Aquela noite em 67 completa 50 anos: o 3º festival de MPB da Record



                                                                  

Celso Lungaretti (*)


Sá­bado, 21, marcou o cin­quen­te­nário da fi­na­lís­sima de um dos grandes fes­ti­vais de mú­sica bra­si­leira da dé­cada de 1960, não exa­ta­mente o mais im­por­tante de todos, mas aquele que as novas ge­ra­ções podem co­nhecer me­lhor, graças ao bom do­cu­men­tário Uma noite em 67.

Não que falte qual­quer trecho do filme de Re­nato Terra e Ri­cardo Calil; os 85 mi­nutos e 5 se­gundos estão todos aí. Mas, tanto o filme quanto uma gra­vação do dito fes­tival que a TV Re­cord res­taurou e exibiu no final da dé­cada pas­sada têm uma la­cuna im­per­doável: não apa­rece uma das 12 fi­na­listas, "De como um homem perdeu seu ca­valo e con­ti­nuou an­dando" (também cha­mada de "Ven­tania"), do Ge­raldo Vandré. 

Isto também serve para os jo­vens per­ce­berem como eram nossos anos de chumbo. Nunca tí­nhamos cer­teza de que o filme visto num dia não su­miria de todas as salas, ci­ne­ma­tecas in­clusas, no dia se­guinte; ou que certas mú­sicas su­bi­ta­mente dei­xassem de ser en­con­tradas nas lojas e pas­sassem a ser dis­pu­tadas a peso de ouro nos sebos, cujos pro­pri­e­tá­rios as re­ti­ravam das pra­te­leiras e to­mavam o cui­dado de não alar­de­arem sua posse, só ofe­re­cendo-as os cli­entes mais con­fiá­veis.  

O 3º Fes­tival da Mú­sica Po­pular Bra­si­leira se ini­ciou exa­ta­mente no mês em que os es­tu­dantes de­sa­fi­avam os dis­po­si­tivos po­li­ciais e vol­tavam às ruas, nas fa­mosas se­tem­bradas de 1967.

A partir daí o mo­vi­mento de massas iria se in­ten­si­ficar e ra­di­ca­lizar até a pro­mul­gação do AI-5.

O cer­tame da Re­cord foi mar­cado por um dos epi­só­dios mais de­pri­mentes de toda a his­tória dos fes­ti­vais: o pú­blico pes­pegou mo­nu­mental vaia numa com­po­sição que abor­dava com muita pro­pri­e­dade o fenô­meno fu­tebol.

Sérgio Ri­cardo, com­po­sitor ide­a­lista e ta­len­toso, autor de clás­sicos como "Zelão" e "Esse mundo é meu", além de haver dado mag­ní­fica con­tri­buição mu­sical para duas obras-primas de Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe), cansou de tentar in­ter­pretar sua "Beto bom de bola". Que não era nem de longe ali­e­nada, tra­tando-se, isto sim, de uma ve­e­mente de­núncia da en­gre­nagem es­por­tiva que tri­tu­rava in­gê­nuos como Gar­rincha.

...​menos uma, a do Vandré, cujo su­miço foi pra lá de sus­peito!
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Afinal, o ar­tista ex­plodiu: "vocês são uns ani­mais!". E, ar­re­ben­tando seu vi­olão, atirou-o contra os es­pec­ta­dores (a man­chete jo­cosa de um jornal sen­sa­ci­o­na­lista foi "Vi­o­lada no palco"...)

O fes­tival da Re­cord de 1967 trouxe à tona, ainda, uma aguda cisão no front da mú­sica po­pular:

•    de um lado os de­fen­sores dos ritmos ge­nui­na­mente bra­si­leiros e das can­ções en­ga­jadas às lutas so­ciais;

•    do outro, os adeptos do cha­mado som uni­versal, da li­ber­dade te­má­tica e das ex­pe­ri­ên­cias for­mais.

Em te­oria, a po­sição dos tro­pi­ca­listas era ina­ta­cável: as raízes cul­tu­rais só se mantêm vivas e puras em co­mu­ni­dades fe­chadas, não no Brasil de 1967, com sua eco­nomia in­te­grada ao bloco oci­dental e as in­for­ma­ções che­gando de todos os lados.

Na prá­tica, en­tre­tanto, a con­tes­tação ao au­to­ri­ta­rismo das li­de­ranças po­lí­ticas foi, para muitos, um pre­texto con­ve­ni­ente para delas se afas­tarem, ser­vindo-lhes, por­tanto, como jus­ti­fi­ca­tiva para se omi­tirem du­rante um pe­ríodo crí­tico da vida bra­si­leira.


Mú­sicos pro­testam contra as gui­tarras elé­tricas dos co­legas

A der­rota, sa­bemos hoje, custou-nos seis anos de trevas ab­so­lutas. Mas, seria um exa­gero im­putá-la apenas aos jo­vens que se des­gar­raram do re­banho ao verem o lobo se apro­xi­mando...

O pró­prio tro­pi­ca­lismo foi, por sinal, con­tra­di­tório, ora pre­gando a re­volta jovem ("É proi­bido proibir") e fa­zendo a apo­logia da guer­rilha ("Soy loco por ti, Amé­rica", "Questão de Ordem"), ora se em­bas­ba­cando com as vi­trines e ou­tros signos da so­ci­e­dade de con­sumo.

Em tempos nor­mais, seria uma mis­tura de Se­mana de 1922 com psi­co­de­lismo a Be­a­tles.

Em meio ao transe bra­si­leiro, as­sumiu pos­turas às vezes mais ra­di­cais que a da­queles (os puros) que fa­ziam pas­se­atas contra as gui­tarras elé­tricas.

E, no final, aca­baram todos ví­timas dos mesmos al­gozes, fre­quen­tando as mesmas pri­sões e amar­gando o mesmo exílio.


Ca­e­tano Ve­loso foi quem trouxe a canção mais ino­va­dora

A canção-ma­ni­festo do tro­pi­ca­lismo foi "Ale­gria, ale­gria", de Ca­e­tano, que ele in­ter­pretou acom­pa­nhado pelos Beat Boys, con­junto de iê-iê-iê cujos in­te­grantes os­ten­tavam enormes e des­gre­nhadas ca­be­leiras.

(Um deles era o gui­tar­rista e cantor Tony Osanah, que pa­recia não saber exa­ta­mente em qual Amé­rica se en­con­travam suas raíces, daí se­guir pu­lando de galho em galho...)

Flagra o es­tado de per­ple­xi­dade re­sul­tante do bom­bar­deio de in­for­ma­ções, con­tra­pondo-lhe o des­com­pro­misso de ca­mi­nhar "contra o vento, sem lenço, sem do­cu­mento". Ficou em 4º lugar.

"Do­mingo no Parque" é uma mú­sica des­cri­tiva, pro­pondo ima­gens ci­ne­ma­to­grá­ficas e nada mais. Gil, aliás, já fi­zera coisa se­me­lhante em "Água de Me­ninos". O que ela teve de tro­pi­ca­lista foram as gui­tarras elé­tricas dos Mu­tantes.

Numa total in­versão de va­lores, o júri atri­buiu-lhe a 2ª co­lo­cação, à frente da in­com­pa­ra­vel­mente su­pe­rior "Ale­gria, ale­gria".

A vi­tória coube a "Pon­teio", de Edu Lobo e Ca­pinam, um dos temas da trilha mu­sical do filme A Vida Pro­vi­sória, de Mau­rício Gomes Leite.

Me­ta­fó­rica (a viola a cujo pon­teio os versos aludem é a me­tra­lha­dora guer­ri­lheira), cor­reta, com ótimo ar­ranjo e as pre­senças sim­pá­ticas de Edu Lobo e Ma­rília Me­dalha, foi a so­lução en­con­trada para não se pre­miar a sen­sação tro­pi­ca­lista; em termos cri­a­tivos, não avançou um mi­lí­metro em re­lação ao que já se fazia.

Em 3º lugar, Chico Bu­arque com "Roda Viva", com­posta para a peça homô­nima (aquela cuja en­ce­nação foi van­da­li­zada por uma horda do CCC) e de­fen­dida pelo autor com o MPB-4.

No 5º, a xa­ro­posa "Maria, car­naval e cinzas", de Luís Carlos Pa­raná, por Ro­berto Carlos e O Grupo.

Como me­lhor letra, prêmio me­re­ci­dís­simo para "A Es­trada e o Vi­o­leiro", do pre­co­ce­mente fa­le­cido Sidney Muller. Que le­trista su­per­la­tivo per­demos com a morte pre­coce de Sidney Muller!

Fi­nal­mente, uma úl­tima pa­la­vrinha sobre o cadê a mú­sica que es­tava aqui? O gato comeu ou o fós­foro queimou? 

É re­al­mente muito es­tranho que este seja o fes­tival do qual se con­ser­varam mais e me­lhores gra­va­ções, com a única ex­ceção de "Ven­tania", de Ge­raldo Vandré, cujo su­miço pode ter sido im­po­sição dos mi­li­tares, mas também uma mera pir­raça dos man­da­chuvas da TV Re­cord .

Assim como é es­tranho so­mente eu haver per­ce­bido a omissão e es­crito sobre ela. Pa­rece que os crí­ticos mu­si­cais se tor­naram po­li­ti­ca­mente cor­retos desde cri­an­ci­nhas, não se in­co­mo­dando com o boi­cote de ontem e de hoje a um grande ar­tista que o au­to­ri­ta­rismo des­truiu, mesmo sem o matar.



(*) Celso Lungaretti é jornalista.
Blog: Náufrago da Utopia.

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12910-aquela-noite-em-67-completa-50-anos-o-3-festival-de-mpb-da-record

(Com o Correio da Cidadania/Youtube)

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