Projeto Colabora apresenta:"Memórias de Anita"

                                             

Cartão postal da Campanha Prestes distribuído na França e outros países da Europa exigindo a liberação de Olga e sua filha Anita Leocadia Prestes em 1936. Foto de Divulgação                                                 
Filha de Olga Benario lança livro sobre a mãe
baseado em arquivo secreto da Gestapo

Liana MeloLiana Melo ( Atualizada em 31 de outubro de 2017, 09:59)

A historiadora Anita Leocadia Prestes está escrevendo suas memórias. Aos 81 anos, ela cedeu à pressão dos companheiros mais próximos que insistiam no projeto. Antes que alguém pergunte, ela avisa que não será uma biografia política, como foi “Luiz Carlos Prestes – Um Comunista Brasileiro”, que lançou em 2015 e onde narrou os momentos-chaves da atuação política de seu pai. “Nas minhas memórias, vou falar sobre a minha família, minha avó, meus pais e minha chegada ao comunismo”.

Com a vida corrida, se equilibrando entre as aulas de História no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/ UFRJ) e as palestras sobre seu mais recente livro, “Olga Benario Prestes – Uma Comunista nos Arquivos da Gestapo”, a filha de Prestes e Olga colocou no papel, até agora, seus primeiros 32 anos de vida. “Cheguei até 1968, mas ainda tem muito chão pela frente”.

Anita foi um “bebê famoso”, como costuma referir-se a si própria. Mas só  recentemente ficou sabendo de detalhes sobre seu nascimento, ocorrido na prisão feminina de Barnimstrasse, na Alemanha nazista, para onde sua mãe foi extraditada pelo governo de Getúlio Vargas, em 1936. O casal Olga e Prestes foi preso no Rio de Janeiro, então capital da República, e separado para nunca mais se encontrar.

A carta escrita por Olga, em 17 de dezembro daquele ano – vinte dias após o nascimento de Anita, em 27 de novembro –, anunciando ao marido a chegada da filha, só veio a ser lida, pela própria historiadora, dois anos atrás. É que a correspondência nunca chegou ao destinatário, porque foi censurada por ter sido redigida em francês – após escrevê-la, Olga foi informada de que todas as cartas precisavam ser escritas em alemão, assim como as que chegavam do exterior.

Anita teve conhecimento da carta em 2015, quando os arquivos da Gestapo, a polícia secreta do Terceiro Reich alemão, foram abertos para consulta pública. “A descoberta de novos documentos é sempre um acontecimento feliz para o historiador, pois lhe permite completar, aprofundar e corrigir os conhecimentos sobre o tema por ele pesquisado”, escreveu Anita em seu livro. Ela contratou uma equipe de sete professores para traduzir a documentação, a maioria em alemão.

Passado revisitado
                                                                 
Prestes em Moscou, às vésperas de voltar para o Brasil, com Olga. Foto de Diculgacao

São 2,5 milhões de folhas que integram 28 mil dossiês, divididos em 50 catálogos. Todo esse material foi apreendido pelo Exército Vermelho após a derrota da Alemanha, em 1945. Sua liberação foi possível após a parceria entre o Instituto Histórico Alemão em Moscou e a Fundação Max Weber. A digitalização completa de todo o acerto, conhecido como “documentos-troféus”, está prevista para ser concluída em 2018. “É um material precioso”, atesta Anita.

O acervo dos nazistas sobre Olga, intitulado “Processo Benario”, trata-se do mais extenso rol de documentos sobre uma única pessoa: oito dossiês contendo cerca de 2 mil documentos. “São 16 cartas inéditas”, conta, comentando que encontrou correspondência de Olga para Prestes, do seu pai, enviada do cárcere no Brasil, para sua mãe, no presídio alemão, além de outras redigidas para Leocadia e Lygia, sogra e cunhada respectivamente.


Ler as cartas trocadas entre Olga e Prestes dá uma dimensão humana ao relacionamento do casal revolucionário. A prisão não diminuiu a paixão entre os dois, que conviveram um ano, três meses e 22 dias, antes de serem presos. Um dos pesquisadores contratos por Anita, Robert Cohen, editor na Alemanha da correspondência de Olga, escreveu a propósito do pouco tempo de convivência do casal: “Pouco tempo, se diria. Mas qual seria o tempo ideal para o amor? A importância de uma relação não se mede por sua duração. Se quisermos saber alguma coisa sobre o amor entre duas pessoas, não devemos indagar o que as pessoas fazem do amor, mas sim o que o amor faz das pessoas. O que o amor fez de Olga Benario e Carlos Prestes descobrimos em suas cartas“.

“Pouco tempo, se diria. Mas qual seria o tempo ideal para o amor? A importância de uma relação não se mede por sua duração. Se quisermos saber alguma coisa sobre o amor entre duas pessoas, não devemos indagar o que as pessoas fazem do amor, mas sim o que o amor faz das pessoas. O que o amor fez de Olga Benario e Carlos Prestes descobrimos em suas cartas
Robert Cohen
editor na Alemanha da correspondência de Olga

A correspondência evidencia as diversas formas de censura impostas a sua mãe, antes dela ser assassinada numa câmara de gás no campo de concentração de Bernburg, em 1942 – a última carta escrita por Olga foi em 1941. Foi uma relação marcada por contradições. Se por um lado, Leocadia, a mãe de Prestes, e sua filha mais nova, Lygia, nunca puderam visitar Olga no cárcere, apesar de terem ido três vezes à Alemanha; por outro, permitiam a entrada de 20 quilos contendo alimentos e outros artigos, a cada duas semanas.

“Outras crianças que nasceram na prisão,não tiveram as regalias que eu tive. Fui privilegiada, graças a campanha”, lembra Anita, referindo-se a Campanha Prestes, liderada pela avó e a tia, que, após a prisão do filho e da nora, trocaram Moscou, onde viviam desde o começo dos anos 1930, por Paris, onde passou a funcionar o Comitê Prestes. “A pressão internacional para liberar Olga e Anita incomodava muito. Era a imagem do império alemão sendo denegrida pela imprensa marron”, comenta, referindo-se a sí própria na terceira pessoa. Por conta da pressão internacional, os nazistas tinham a preocupação em manter Anita bem alimentada e saudável durante o tempo em que ficou com a mãe no presídio.

Se os outros se tornaram traidores, eu jamais o serei
Epígrafe do livro
Olga Benario Prestes

A Gestapo justificava o extremo rigor dispensado a presa não tanto por ela ser judia, mas, sobretudo, por ser considerada uma “comunista perigosa”. Os algozes de Olga queriam saber sobre a Internacional Comunista (Cominterm) e o Partido Comunista Alemão. Queriam nomes. Seu obstinado silêncio era atacado com penosos castigos físicos e privações, que vieram à tona com a liberação dos documentos: “Ademais, solicito que lhe seja atribuída uma árdua carga de trabalho adicional“.  Inabalável em suas convicções, respondia que “se os outros se tornaram traidores, eu jamais o serei” – Anita usou a frase da mãe como epígrafe do seu livro.

Vamos falar sobre fascismo

A casa de Anita é recheada de memórias e registros históricos da trajetória de Prestes e de Olga: fotografias, bustos, quadros… É na sala do apartamento onde mora em Botafogo, que a historiadora tem o raro prazer de conviver simultaneamente com o pai, no porta-retrato sobre o móvel, e a mãe, eternizada no quadro por Portinari.

Entre as lembranças do passado e o envolvimento com a divulgação do livro sobre os arquivos da Gestapo, Anita ressalta que o exemplo de resistência de sua mãe não foi isolado. “Mesmo no campo de concentração nazista é possível resistir. Precisamos levar essa mensagem para os jovens. Modestamente, no que me cabe, eu procuro fazer isso. E tem havido muito interesse, especialmente dos universitários. Eles estão interessados na história da Olga e o que fazer hoje. Estamos praticamente num regime de exceção”.

Ela conta que sempre ouviu do “velho”, como se refere algumas vezes a Prestes, que Olga era uma “pessoa muito humana e solidária”. Soube através de pessoas que conheceram sua mãe, na prisão, durante sua primeira viagem a Alemanha, em 1961, que ela costumava organizar “círculos de leitura clandestinos”, quando lia Tolstói. Bastava a Gestapo descobrir para reprimir. 

Olga também chegou a confeccionar um “atlas para discutir o panorama da guerra” com outras presas. “Meu pai e eu sempre entendemos que Olga fora uma entre milhares de outras vítimas do fascismo e que seu martírio deveria servir de exemplo para que não se permita que tais horrores venham a se repetir”, escreveu Anita ao final do livro.

Filha de pais ricos, Olga era uma mulher culta. Conhecia profundamente as poesias de Schiller e de Goethe. Seu pai, Leo Benario, um advogado social democrata, era dono de uma biblioteca abastada. Era um homem progressista, ainda que nunca tenha sonhado em ver a filha abraçar o comunismo. Já a mãe, Eugenie Benario, de uma família de banqueiros, renegou a filha e nunca aceitou a opção política de Olga. Chegou a chamá-la de “fanática“, durante um interrogatório a que foi submetida pela polícia de Munique, onde morava.
                                                                      
Documento atestando o nome de Anita. Foto de Divulgacao


Eugenie chegou mesmo a informar às autoridades policiais que não se dispunha a ajudar a filha e se recusou a assumir a guarda de Anita. Finalmente, no dia 21 de janeiro de 1938, com 14 meses de idade, o “bebê famoso” foi entregue pela Gestapo à avó paterna. Em poucos dias, Olga foi transferida para o campo de concentração. Chegava ao fim o período de regalias. Ela ainda pode pedir alguns livros e revistas para a sogra e a cunhada. Estava preocupada em manter seu conhecimento de português. Entre outros livros e revistas, chegaram à sede da Gestapo o romance Iracema, de José de Alencar, e a revista francesa L`Illustration. Ambos foram censurados:

“O romance Iracema – Lenda do Ceará, escrito em língua portuguesa, assim como a revista francesa L`Illustration, não devem de maneira alguma ser entregues à prisioneira Olga Benario. O livro português (sic) descreve a vida de luta de um combatente brasileiro pela liberdade e difama em grande medida a forma de governo ordeira. A revista L`Illustration traz um artigo muito hostil a respeito da anexação da Áustria pela Alemanha”.

A Gestapo vetou todas as possibilidade de Olga sair da Alemanha – o que foi permitido a outras presas – , apesar da oferta de asilo concedida pela Inglaterra, pelo México e por Moscou. Quando morreu, a mãe foi imediatamente informada. Afinal, até então era bem-vista. “Acredito ter a impressão de que a mãe de Benario se comportou sempre de modo adequado. Não tenho, por conta disso, qualquer objeção em informá-la da morte de sua filha“, dizia trecho de um dos documentos. A família Prestes foi solenemente ignorada e só soube do assassinato de Olga após o fim da guerra.

A mãe de Olga nunca imaginou que, após renegar a filha por ser comunista, teria o mesmo triste fim. Esqueceu que ser judia na Alemanha nazista era um pecado capital. Eugenia teve seus bens confiscados e foi enviada para o campo de concentração de Theresienstadt. O mesmo destino teve o filho mais velho dos Benario, Otto. Ambos morreram em 1943. 

Bertold Brecht traduziu com maestria as consequência trágicas que a falta de empatia pode gerar num regime de exceção:  “Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro/ Em seguida levaram alguns operários/ Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário/ Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso/ Porque eu não sou miserável/ Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho meu emprego/ Também não me importei/ Agora estão me levando/ Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém/ Ninguém se importa comigo”.



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