Previdência é direito, não mercadoria
Paulo Kliass (*)
Com o transcorrer dos primeiros dias do governo do capitão e dos seus generais, as diferentes opiniões e projetos de sua equipe começam a apresentar seus conflitos de forma explícita perante a sociedade. Pouco a pouco começa a ficar mais claro que a eleição de outubro passado deveu-se muito mais a uma confluência de interesses e descontentamentos do que à concordância afirmativa quanto a um programa de governo.
As idas e vindas, os recuos e desmentidos, as bateções de cabeça, enfim a vacilação e a incerteza tem sido a marca permanente até o momento. Esse quadro de indefinição tem sido uma constante em áreas tão distantes como o reconhecimento da capital israelense em Jerusalém, medidas para ampliar o porte de arma, a saída de acordos globais articulados pela ONU, programas na área educacional, demarcação de terras indígenas ou mesmo a política de alianças da base de apoio do novo governo na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
A indefinição estratégica também se faz presente na área que o próprio núcleo econômico do governo tem apresentado, desde ainda da época do debate eleitoral, como sendo a mais essencial para o futuro do País. Trata-se da Reforma da Previdência.
Os grandes meios de comunicação e os conhecidos “especialistas” do mercado financeiro não perdem a oportunidade de repetir “ad nauseam” que nada será conseguido, em termos de recuperação da atividade econômica, caso não sejam aprovadas as mudanças inspiradas na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) enviadas ainda no início do governo de Michel Temer.
As informações falseadas a respeito das dificuldades enfrentadas pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS) criaram uma abordagem distorcida da situação das contas do INSS, com o objetivo de desacreditar o modelo aos olhos do conjunto da sociedade. Esse verdadeiro clima de catastrofismo pretende atuar como elemento de chantagem e pressão junto aos integrantes do Congresso Nacional, com o intuito de facilitar a aprovação das maldades contra a previdência pública.
O ponto essencial a reter é que o quadro atual de descompasso entre receitas e despesas no interior do RGPS quase nada tem a ver com algum “desequilíbrio estrutural” do modelo previdenciário. E muito menos a ver com a existência de aposentadorias e pensões elevadas ou de privilégios para os ricos. Os números dos próprios documentos oficiais nos informam que por volta de 99% dos benefícios dos trabalhadores rurais são de valores inferiores ou iguais a um salário mínimo mensal.
No caso do universo total do INSS, esse percentual é de 70 %. E mais de 90% deles são inferiores a 3 salários mínimos. Convenhamos que não se pode dizer que estejamos diante de aposentadorias e pensões das elites de nossa sociedade.
Mas o fato é que a sanha destruidora de Paulo Guedes parece não ter limites. Não contente em dar sequência à tramitação da PEC de autoria de Meirelles & Temer, ele quer ainda mais sangue. Assim, ao que tudo indica, não basta apenas a redução de direitos, o aumento de tempo de contribuição, a elevação da idade mínima ou o reconhecimento de especificidades da condição da mulher. Agora o superministro da pretende promover uma mudança ainda mais profunda no regime da previdência.
A proposta a ser encaminhada pelo governo Bolsonaro deverá conter a transformação do regime de repartição em regime de capitalização. Uma loucura! Na prática, essa operação terá o significado de destruir o nosso modelo de previdência pública e abrir o caminho escancarado para sua privatização. Pior ainda, essa mudança retira a natureza da previdência social como um direito de cidadania universal e a transforma em mais uma mercadoria a ser oferecido nas prateleiras do sistema financeiro.
O modelo de repartição pressupõe uma característica de solidariedade intergeracional no sistema previdenciário. Os trabalhadores que estão na ativa, a cada geração, contribuem junto com as empresas e o Estado (o nosso sistema é chamado de tripartite) para assegurar o pagamento de benefícios para os que já estão aposentados.
É isso que confere a característica social e coletiva ao modelo. E assim há outras previsões de beneficiários, como os que estão doentes ou acidentados. Tudo isso passa longe da ingerência de gestão do sistema financeiro. São mais de 35 milhões de indivíduos que recebem algum tipo de benefício mensal, com um fluxo anual de recursos movimentados superior a R$ 400 bilhões. Não por acaso o financismo sempre olhou para esses números com um olho bem gordo.
O modelo da capitalização é o oposto disso. A previdência passa a ser o resultado de uma conta individual de capitalização, onde o trabalhador recolhe mensalmente um valor junto à instituição financeira que seja responsável pela operação de seu plano. Ora, todos sabemos como são tratadas as questões de divergências entre consumidores e bancos em nosso País. Imaginem como seria eventual pleito de um trabalhador à beira de se aposentar, daqui 30 ou 35 anos, quando ele perceber que as contas estavam equivocadas. Vai reclamar com quem?
Os exemplos que estão mais próximos de nós são do Chile e da Argentina. Ali foi também implementada essa proposta irresponsável de modelo de capitalização. O resultado foi um verdadeiro quadro de desastre social décadas após as mudanças. Sim, pois os efeitos só são sentidos a partir do momento em que a próxima geração começar a bater às portas do sistema para exigir seus direitos de aposentadoria. E o que ocorreu foi a incapacidade de cumprir com os compromisso, pois os bancos não tinham mais recursos disponíveis para tanto. O quadro de miséria se aprofundou, os bancos acumularam vultosos lucros ao longo do processo e o sistema teve de ser novamente reestatizado para assegurar a continuidade de algum tipo de benefício previdenciário.
Por outro lado, o governo finge desconhecer o verdadeiro rombo que tal mudança vai causar no RGPS. Afinal, se todos os novos participantes vão ser obrigados a entrar no sistema individual, haverá uma queda ainda mais brutal de arrecadação no RGPS. E esse buraco deverá ser custeado com aportes do Tesouro Nacional. Assim, cai por terra o argumento de que a mudança é necessária para resolver o problema nas contas públicas.
Na verdade, é uma falácia essa estória de que a Reforma da Previdência seja uma condição “sine quae non” para resolver o déficit das contas da União em 2019 ou 2020. O equilíbrio do RGPS só será recuperado com a retomada do crescimento econômico e com a diminuição expressiva do desemprego. Isso porque nossas receitas previdenciárias são ancoradas na folha de pagamento, com o recolhimento de contribuição da parte das empresas e dos trabalhadores. Portanto, sem emprego formal não há receita para o sistema.
A intenção primeira e não declarada de eventual mudança para o regime de capitalização é transferir a gestão desse fundo que movimenta quase meio trilhão de reais ao ano, atualmente sob a responsabilidade do INSS, para a banca privada. Uma oferta generosa, de elevadíssima rentabilidade e sem nenhuma exigência de contrapartida social ou econômica. Um verdadeiro presente de Papai Noel atrasado.
(*) Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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