O ASSUNTO É O DIREITO À MANIFESTAÇÃO


                                                  

Vias públicas são políticas

BRUNO TORTURRA (*)


Em uma democracia obtusa como a nossa, ocupar ruas é, arrisco dizer, o mínimo que se espera de uma população politicamente ativa


Fui convidado pela Folha a responder por meio deste artigo se protestos em vias públicas devem sofrer algum tipo de restrição. Antes de responder meu "não" com uma ressabiada convicção, preciso dizer que a pergunta em si desloca o que deveria ser a verdadeira discussão.

A pergunta aponta a obstrução de "vias públicas" como o fiel da balança. E transforma não apenas um direito constitucional, mas uma das essências da construção democrática em uma baixa aceitável na suposta manutenção da ordem. Ou melhor, na manutenção de um ideal arbitrário e superficial de ordem. Uma ordem que se entende mais importante do que a justiça social.

Assim, sem fugir da pergunta, penso que deveríamos antes ter em mente outras questões: qual a importância das manifestações em vias públicas? De que forma elas podem, de fato, exercer a pressão necessária para que suas reivindicações sejam atendidas? E, finalmente, nosso Estado sabe "restringir" manifestações sem que isso signifique o uso excessivo da violência?

A livre assembleia, a livre manifestação e organização civil transcendem o mero direito. São sobretudo dos mais poderosos e fundamentais instrumentos para a evolução da consciência política, para a disputa de ideias, para o teste de relevância de causas e reivindicações.

Em uma democracia obtusa, pouco permeável à participação direta, como a nossa, ocupar ruas e expressar desejos e ideais coletivos em vias públicas é, arrisco dizer, o mínimo que se espera de uma população politicamente ativa. Mesmo os cidadãos não engajados, fatalmente a maioria, deveriam compreender isso e não simplesmente "tolerar", mas acolher manifestações. Mesmo as que, eventualmente, lhe causem transtornos.

Pois é, sim, por meio de algum incômodo, da quebra de normalidade pública, que mídia e população são pautadas. E o Estado pressionado, cobrado ou, em último caso, coagido a dar atenção a uma demanda que, muito antes de a rua ser ocupada, já estava lá.

E aqui vem outro aspecto importante: as ruas só são tomadas, o trânsito só é bloqueado, quando há respaldo, presença massiva. Uma causa só toma a via pública quando passou tempo demais represada, ignorada, subexposta. Quando é relevante, enfim.

E, finalmente, vamos traduzir o que "restringir" significa no vocabulário de nossos governantes e polícias. As incontáveis cenas de brutalidade estatal em manifestações originalmente pacíficas, em remoções de populações de baixa renda, a jornalistas que simplesmente registravam a ação da polícia são a tradução. E a prova de que não só as polícias, mas muitos de seus comandantes civis carregam o ranço ditatorial de encarar o dissenso ativo como inimigo.

Entendo, e por isso meu "não" convicto é, como disse, ressabiado, que falo em termos amplos demais para dar conta da realidade. Do eventual abuso, de quando o protesto vira chantagem, de quando a manifestação pode simplesmente ser sabotagem. Mas esses são julgamentos que devem ser feitos a posteriori. E, mesmo nestes casos, a melhor resposta é a escuta, a negociação, mediação, investigação e a séria discussão midiática.

Por isso, buscando ser sucinto, ao responder "não", estou apenas dizendo que prezo mais a livre manifestação do que o ir e vir automobilístico. Até porque, convenhamos, se algo está de fato parando nosso trânsito é uma triste e resignada conformidade ao "status quo".

(*) BRUNO TORTURRA, 35, jornalista e fotógrafo, foi um dos criadores da Mídia Ninja, rede colaborativa de jornalismo. Hoje é responsável pelo projeto Fluxo

FONTE: Folha de São Paulo, 8 de junho de 2014 - seção Opinião. (Com Prestes a Ressurgir)

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