“Barba, Cabelo e Bigode”: um filme muito além do futebol


                                                                         
                               Cartaz do filme, criado por Louise Xa­vier Dantas


Gabriel Brito (*)

De­pois do in­clas­si­fi­cável 7 a 1 na se­mi­final da Copa do Mundo, muitos de­bates e re­fle­xões sobre os rumos his­tó­ricos que o fu­tebol pen­ta­cam­peão do mundo tomou ga­nharam es­paço, ao lado de pro­du­ções cul­tu­rais e in­te­lec­tuais que tentam de algum modo dar conta do tema. Uma delas é o filme Barba, Ca­belo e Bi­gode, que re­trata três grandes jo­ga­dores e re­beldes da cha­mada era de ouro do fu­tebol bra­si­leiro, em meio a uma di­ta­dura que im­poria mais ten­dên­cias ao jogo do que pa­rece. É sobre tudo isso que con­ver­samos com Lucio Branco, autor do longa-me­tragem.

“Pre­tendi ir bem além do sim­ples es­te­reó­tipo da versão bo­leira do guer­ri­lheiro bar­budo que lutou pelo passe livre (Afon­sinho); do jovem negro cheio de ca­co­etes de um black soul brother de se­riado made in USA (Paulo Cezar Caju); e da ca­ri­ca­tura do bicho grilo doidão, no es­tilo flower power (Nei Con­ceição). Eles são muito mais do que a re­dução a essas ten­dên­cias de com­por­ta­mento po­lí­tico e con­tra­cul­tural, apesar das evi­dentes afi­ni­dades com o seu tempo, com a sua ge­ração. Mas o ele­mento ca­pilar tinha apelo de­mais para essa minha re­la­tiva res­trição”, ex­plicou. 

Além de de­ta­lhar o tra­balho de con­cepção e exe­cução do filme, Lucio fala da di­fi­cul­dade em vermos surgir no fu­tebol dos tempos ne­o­li­be­rais fi­guras como essas e ou­tras que mar­caram a his­tória por sua in­de­pen­dência de pen­sa­mento e ati­tudes an­tis­sis­tê­micas. No campo cul­tural, cri­tica a per­ma­nência de um blo­queio ainda vi­gente ao re­co­nhe­ci­mento do fu­tebol e seus ídolos como grandes ex­pres­sões ar­tís­ticas e so­ciais do país, mesmo em tempos de eli­ti­zação da mo­da­li­dade.

“O que acho cu­rioso na car­reira do Barba, Ca­belo & Bi­gode é o quanto acabou ser­vindo como tes­te­munho do pre­con­ceito ar­rai­gado contra esse filão de ci­nema no país que ainda se (auto)de­fine como sendo 'do fu­tebol'. Apesar de ser um tra­balho abra­çado por muita gente que o as­sistiu mais de uma vez e o re­co­menda a ter­ceiros, a re­cepção ao filme é um pouco com­pro­me­tida por um com­por­ta­mento cul­tural ins­ti­tuído, tí­pico de uma classe média sempre ze­losa com a sua con­dição de 'for­ma­dora de opi­nião’”, ob­servou.

A en­tre­vista com­pleta com Lucio Branco, que ter­mina com uma no­tícia em pri­meira mão, pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como se deu o pro­cesso de pro­dução do filme Barba, Ca­belo e Bi­gode? Por que esse nome?

Lucio Branco: A ideia do filme é an­tiga. Quando muito novo, gos­tava de ver o Afon­sinho e o Paulo Cézar Caju em re­por­ta­gens na te­le­visão me­tendo o dedo na fe­rida do fu­tebol bra­si­leiro e nos rumos que ele as­su­mira desde o tempo em que co­me­çaram a atuar pro­fis­si­o­nal­mente. Cresci acom­pa­nhando parte da tra­je­tória deles, já fora dos gra­mados, sa­bendo que eram fi­guras sui ge­neris dentro do uni­verso es­por­tivo. Pouco tempo de­pois, ouvi falar do Nei Con­ceição – sobre quem des­con­fiei, de cara, ser muito mais que um craque que pre­feria treinar com os Novos Bai­anos do que em Ge­neral Se­ve­riano, como o fol­clore con­sa­grou – e do quanto ele tinha afi­ni­dades com os ou­tros dois em termos de dis­si­dência sobre o que o fu­tebol passou a re­pre­sentar desde o pe­ríodo mi­litar. 

Posso dizer que o meu bo­ta­fo­guismo, em me­dida con­si­de­rável, foi in­flu­en­ciado pela pre­sença deles no rol dos grandes nomes do Glo­rioso – mesmo só lem­brando de ter tes­te­mu­nhado o Caju jogar pelo Grêmio na final do Mun­dial In­ter­clubes, em 1983, contra o Ham­burgo. Não de­morei a in­tuir que a his­tória do trio dava filme. 

Em me­ados dos anos 1990, o João Mo­reira Salles fez o Fu­tebol, com par­ti­ci­pação do Caju, e, pela mesma época, através do meu então pro­fessor de So­ci­o­logia do Fu­tebol, Mau­ricio Murad, soube da exis­tência do Passe Livre, obra-prima do Oswaldo Cal­deira, re­a­li­zada em 1974. Não fui pi­o­neiro na abor­dagem da vida e da car­reira desses cra­ques da bola e da cons­ci­ência nas telas. Mas me sinto muito pri­vi­le­giado por ter po­dido usar ima­gens dos dois filmes no meu.

Quando ouvi no rádio, em de­zembro de 2011, uma edição do pro­grama roNca roNca, apre­sen­tado pelo Mau­ricio Val­la­dares, com o Pau­linho Boca de Cantor, em que ele fa­lava sobre a par­ti­ci­pação do Nei Con­ceição nas pe­ladas dos Novos Bai­anos, meio que caiu uma luz de que es­tava se apro­xi­mando o mo­mento de re­a­lizar o longa. Meu pri­meiro con­tato por e-mail com o Afon­sinho para in­formá-lo sobre o que pre­tendia com ele e os seus dois par­ceiros foi exa­ta­mente dois anos de­pois. Es­tá­vamos prestes a en­trar no ano da Copa do Mundo no Brasil. Ele topou na hora, afir­mando que seria uma grande opor­tu­ni­dade de rir lem­brando das his­tó­rias do Nei. Acho que não po­deria haver me­lhor forma de adesão ao pro­jeto. 

Ex­plicar o tí­tulo é sim­ples: “Barba” é o Afon­sinho, que se re­cusou a cortar a sua como gesto de pro­testo contra a im­po­sição de um Bo­ta­fogo co­man­dado por uma di­re­toria e uma co­missão téc­nica sub­missas ao pro­jeto de dis­ci­pli­na­ri­zação que a di­ta­dura mi­litar re­ser­vava para o fu­tebol, o que im­pli­cava con­trole sobre a apa­rência fí­sica do jo­gador; “Ca­belo” é o Paulo Cézar Caju, que tem este ape­lido por ter pin­tado o seu de acaju – era o tempo do corte black power, ou, como se fala nos EUA, afro hair, as­so­ciado à afir­mação da ne­gri­tude, à cul­tura da in­du­men­tária black, ao black soul criado pelo James Brown; e o “Bi­gode” é o Nei Con­ceição, que cul­tivou o seu à la Za­pata, no auge da car­reira e da sua in­su­bor­di­nação contra os có­digos de quartel que pas­saram a re­gular a con­duta dos atletas nos clubes. 

Pre­tendi ir bem além do sim­ples es­te­reó­tipo da versão bo­leira do guer­ri­lheiro bar­budo que lutou pelo passe livre; do jovem negro cheio de ca­co­etes de um black soul brother de se­riado made in USA; e da ca­ri­ca­tura do bicho grilo doidão, no es­tilo flower power. Eles são muito mais do que a re­dução a essas ten­dên­cias de com­por­ta­mento po­lí­tico e con­tra­cul­tural, apesar das evi­dentes afi­ni­dades com o seu tempo, com a sua ge­ração. Mas o ele­mento ca­pilar tinha apelo de­mais para essa minha re­la­tiva res­trição. 

Por fim, a ex­pressão “barba, ca­belo e bi­gode” tem origem no fu­tebol. Usava-se para dizer quando o clube “dei­tava e ro­lava” aos do­mingos, ao ga­nhar com os ju­venis, de manhã; com os as­pi­rantes, à tarde; e com o time de cima, à noite. Re­su­mindo: o tí­tulo do filme não po­deria ser outro.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você po­si­ciona os três per­so­na­gens do filme na his­tória do fu­tebol bra­si­leiro?

Lucio Branco: São fi­guras com uma ex­pe­ri­ência ímpar. Os três se dis­pu­seram a en­frentar uma má­quina tri­tu­ra­dora de per­so­na­li­dade e ta­lento que ainda está em pleno fun­ci­o­na­mento, como parte do le­gado do pe­ríodo au­to­ri­tário que, hoje, tem solo firme no modo como se es­tru­turou o fu­tebol no mundo dito glo­ba­li­zado. Eles pa­garam um preço ele­va­dís­simo: ti­veram suas car­reiras pro­fis­si­o­nais sa­bo­tadas, foram per­se­guidos e so­freram sa­cri­fí­cios também na vida pes­soal por conta disso. 

Tenho con­vicção de que qual­quer abor­dagem sobre os três tem de partir do fato de que foram jo­ga­dores ex­tra­classe, as­so­ci­ados à me­lhor tra­dição do fu­tebol arte, essa es­cola fun­dada na Amé­rica do Sul e que teve o Brasil como o seu re­pre­sen­tante de ponta. Eles são fi­lhos de 1958, como o Afon­sinho frisa tantas vezes no seu de­poi­mento, no que con­cordam Caju e Nei, em sua de­fesa do es­tilo de jogo de Gar­rincha, Didi, Nilton Santos, Pelé, Ademir da Guia, Almir Per­nam­bu­quinho, Silva Ba­tuta, Gerson, Ri­ve­lino, Ma­rinho Chagas, Ge­raldo “As­so­vi­ador” e ou­tros cra­ques da­quela ge­ração e de outra, sub­se­quente. 

As­so­ci­aram a essa qua­li­dade téc­nica uma ati­tude exis­ten­cial sin­gular que con­tava então com um am­bi­ente cul­tural mais fa­vo­rável para acon­tecer, apesar da in­ter­venção da di­ta­dura nos es­portes. Uma ati­tude exis­ten­cial que nem im­pli­caria ana­cro­nismo se fosse em­pre­gada pelo jo­gador atual: a atu­a­li­dade é que está presa de­mais ao seu pró­prio tempo, com os seus atletas pro­gra­mados em campo e fora dele. 

La­men­tável que já es­teja mais que ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada a regra das res­postas en­sai­adas nas en­tre­vistas. A imagem do jo­gador virou uma mina de ouro, e o as­sessor de im­prensa, antes só uti­li­zado pelo clube, se con­verteu num pro­fis­si­onal de imenso valor na gestão da car­reira dos atletas. Por sinal, já re­parou que me­ri­to­cracia é um dos termos mais re­pe­tidos nessas en­tre­vistas?


                                                   Mau­ricio Val­la­dares.
                                                                         

Na foto da foto, Caju e nin­guém menos que Bob Marley, que fez questão de co­nhecê-lo em sua pri­meira vi­sita ao Brasil. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Já que você fez a com­pa­ração, como en­xerga os três ex-jo­ga­dores em re­lação ao fu­tebol atual e o uni­verso que cerca o jo­gador de fu­tebol?

Lucio Branco: É ne­ces­sário dizer que os três são a an­tí­tese do pro­tó­tipo do jo­gador con­tem­po­râneo, em inú­meros as­pectos. Por conta de sua vi­vência dentro do fu­tebol, se­gundo o modo como en­ten­diam a sua iden­ti­dade cul­tural, pri­o­ri­zaram uma série de va­lores e de­sen­vol­veram per­so­na­li­dade pró­pria, po­si­ci­o­na­mento po­lí­tico, cons­ci­ência so­cial, sen­si­bi­li­dade es­té­tica, res­peito pela his­tória etc. É uma questão de for­mação. Não ne­gli­gen­ci­aram esses va­lores, que já são evi­dentes nas pe­ladas de rua, este es­tágio pri­mário – e fun­da­mental – na re­lação com a bola. 

O fu­tebol é um fator de so­ci­a­bi­li­zação dos mais re­le­vantes, de cri­ação de laços pro­fundos de con­vívio. É uma mo­da­li­dade es­por­tiva que tem uma di­nâ­mica que pos­si­bi­lita a ar­ti­cu­lação do in­di­vi­dual com o co­le­tivo como poucas ou­tras. No caso da con­tri­buição bra­si­leira, po­demos dizer que houve pra­ti­ca­mente uma re­mo­de­lação, ou me­lhor, uma rein­venção da mo­da­li­dade. Não é er­rado dizer que foi fun­dada uma tra­dição.

 Assim, o ritmo das par­tidas passou a ser di­tado pela cri­a­ti­vi­dade do craque, co­or­de­nada sempre com a do outro craque da mesma equipe, ou com o senso co­le­tivo de ou­tros co­legas de menor ta­lento, mas que sempre pu­nham o craque no centro de qual­quer es­quema tá­tico. O ta­lento in­di­vi­dual e a ofen­si­vi­dade pau­taram a mai­oria dos es­quemas, criou-se uma nova con­cepção de jogo que in­fluiu de­ter­mi­nan­te­mente em vá­rias es­colas de fu­tebol pelo mundo. 

Houve uma época em que os times ti­nham, em média, cinco ou seis jo­ga­dores de alto nível no plantel – in­cluindo os times “pe­quenos”. Afon­sinho, Caju e Nei sabem do lugar que ocupam no in­te­rior dessa tra­dição – eles e ou­tros cra­ques. É uma noção que sempre re­nova a afi­ni­dade entre jo­ga­dores desse naipe para além do tempo em que atu­aram numa de­ter­mi­nada equipe, ge­rando um res­peito mútuo que não fica res­trito ao mé­rito es­tri­ta­mente pro­fis­si­onal do con­vívio. É uma iden­ti­fi­cação as­so­ci­a­tiva, afe­tiva e pro­fun­da­mente hu­mana.


Ney Con­ceição. Foto: Tay Nas­ci­mento

Cor­reio da Ci­da­dania: Acha pos­sível que surjam novas fi­guras como as re­tra­tadas no filme, ou como Só­crates, dentre ou­tros jo­ga­dores ditos sub­ver­sivos?

Lucio Branco: Numa en­tre­vista que fi­zeram co­migo um tempo atrás, res­pondi a uma per­gunta muito pa­re­cida com esta, mais ou menos nos se­guintes termos: “a não ser que haja uma re­vo­lução que ainda não mos­trou a cara, de­fi­ni­ti­va­mente não há es­paço para jo­ga­dores como Afon­sinho, Paulo Cézar Caju e Nei Con­ceição no fu­tebol dito ‘mo­derno’. Por­tanto, azar o dele”.

Man­tenho a opi­nião. Do ponto de vista da pos­si­bi­li­dade de or­ga­ni­zação co­le­tiva, nada mudou de lá para cá. Um per­so­nagem como o Só­crates ou o Wla­dimir não vêm do nada. A De­mo­cracia Co­rin­tiana foi re­al­mente um pro­cesso so­cial. A prova é que a ar­qui­ban­cada aderiu na hora. Acon­teceu no pe­ríodo da Aber­tura, e também por isso foi pos­sível. É uma questão de con­texto his­tó­rico, o que em nada des­me­rece ou di­minui o fenô­meno.

Acon­teceu na­quele mo­mento porque o pró­prio mo­mento pedia, de certa forma. Mas já peço perdão por não me es­tender muito sobre essa be­lís­sima ex­pe­ri­ência de au­to­gestão que pude acom­pa­nhar – e pela qual torcer – quando cri­ança. É que, por uma questão de jus­tiça his­tó­rica – e não de di­vul­gação do filme –, tenho de­fen­dido a ideia de que se fale menos da De­mo­cracia Co­rin­tiana quando se fala do trio que re­pre­sentou a “De­mo­cracia Bo­ta­fo­guense” (que acabou não acon­te­cendo de modo mais or­ga­ni­zado por ela ter en­fren­tado o mo­mento mais re­pres­sivo da di­ta­dura, a era Mé­dici), e que, em con­tra­par­tida, se fale mais da “De­mo­cracia Bo­ta­fo­guense” quando se falar da De­mo­cracia Co­rin­tiana.

Há um pi­o­nei­rismo evi­dente aí não de­vi­da­mente re­co­nhe­cido por ques­tões de ordem mi­diá­tica e tor­ce­dora – ou an­ti­tor­ce­dora, porque a his­tória do Bo­ta­fogo é incô­moda, não cor­res­ponde à versão que o senso comum tenta ins­ti­tu­ci­o­na­lizar a seu res­peito (há quem não se con­forme com o fato de o Glo­rioso ainda li­derar a lista dos clubes bra­si­leiros que mais ce­deram jo­ga­dores para as Copas do Mundo – e os me­lhores, acres­cento, se con­si­de­rarmos que a sua con­tri­buição mais ge­ne­rosa foi em 1958, 62 e 70). É pre­ciso com­binar antes com a His­tória que ela se apague para co­locar no lugar a versão que toma o Bo­ta­fogo como um pe­netra na ga­leria das grandes agre­mi­a­ções do fu­tebol mun­dial.

E, claro, digo isso sem des­con­si­derar que, apesar da sua iden­ti­fi­cação com o clube (e da tor­cida que mantêm por ele até hoje, não obs­tante tudo o que so­freram nas mãos de seus di­ri­gentes e téc­nicos), Afon­sinho, Caju e Nei jo­garam também em ou­tros.

De resto, me pa­rece bem em­ble­má­tico dos tempos atuais que, entre nós, o pro­fis­si­onal do meio que de­monstra me­lhor noção sobre as ver­da­deiras di­men­sões do fu­tebol bra­si­leiro seja um ar­gen­tino que já pen­durou as chu­teiras: Sorín.


O barba

Cor­reio da Ci­da­dania: O mo­vi­mento Bom Senso Fu­tebol Clube não é uma con­tri­buição pouco re­co­nhe­cida neste sen­tido? Não teria sido en­fra­que­cido por forças po­lí­ticas não muito di­fe­rentes da­quelas que pon­ti­fi­cavam no pe­ríodo da di­ta­dura?

Lucio Branco: A es­tru­tural feudal do fu­tebol bra­si­leiro faz o mesmo que esse atual go­verno ile­gí­timo na sua cô­moda so­bre­vida: ri da nossa des­mo­bi­li­zação. Por uma questão de prin­cípio, sou in­tei­ra­mente fa­vo­rável à mo­bi­li­zação, à cri­ação de mo­vi­mentos, or­ga­ni­za­ções, as­so­ci­a­ções que se formem pela base. Não ponho fé que ar­ti­cu­la­ções nas altas es­feras deem so­lução de um pro­blema tão his­to­ri­ca­mente ar­rai­gado. A casta con­tem­plada com os me­lhores con­tratos no mer­cado da bola pensa ex­clu­si­va­mente em si. A rigor, o Bom Senso FC en­trou nessa como uma grande ini­ci­a­tiva co­mer­cial. O dis­curso, claro, era outro. 

Até creio na boa in­tenção – mais ou menos in­gênua – de um ou outro membro, mas o que pre­va­leceu mesmo foi o in­te­resse na ex­plo­ração da marca co­mer­cial a que, ine­vi­ta­vel­mente, todo jo­gador-ce­le­bri­dade con­tem­po­râneo acaba se re­du­zindo. A imagem das su­pe­res­trelas é que, desde o início, es­tava em questão. Os seus ges­tores não es­tavam que­rendo mais perder para as grandes emis­soras de TV o ca­pital que as suas marcas de elite geram. 

A par­ti­ci­pação dos jo­ga­dores de di­vi­sões in­fe­ri­ores era mais para constar mesmo, sair bem na foto. Nesse que­sito – por prin­cípio, dos mais re­le­vantes e ne­ces­sá­rios –, o Bom Senso não foi muito di­fe­rente de uma grande em­presa que entra com­pe­ti­ti­va­mente no mer­cado. Assim como 100% das ou­tras, as­sumiu a ini­ci­a­tiva, antes de tudo, para ga­rantir lucro ime­diato. Mas, claro, sem deixar de co­locar no ró­tulo do seu pro­duto a ins­crição “res­pon­sa­bi­li­dade so­cial”. A per­gunta per­ti­nente aqui é: exa­ta­mente onde?

Não era assim no pas­sado. Por exemplo, o Pelé, já se en­ca­mi­nhando para pen­durar as chu­teiras, de­pois de acom­pa­nhar aten­ta­mente os passos do Afon­sinho na sua luta pelo passe livre, o pro­curou – ele pró­prio, o “Rei do Fu­tebol”, e não um re­pre­sen­tante seu – para ouvir os con­se­lhos do ca­misa 8 sobre como lidar com os car­tolas do Santos, que es­tavam para lhe aplicar mais uma volta na re­no­vação do seu con­trato. 

Estou fa­lando sim­ples­mente do maior de todos que, na oca­sião, se po­si­ci­onou sobre as re­la­ções de ex­plo­ração no fu­tebol pro­fis­si­onal, cha­mando atenção, pu­bli­ca­mente, para o pro­blema em nome da ca­te­goria. Ele pode ter se equi­vo­cado a sério de­pois nessa questão, mas ali, em 1973, ele sabia bem de que lado es­tava.

Um su­pe­res­trela atual seria in­capaz de não deixar uma in­cum­bência dessa na mão do seu em­pre­sário, após reu­niões com pro­fis­si­o­nais de mar­ke­ting e afins. As únicas mo­di­fi­ca­ções que in­te­ressam a um Da­niel Alves, para citar um nome, são aquelas que dizem res­peito di­re­ta­mente ao seu bolso – ne­nhuma é es­tru­tural. Por­tanto, só acre­dito em quem tem a perder e, de fato, se dis­ponha a isso em nome de uma causa maior. Mes­si­a­nismo ne­nhum, nada de exal­tação ao mar­tírio. Falo de um prin­cípio ele­mentar da luta por di­reitos no âm­bito do tra­balho: dis­po­sição para pagar o preço que for em nome da classe – afinal, pri­vi­légio não é di­reito. E dessa luta, um Da­niel Alves está fora.

Nunca pus fé no Bom Senso, em­bora ainda de­fenda o le­gí­timo prin­cípio da sua exis­tência. Foi muito es­pe­tá­culo para pouca ação con­creta. Um si­mu­lacro que até con­venceu (ou iludiu?) por certo tempo gente so­li­dária e de valor, que não ab­dica da es­pe­rança. Não à toa que acabou como acabou. Foi uma ini­ci­a­tiva que perdeu para si mesma, por não con­se­guir expor con­vin­cen­te­mente a que vinha. E que nem pre­cisou das forças po­lí­ticas her­deiras da di­ta­dura que você men­ci­onou na per­gunta para servir como des­culpa para a sua der­rota: o con­fronto foi mí­nimo e nada he­roico. Perdão pela parte que toca ao meu “clu­bismo”, mas esse ne­gócio de briga com a es­tru­tura é mesmo para gente da es­ta­tura de Afon­sinho, Paulo Cézar Caju, Nei Con­ceição, De­mo­cracia Co­rin­tiana, Carlos Cas­zely no Chile etc.

Falo isso sem a menor pre­sunção. Torço para que uma or­ga­ni­zação só­lida e atu­ante des­ponte no meio das trevas e, pelo menos, inicie um pro­cesso mais trans­pa­rente e de­mo­crá­tico na de­fesa dos in­te­resses dos pro­fis­si­o­nais da bola de todas as di­vi­sões e ligas.


O ca­belo

Cor­reio da Ci­da­dania: Fa­lando em di­ta­dura, temos um le­gado do re­gime mi­litar menos re­co­nhe­cido no fu­tebol, sua gestão, po­lí­tica e rumos da era Ri­cardo Tei­xeira em di­ante, do que seria cor­reto ana­lisar?

Lucio Branco: Com cer­teza. Ri­cardo Tei­xeira aprendeu muito com o fa­le­cido ex-sogro. Foi pre­pa­rado por ele para dar sequência a um tipo de man­do­nismo que co­meçou antes dos ge­ne­rais, mas que foi me­lhor ela­bo­rado e, ainda mais au­to­ri­zado, sob o seu poder. Não sur­pre­ende que o Ha­ve­lange as­sumiu a pre­si­dência da FIFA em 1974, após uma dé­cada de di­ta­dura. O que ele fez po­li­ti­ca­mente no fu­tebol, sempre cor­te­jando os donos da si­tu­ação, é uma prá­tica que ele não aprendeu lá fora. 

A pro­jeção in­ter­na­ci­onal dele se deve, em grande me­dida, ao know-how ti­pi­ca­mente na­ci­onal que se de­sen­volve no bom con­vívio com as oli­gar­quias lo­cais. A de­sen­vol­tura foi tanta que con­se­guiu se vender como um gestor qua­li­fi­cado para as­sumir o co­mando do órgão má­ximo do fu­tebol mun­dial. Tempos atrás, tinha gente que men­ci­o­nava isso sem es­conder certo ufa­nismo. Hoje, nem é ne­ces­sário lem­brar do atual pa­ra­deiro dos “fi­lhos” do Ha­ve­lange que se cri­aram na CBF. 

Esse ce­nário ma­fioso de des­mando e cor­rupção em âm­bito in­ter­na­ci­onal traz também a marca da con­tri­buição bra­si­leira. Um caso de ex­por­tação de ex­per­tise, com o am­paro do mais alto crime or­ga­ni­zado lá de fora. Foi um ca­sa­mento de in­te­resses que já não está dando mais tão certo para a parte mais fraca en­vol­vida, como é a praxe (são os la­tino-ame­ri­canos os prin­ci­pais alvos de pro­cessos e pri­sões).

Por ra­zões como essa é que Afon­sinho, Caju e Nei são de uma co­e­rência mo­no­lí­tica e mesmo – por que não dizer? – vi­si­o­nária. Eles per­ce­beram, mal aden­traram o gra­mado, que o jogo es­tava per­dido. E que o fu­tebol arte não era apenas uma ideia, uma utopia de­li­rante, mas um fato con­creto que co­meçou a ruir, mesmo que gra­da­ti­va­mente, com a di­ta­dura no papel de juiz. E eles sabem que, em tempos ne­o­li­be­rais, esse pro­jeto de des­truição da iden­ti­dade do modo bra­si­leiro de jogar está para se com­pletar, em­bora não de­sistam da luta.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você vê o fu­tebol bra­si­leiro neste mo­mento his­tó­rico, to­mando como re­fe­rência a final da Copa Sul-Ame­ri­cana entre Fla­mengo e In­de­pen­di­ente (com todos os acon­te­ci­mentos que a cer­caram) e do Mun­dial de Clubes, entre Grêmio e Real Ma­drid?

Lucio Branco: Es­tamos apenas co­lhendo frutos po­dres nos úl­timos anos. A crise foi um pro­cesso re­la­ti­va­mente gra­da­tivo. O 7 x 1, na ver­dade, foi um sin­toma apenas mais pro­nun­ciado de um pro­blema que co­meçou antes e pa­rece longe de ter­minar. Quanto à par­ti­ci­pação bra­si­leira na Copa da Rússia, acho tudo uma grande in­cóg­nita, apesar de todo o en­tu­si­asmo com a cam­panha vi­to­riosa nas Eli­mi­na­tó­rias desde que o Tite as­sumiu a se­leção. E con­ve­nhamos: achar, nesta al­tura, tudo uma grande in­cóg­nita, apesar da cam­panha in­ques­ti­o­nável nas Eli­mi­na­tó­rias, já diz o quanto es­tamos longe da con­fi­ança que o fu­tebol bra­si­leiro ins­pi­rava. 

Lembro de per­guntar ao meu pai, du­rante as Eli­mi­na­tó­rias de 1982, se os pla­cares fa­vo­rá­veis (muitas vezes, com di­reito a go­le­adas) do Brasil contra os ad­ver­sá­rios já es­tavam com­bi­nados pre­vi­a­mente. A cer­teza do es­pe­tá­culo a cada par­tida des­per­tava a minha in­gênua sus­peita in­fantil. Era então outro o tipo de des­con­fi­ança que uma cri­ança podia ter sobre a se­leção num mo­mento como aquele. Acho que, hoje, um ga­roto só acre­dita re­al­mente na vi­tória certa da se­leção na Copa porque é muito tor­cedor mesmo.

Já o Fla­mengo, perdeu para um time sul-ame­ri­cano que tem ex­pe­ri­ência em com­pe­ti­ções lo­cais e, ima­gino, não tenha uma folha de pa­ga­mento das mais altas do con­ti­nente. O que faz pensar sobre os equí­vocos daqui. Aquilo que acon­teceu fora – e de­pois dentro – da “Arena Ma­ra­canã” foi ater­rador, sem dú­vida. Mas nin­guém pode dizer que foi ines­pe­rado. Todos er­rados, a co­meçar pela maior res­pon­sável de todas: a gen­tri­fi­cação da­quele que já foi o maior es­tádio do mundo – e não só em ta­manho fí­sico. É o efeito cas­cata em marcha. Não é de hoje que as ma­zelas do fu­tebol glo­ba­li­zado fazem suas ví­timas. Todos perdem, e não só o time bra­si­leiro no placar. E, para va­riar, a grande im­prensa só pôs a culpa de todo o ocor­rido numa tor­cida or­ga­ni­zada – uma tá­tica man­jada.

Sobre o Grêmio, não sei bem o que dizer... O Real Ma­drid foi muito su­pe­rior. O time gaúcho pa­rece que re­pro­duziu a pos­tura do Santos frente ao Bar­ce­lona, na de­cisão do Mun­dial de 2011, apesar do placar magro da de­cisão do ano pas­sado. Seria talvez um aco­var­da­mento meio des­lum­brado di­ante de uma das grandes po­tên­cias do fu­tebol mun­dial? Lembro que em 1995, o mesmo Grêmio caiu de pé di­ante do Ajax, que o mundo então con­si­de­rava também uma po­tência fu­te­bo­lís­tica, mesmo tendo um jo­gador ex­pulso no pri­meiro tempo. O jogo foi para a dis­puta de pê­naltis e podia ter dado Grêmio (se não fosse o go­leiro Danrlei!). 

Re­al­mente, acho que algo mudou ao longo dessa “evo­lução” do fu­tebol nos úl­timos tempos...

Cor­reio da Ci­da­dania: Em que nível você con­si­dera estar a pro­dução cul­tural re­la­ci­o­nada ao fu­tebol no Brasil?

Lucio Branco: Creio que no lugar de sempre. É uma pro­dução meio ir­re­gular. Há quem diga que a com­bi­nação “ci­nema e fu­tebol” nunca foi muito feliz no Brasil. Con­cordo em parte. Acho que uma afir­mação dessa se aplica mais à ficção, já que há uma di­fi­cul­dade téc­nica de se re­pro­duzir a at­mos­fera e a di­nâ­mica de uma par­tida em termos mais ve­ros­sí­meis, como pre­tendam, ima­gino, os di­re­tores em geral, e, cer­ta­mente, de­manda o es­pec­tador, com sua larga ex­pe­ri­ência de ar­qui­ban­cada ou de mesa de bar (no fu­tebol eli­ti­zado de hoje, o pay­per­view é a al­ter­na­tiva mais à mão para o tor­cedor). 

Uma so­lução comum é re­duzir ao mí­nimo a pre­sença da bola ro­lando, o que es­vazia com­pro­me­te­do­ra­mente a di­mensão dra­má­tica do en­redo. Afinal, os lances de uma par­tida contêm a carga ne­ces­sária de drama que ser­viria de ma­téria-prima a ser ex­plo­rada. Como não se de­sen­volveu por aqui a pes­quisa formal-téc­nica nesse sen­tido, a saída é buscar lançar luz sobre o drama ex­tra­campo para com­pensar essa clara de­fi­ci­ência. 

Daí o re­sul­tado pífio do in­te­resse real do filme. A bi­lhe­teria e a re­per­cussão junto à crí­tica es­pe­ci­a­li­zada podem também dar mos­tras disso. De certa ma­neira, a pro­dução es­tran­geira também não faz muito di­fe­rente. Uma ex­ceção talvez seja o in­glês Mal­dito Fu­tebol Clube, do di­retor Tom Ho­oper.

Porém, com o do­cu­men­tário na­ci­onal sobre o tema já é di­fe­rente... Como disse, me or­gulho de ter po­dido contar com tre­chos de al­guns do­cu­men­tá­rios dessa li­nhagem em Barba, Ca­belo & Bi­gode. Acho Passe Livre, por exemplo, um dos dez mai­ores do­cu­men­tá­rios já re­a­li­zados no Brasil, para muito além da clas­si­fi­cação “filme de fu­tebol”.

Para se di­men­si­onar me­lhor em que pé está a atual pro­dução, re­co­mendo muito que se fre­quente as ses­sões gra­tuitas do fes­tival CI­NE­foot, ca­pi­ta­neado pelo ex­pert na ma­téria “Ci­nema de fu­tebol”, An­tonio Leal. O Barba es­treou na edição ca­rioca de 2016 do fes­tival e é graças prin­ci­pal­mente a ele que tem con­se­guido fazer sua car­reira, já que, com o or­ça­mento que tí­nhamos, não havia como dispor de verba para dis­tri­buição. O filme é in­de­pen­dente, tendo sido pos­sível pro­duzi-lo apenas através de re­cursos pró­prios e de um fi­nan­ci­a­mento co­le­tivo que ainda não per­mi­tiram fe­char in­tei­ra­mente suas contas.


E o bi­gode

Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda é di­fícil co­locar o es­porte mais po­pular do país nas prin­ci­pais es­feras cul­tu­rais e in­te­lec­tuais bra­si­leiras?

Lucio Branco: O que acho cu­rioso na car­reira do Barba, Ca­belo & Bi­gode é o quanto ele acabou ser­vindo como tes­te­munho do pre­con­ceito ar­rai­gado contra esse filão de ci­nema no país que ainda se (auto)de­fine como sendo “do fu­tebol”. Apesar de ser um tra­balho abra­çado por muita gente que o as­sistiu mais de uma vez e o re­co­menda a ter­ceiros, a re­cepção ao filme é um pouco com­pro­me­tida por um com­por­ta­mento cul­tural ins­ti­tuído, tí­pico de uma classe média sempre ze­losa com a sua con­dição de “for­ma­dora de opi­nião”. 

Re­firo-me não só ao seu seg­mento con­ser­vador ma­jo­ri­tário, que vê na tra­je­tória dos três pro­ta­go­nistas um evi­dente an­ta­go­nismo his­tó­rico. Falo, aqui, também, e mais es­pe­ci­fi­ca­mente, da fauna do meio ci­ne­ma­to­grá­fico e o seu en­torno so­ci­o­cul­tural: mú­sicos, ar­tistas plás­ticos, es­cri­tores, fo­tó­grafos etc. O pe­dan­tismo in­te­lec­tual é uma for­ta­leza no Brasil – nada de novo nisso. O fu­tebol ainda não passou pelo crivo da re­lação au­to­ri­zada da classe ar­tís­tica “ilus­trada” com a cul­tura po­pular. 

Um gê­nero mu­sical como o samba, por exemplo, já atra­vessou um pro­cesso de adap­tação que gerou a sua acei­tação em am­bi­entes fora de sua origem. Isso levou tempo, e nem é exa­ta­mente um mo­delo de êxito ab­so­luto – as ten­sões so­ciais ainda estão ali –, mas é ga­ran­tido o status cul­tural de se re­ferir po­si­ti­va­mente a Car­tola e a Pau­linho da Viola, não im­por­tando a cir­cuns­tância. O mesmo não se ve­ri­fica, por exemplo, se por acaso se fizer um elogio, em de­ter­mi­nadas rodas, à des­treza do Pelé com a bola como atri­buto de uma ex­pressão ar­tís­tica ge­nuína. O óbvio da di­mensão cul­tural de um fenô­meno ex­tra­or­di­nário como este não é só quase de­sa­per­ce­bido, como in­co­moda a uma par­cela imensa da nossa in­tel­li­gentsia, que não con­ce­beria com­parar Pelé com Car­tola, sob ne­nhum pa­râ­metro. 

A adap­tação ao gosto da classe média que o samba so­freu não se ve­ri­fica no es­porte mais po­pular do mundo entre nós. Por mais que se eli­tize, se “mo­der­nize” e até se con­verta em uni­verso cult – como acon­teceu nos anos 1990, com a cri­ação de uma linha fe­ti­chi­zada de pro­dutos como ca­misas retrô etc. –, o fu­tebol ainda não ex­pe­ri­mentou essa re­a­va­li­ação crí­tica, di­gamos, ame­ni­za­dora. É uma re­sis­tência que, cer­ta­mente, re­sulta da ob­ser­vação in loco, em­bora algo dis­tan­ciada, da vi­vência diária desse “ópio do povo” nas con­versas entre por­teiros dos con­do­mí­nios das grandes ci­dades, por exemplo. 

Não se con­se­guiu gla­mou­rizar su­fi­ci­en­te­mente essa re­lação es­pon­tânea, apa­gando dela o pró­prio povo, por mais que, re­pito, se eli­tize a mo­da­li­dade. Sem que mo­ti­vasse ne­nhum res­sen­ti­mento da minha parte, pude con­cluir fa­cil­mente o quanto isso in­fluiu de forma di­reta na re­cusa do filme por vá­rios fes­ti­vais cujas cu­ra­do­rias obe­decem à mesma ló­gica cul­tural ex­clu­dente. Ar­gu­mentos como: “o filme é longo”, ou “não se en­caixa nos cri­té­rios te­má­ticos do re­gu­la­mento” não valem. 

Por­tanto, foi uma bênção apre­sentá-lo em praça pú­blica, ano pas­sado, no Leão Etíope do Méier, um evento de rua de grande valor aqui do Rio que contou com a au­sência da turma bem pen­sante e suas re­gras. Gente de ex­tração po­pular me pa­rece bem mais apta a as­si­milar pron­ta­mente um filme como o Barba. Foi o caso de um tor­cedor do Fla­mengo, con­tem­po­râneo dos pro­ta­go­nistas, que negou o su­posto pendor al­vi­negro da­quilo que viu na tela – mesmo ponto que de­fendo. 

Para a ava­li­ação franca de um filme que aborde o uni­verso bra­si­leiro da bola, basta haver de­sa­pego a certos câ­nones (ja­mais as­su­midos assim por quem se co­loca na “van­guarda” da opi­nião). Também não es­queço o que ouvi de dois ado­les­centes da rede pú­blica de en­sino que es­ti­veram pre­sentes na sessão de es­treia, no CI­NE­foot. Pré-jul­ga­mento zero na fala deles. Dei­xaram o filme falar so­zinho para de­pois fa­larem sobre ele. Não é assim que de­veria ser sempre? Ou ide­a­lizo de­mais?

Cor­reio da Ci­da­dania: Você pla­neja rodar novos filmes com te­má­tica pa­re­cida no uni­verso fu­te­bo­lís­tico ou de ou­tras mo­da­li­dades es­por­tivas? Ou teria ou­tros tra­ba­lhos em mente?

Lucio Branco: En­quanto pes­qui­sava, ro­dava e pro­duzia o Barba, Ca­belo & Bi­gode, fi­quei muito ten­tado a re­a­lizar um curta ou média-me­tragem sobre o Time do Cam­burão, uma es­ca­lação de cra­ques de re­pu­tação mal­dita no fu­tebol bra­si­leiro que acabou se en­con­trando no Bo­ta­fogo em 1977/78. Ali pra­ti­ca­mente só tinha craque “fio de­sen­ca­pado”: Mario Sergio, Dé Aranha, Nilson Dias, Pe­ri­valdo, Bú­falo Gil, e, para co­roar, o nosso Ca­belo: Paulo Cézar Caju. 

O Time do Cam­burão – nome dado pelo jor­na­lista Deni Me­nezes de­pois de se dar conta de quem es­tava dentro do ônibus do Bo­ta­fogo que che­gava ao Ma­ra­canã para um jogo – é um as­sunto que com­pa­rece muito ra­pi­da­mente numa fala do Caju em Barba, Ca­belo & Bi­gode. À época, o pre­si­dente do clube, um su­per­visor e um téc­nico eram po­li­ciais li­gados à di­ta­dura. 

O co­mando do Bo­ta­fogo não es­condia o quanto es­tava as­so­ciado à linha dura do re­gime mi­litar. Mas seria também um do­cu­men­tário com certa veia cô­mica, já que existe muito fol­clore em torno da­quela equipe, que con­se­guiu a proeza de ficar in­victa du­rante 52 jogos e co­la­borar, in­vo­lun­ta­ri­a­mente – é claro – com o jejum de tí­tulos que o clube amargou por 21 anos, no total. Mas o pro­jeto ficou um pouco mais di­fícil de­pois de termos per­dido, in­fe­liz­mente, o Mario Sergio e o Pe­ri­valdo.

Após o Barba, fiz um curta cha­mado ELÃ!, só com fotos de ar­quivo em que ponho ba­si­ca­mente um dis­curso do Bri­zola para brigar com um dis­curso do La­cerda, ambos pro­nun­ci­ados no mesmo e te­ne­broso 1º de abril de 1964. De certa forma, creio que o filme seja tão atual quanto na­quela data, dada a po­la­ri­zação po­lí­tica que temos hoje (sei que é um as­sunto bem mais com­plexo do que essa sim­ples co­lo­cação).

No mo­mento, estou re­a­li­zando um longa ba­seado no pen­sa­mento de um muito re­le­vante e sin­gular his­to­ri­ador bra­si­leiro li­gado à cul­tura po­pular.

Para fi­na­lizar, uma no­tícia em pri­meira mão: antes da Copa do Mundo sai a versão em livro de Barba, Ca­belo & Bi­gode.


(*) Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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(Com o Correio da Cidadania)

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