada ao futebol no Brasil?
Lucio Branco: Creio que no lugar de sempre. É uma produção meio irregular. Há quem diga que a combinação “cinema e futebol” nunca foi muito feliz no Brasil. Concordo em parte. Acho que uma afirmação dessa se aplica mais à ficção, já que há uma dificuldade técnica de se reproduzir a atmosfera e a dinâmica de uma partida em termos mais verossímeis, como pretendam, imagino, os diretores em geral, e, certamente, demanda o espectador, com sua larga experiência de arquibancada ou de mesa de bar (no futebol elitizado de hoje, o payperview é a alternativa mais à mão para o torcedor).
Uma solução comum é reduzir ao mínimo a presença da bola rolando, o que esvazia comprometedoramente a dimensão dramática do enredo. Afinal, os lances de uma partida contêm a carga necessária de drama que serviria de matéria-prima a ser explorada. Como não se desenvolveu por aqui a pesquisa formal-técnica nesse sentido, a saída é buscar lançar luz sobre o drama extracampo para compensar essa clara deficiência.
Daí o resultado pífio do interesse real do filme. A bilheteria e a repercussão junto à crítica especializada podem também dar mostras disso. De certa maneira, a produção estrangeira também não faz muito diferente. Uma exceção talvez seja o inglês Maldito Futebol Clube, do diretor Tom Hooper.
Porém, com o documentário nacional sobre o tema já é diferente... Como disse, me orgulho de ter podido contar com trechos de alguns documentários dessa linhagem em Barba, Cabelo & Bigode. Acho Passe Livre, por exemplo, um dos dez maiores documentários já realizados no Brasil, para muito além da classificação “filme de futebol”.
Para se dimensionar melhor em que pé está a atual produção, recomendo muito que se frequente as sessões gratuitas do festival CINEfoot, capitaneado pelo expert na matéria “Cinema de futebol”, Antonio Leal. O Barba estreou na edição carioca de 2016 do festival e é graças principalmente a ele que tem conseguido fazer sua carreira, já que, com o orçamento que tínhamos, não havia como dispor de verba para distribuição. O filme é independente, tendo sido possível produzi-lo apenas através de recursos próprios e de um financiamento coletivo que ainda não permitiram fechar inteiramente suas contas.
E o bigode
Correio da Cidadania: Ainda é difícil colocar o esporte mais popular do país nas principais esferas culturais e intelectuais brasileiras?
Lucio Branco: O que acho curioso na carreira do Barba, Cabelo & Bigode é o quanto ele acabou servindo como testemunho do preconceito arraigado contra esse filão de cinema no país que ainda se (auto)define como sendo “do futebol”. Apesar de ser um trabalho abraçado por muita gente que o assistiu mais de uma vez e o recomenda a terceiros, a recepção ao filme é um pouco comprometida por um comportamento cultural instituído, típico de uma classe média sempre zelosa com a sua condição de “formadora de opinião”.
Refiro-me não só ao seu segmento conservador majoritário, que vê na trajetória dos três protagonistas um evidente antagonismo histórico. Falo, aqui, também, e mais especificamente, da fauna do meio cinematográfico e o seu entorno sociocultural: músicos, artistas plásticos, escritores, fotógrafos etc. O pedantismo intelectual é uma fortaleza no Brasil – nada de novo nisso. O futebol ainda não passou pelo crivo da relação autorizada da classe artística “ilustrada” com a cultura popular.
Um gênero musical como o samba, por exemplo, já atravessou um processo de adaptação que gerou a sua aceitação em ambientes fora de sua origem. Isso levou tempo, e nem é exatamente um modelo de êxito absoluto – as tensões sociais ainda estão ali –, mas é garantido o status cultural de se referir positivamente a Cartola e a Paulinho da Viola, não importando a circunstância. O mesmo não se verifica, por exemplo, se por acaso se fizer um elogio, em determinadas rodas, à destreza do Pelé com a bola como atributo de uma expressão artística genuína. O óbvio da dimensão cultural de um fenômeno extraordinário como este não é só quase desapercebido, como incomoda a uma parcela imensa da nossa intelligentsia, que não conceberia comparar Pelé com Cartola, sob nenhum parâmetro.
A adaptação ao gosto da classe média que o samba sofreu não se verifica no esporte mais popular do mundo entre nós. Por mais que se elitize, se “modernize” e até se converta em universo cult – como aconteceu nos anos 1990, com a criação de uma linha fetichizada de produtos como camisas retrô etc. –, o futebol ainda não experimentou essa reavaliação crítica, digamos, amenizadora. É uma resistência que, certamente, resulta da observação in loco, embora algo distanciada, da vivência diária desse “ópio do povo” nas conversas entre porteiros dos condomínios das grandes cidades, por exemplo.
Não se conseguiu glamourizar suficientemente essa relação espontânea, apagando dela o próprio povo, por mais que, repito, se elitize a modalidade. Sem que motivasse nenhum ressentimento da minha parte, pude concluir facilmente o quanto isso influiu de forma direta na recusa do filme por vários festivais cujas curadorias obedecem à mesma lógica cultural excludente. Argumentos como: “o filme é longo”, ou “não se encaixa nos critérios temáticos do regulamento” não valem.
Portanto, foi uma bênção apresentá-lo em praça pública, ano passado, no Leão Etíope do Méier, um evento de rua de grande valor aqui do Rio que contou com a ausência da turma bem pensante e suas regras. Gente de extração popular me parece bem mais apta a assimilar prontamente um filme como o Barba. Foi o caso de um torcedor do Flamengo, contemporâneo dos protagonistas, que negou o suposto pendor alvinegro daquilo que viu na tela – mesmo ponto que defendo.
Para a avaliação franca de um filme que aborde o universo brasileiro da bola, basta haver desapego a certos cânones (jamais assumidos assim por quem se coloca na “vanguarda” da opinião). Também não esqueço o que ouvi de dois adolescentes da rede pública de ensino que estiveram presentes na sessão de estreia, no CINEfoot. Pré-julgamento zero na fala deles. Deixaram o filme falar sozinho para depois falarem sobre ele. Não é assim que deveria ser sempre? Ou idealizo demais?
Correio da Cidadania: Você planeja rodar novos filmes com temática parecida no universo futebolístico ou de outras modalidades esportivas? Ou teria outros trabalhos em mente?
Lucio Branco: Enquanto pesquisava, rodava e produzia o Barba, Cabelo & Bigode, fiquei muito tentado a realizar um curta ou média-metragem sobre o Time do Camburão, uma escalação de craques de reputação maldita no futebol brasileiro que acabou se encontrando no Botafogo em 1977/78. Ali praticamente só tinha craque “fio desencapado”: Mario Sergio, Dé Aranha, Nilson Dias, Perivaldo, Búfalo Gil, e, para coroar, o nosso Cabelo: Paulo Cézar Caju.
O Time do Camburão – nome dado pelo jornalista Deni Menezes depois de se dar conta de quem estava dentro do ônibus do Botafogo que chegava ao Maracanã para um jogo – é um assunto que comparece muito rapidamente numa fala do Caju em Barba, Cabelo & Bigode. À época, o presidente do clube, um supervisor e um técnico eram policiais ligados à ditadura.
O comando do Botafogo não escondia o quanto estava associado à linha dura do regime militar. Mas seria também um documentário com certa veia cômica, já que existe muito folclore em torno daquela equipe, que conseguiu a proeza de ficar invicta durante 52 jogos e colaborar, involuntariamente – é claro – com o jejum de títulos que o clube amargou por 21 anos, no total. Mas o projeto ficou um pouco mais difícil depois de termos perdido, infelizmente, o Mario Sergio e o Perivaldo.
Após o Barba, fiz um curta chamado ELÃ!, só com fotos de arquivo em que ponho basicamente um discurso do Brizola para brigar com um discurso do Lacerda, ambos pronunciados no mesmo e tenebroso 1º de abril de 1964. De certa forma, creio que o filme seja tão atual quanto naquela data, dada a polarização política que temos hoje (sei que é um assunto bem mais complexo do que essa simples colocação).
No momento, estou realizando um longa baseado no pensamento de um muito relevante e singular historiador brasileiro ligado à cultura popular.
Para finalizar, uma notícia em primeira mão: antes da Copa do Mundo sai a versão em livro de Barba, Cabelo & Bigode.
(*) Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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(Com o Correio da Cidadania)
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(Com o Correio da Cidadania)
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