A MARCA DA MALDADE

                                                     


"Quando se fala de Auschwitz como uma "fábrica da morte", não se deve esquecer o lado puramente sádico da prática do extermínio: os carrascos sentiam prazer com o sofrimento das vítimas. E a morte não era indolor", escreve Wlodek Goldkorn, polonês, radicado na Itália, foi editor de Cultura da revista italiana Espresso, em artigo publicado por Repubblica, 23-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Quinze anos atrás, quando perguntado por que Auschwitz é sinônimo do Holocausto, Marek Edelman, o segundo no comando da revolta no gueto de Varsóvia respondeu: "Auschwitz não é sinônimo de nada, é o testemunho da extrema miséria do fascismo". Enquanto isso, a história foi em frente e a memória daquele local de extermínio, a meio caminho entre Cracóvia e Katowice, também passou por mais uma evolução.

O número de visitantes do antigo campo de concentração nazista está em constante crescimento; no ano passado, dois milhões e 300 mil pessoas quiseram tocar com as próprias mãos o horror, sentir a emoção que assalta o coração de quem olha para aquela área marcada pelas cinzas de pelo menos um milhão e 100 mil homens e mulheres, mortos nas câmaras de gás e cujos cadáveres, depois da remoção dos dentes de ouro, eram queimados em ritmos industrial em enormes fornos crematórios, construídos especialmente pelas indústrias alemãs.

O museu de Auschwitz-Birkenau é um destino cada vez mais procurado: um sinal de que essa memória é portadora de uma mensagem universal. E, no entanto, a intuição de Edelman continua sendo válida: a memória tem um lado puramente político e, portanto, partidário.

Este ano, depois de 75 anos, espaço de três gerações, desde que as tropas do Exército Vermelho, a caminho de Berlim, abriram os portões do campo de concentração para encontrar poucos milhares de sobreviventes, mais mortos que vivos (dezenas de milhares foram colocados pelos alemães em na marcha da morte em direção de outros campos de concentração), as celebrações consideradas centrais para esse evento são pelo menos duas. E polêmicas.

A primeira, na ordem cronológica, foi realizada quinta-feira em Jerusalém, no memorial Yad Vashem. A outra está prevista em Auschwitz, no dia 27. Na primeira estará ausente do presidente polonês Andrzej Duda, ofendido porque Vladimir Putin fala na capital de Israel (além dos representantes das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, de Israel e da Alemanha), enquanto a ele não foi concedida a mesma honra.

Há uma disputa em andamento entre os dois países sobre a gênese daquele conflito. E o próprio diretor do Museu de Auschwitz, Piotr Cywinski, geralmente uma pessoa de bom senso, quis expressar sua preocupação e espanto com o Times of Israel pela tentativa (em sua opinião) de transferir o centro daquela memória, de Auschwitz precisamente, para outro lugar. Brutalmente, até a codificação da memória está se tornando cada vez mais uma questão de geopolítica e de alianças entre estados em um mundo fragmentado e nas mãos de soberanistas.

Mas, então, resta a questão: o que é Auschwitz? E, novamente, a resposta depende do contexto. O campo de concentração nasceu na primavera de 1940, o primeiro comandante foi Rudolf Höss (ele seria enforcado não muito longe de seu gabinete, em abril de 1947), os primeiros presos foram presos políticos poloneses. 

Depois, com a construção de Auschwitz II em Birkenau, em 1941, o local tornou-se palco do extermínio dos judeus. Segundo os dados do historiador polonês Dariusz Libionka: 439 mil judeus húngaros, 300 mil poloneses, 70 mil franceses e mais de 7.500 italianos. A maioria deles nem foi registrada.

Dos vagões que chegavam dos guetos e dos campos de trânsito, incluindo Fossoli, os judeus eram enviados diretamente para as câmaras de gás: os homens marchavam na esquerda, as mulheres na direita, as crianças ficavam com as mulheres, os bebês eram muitas vezes arrancados dos braços das mães na descida dos comboios e assassinados pelos SS com as próprias mãos.

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Quando se fala de Auschwitz como uma "fábrica da morte", não se deve esquecer o lado puramente sádico da prática do extermínio: os carrascos sentiam prazer com o sofrimento das vítimas. E a morte não era indolor. O museu atual foi fundado em 1947. E também a forma que foi dada à memória foi mudando ao longo dos anos. 

Entre os primeiros a querer relembrar os mortos, obviamente, estavam os judeus. Era um movimento quase espontâneo de artistas, intelectuais, ativistas políticos que haviam permanecido na Polônia. Depois tudo foi institucionalizado e prevaleceu uma memória que não tinha o destino dos judeus ao centro, mas seguia a ideia stalinista da "irmandade dos povos vítimas do nazismo" e, aliás, via no discurso sobre o Holocausto uma manifestação de um "nacionalismo do molde sionista".

O Holocausto como paradigma da memória ocidental e como exemplo de niilismo radical, da epifania do mal, da inversão da Revelação do Sinai com seus dez mandamentos, pelo qual os carrascos estavam convencidos de que matar era um bem, é uma construção cultural relativamente recente e certamente necessária. 

O teólogo judeu André Neher falava do silêncio de Deus. O Papa Francisco naquele local, visitado em 2016, quis ficar em silêncio. Só encontrou as palavras mais tarde, para perguntar: "Onde estava Deus". Primo Levi afirmava que "se existe Auschwitz, não existe Deus". Mas talvez o ensinamento mais atual e laico seja ainda aquele de Levi: "Eu sei que os assassinos existiram e que os confundir com suas vítimas é uma doença moral, um precioso serviço prestado (voluntariamente ou não) aos negadores da verdade".


(Com o IHU)

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