O Brazilgate transforma-se no Russiagate 2.0 (A matéria é reproduzida do site resistir.info/)
Bira Dantas
– "Ridiculamente, a bomba de The Intercept acerca da corrupção brasileira está a ser alardeada pelos media e militares do país como uma conspiração russa".
Pepe Escobar [*]
Foi um vazamento, não um hack. Sim: o Brazilgate, lançado por uma série de bombas revolucionárias publicadas por The Intercept, pode estar a transformar-se num Russiagate tropical.
O Garganta Funda de The Intercept – uma fonte anónima – finalmente revelou em pormenores o que qualquer um com meio cérebro no Brasil já sabia: que a máquina judicial/legal da investigação unilateral do Lava Jato era de facto uma farsa maciça e uma trapaça criminosa destinada a realizar quatro objectivos.
Criar as condições para o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e a subsequente ascensão de seu vice, o fantoche manipulado pela elite Michel Temer.
Justificar a prisão do ex-presidente Lula em 2018 – exactamente quando ele estava para vencer a eleição presidencial seguinte com uma vitória esmagadora.
Facilitar a ascensão da extrema-direita brasileira via Steve Bannon (ele o chama de "capitão") Jair Bolsonaro.
Instalar o ex-juiz Sergio Moro como ministro da Justiça com esteroides capazes de promulgar uma espécie de Patriot Act brasileiro – pesado em espionagem e ligeiro quanto a liberdades civis.
Moro, lado a lado com o promotor Deltan Dallagnol, o qual liderava as 13 forças-tarefa do Ministério Público, são as estrelas vigilantes da trapaça do lawfare . Ao longo dos últimos quatro anos, os hiperconcentrados media de referência brasileiros, afundados num pântano de fake news, glorificaram essa dupla como heróis nacionais dignos do Capitão Marvel. A arrogância acabou por afundá-los no pântano.
Os mafiosos brasileiros
The Intercept prometeu divulgar todos os ficheiros na sua posse, chats, áudio, vídeos e fotos, um acervo supostamente maior que o de Snowden. Aquilo que foi publicado até agora revela Moro/Dallagnol como um duo estratégico em sincronia, com Moro como um capo di tutti i capi , juiz, júri e executor numa só pessoa – repleto de falsificações em série de provas. Isso, por si só, é suficiente para anular todos os casos da Lava Jato em que ele esteve envolvido – incluindo o processo contra Lula e as sucessivas convicções baseadas em "evidências" que nunca se sustentariam em um tribunal sério.
Em conjunto com uma abundância de detalhes escabrosos, o princípio Twin Peaks [1] – as corujas não são o que parecem – aplica-se plenamente ao Brazilgate. Porque a génese do Lava Jato envolve nada menos que o governo dos Estados Unidos. E não apenas o Departamento de Justiça (DoJ) – como Lula tem insistido há anos em todas as suas entrevistas. A operação foi do Estado Profundo.
A WikiLeaks havia revelado isso desde o início, quando a NSA começou a espionar a gigante de energia Petrobrás e até mesmo o telefone smart de Dilma Rousseff. Em paralelo, inúmeras nações e indivíduos aprenderam como a auto-atribuída extraterritorialidade do DoJ permite que ele persiga qualquer pessoa, de qualquer maneira, em qualquer lugar.
Isto nunca foi sobre anti-corrupção. Trata-se, ao invés, da "justiça" americana a interferir em todas as esferas geopolíticas e geoeconómicas. O caso mais gritante e recente é o da Huawei.
No entanto, o "comportamento maligno" dos mafiosos Moro/Dallagnol atingiu um novo nível perverso na destruição da economia nacional de uma poderosa nação emergente, um membro do BRICS e líder reconhecido em todo o Sul Global.
O Lava Jato devastou a cadeia de produção de energia no Brasil, a qual por sua vez gerou a venda – abaixo dos preços de mercado – de muitas reservas valiosas de petróleo do pré-sal, a maior descoberta de petróleo do século XXI.
A Lava Jato destruiu campeões nacionais em engenharia e construção civil e também em aeronáutica (como na Boeing comprando a Embraer). E a Lava Jato comprometeu fatalmente importantes projectos de segurança nacional, como a construção de submarinos nucleares , essenciais para a protecção da " Amazônia Azul ".
Para o Council of America – visitado por Bolsonaro em 2017 –, bem como o Council on Foreign Relations – para não mencionar os "investidores estrangeiros" – ter o Chicago boy neoliberal Paulo Guedes instalado como ministro das Finanças era um sonho ardente. Guedes prometeu de imediato colocar virtualmente todo o Brasil à venda. Até agora, sua tarefa tem sido um fracasso absoluto.
Como abanar o cão
Os mafiosos Moro/Dallagnol eram "apenas um peão no seu jogo", para citar Bob Dylan – um jogo de que ambos estavam inconscientes.
Lula enfatizou repetidamente que a questão-chave – para o Brasil e para o Sul Global – é a soberania. Sob Bolsonaro, o Brasil foi reduzido ao status de uma neocolonia de bananas – com abundância de bananas. Leonardo Attuch, editor do portal líder Brasil247 , diz que "o plano era destruir Lula, mas o que foi destruído foi a nação".
Tal como está, os BRICS – uma palavra muito suja na Beltway – perderam o seu "B". Por muito que possam valorizar o Brasil em Pequim e Moscovo, o que está a funcionar no momento é a parceria estratégica "RC" , embora Putin e Xi também estejam fazendo o melhor que podem para reviver "RIC", tentando mostrar à Índia de Modi que a integração eurasiana é o caminho a seguir, não o de desempenhar um papel de apoio na difusa estratégia indo-pacífica de Washington.
E isso nos leva ao cerne da questão do Brazilgate: como o Brasil é o cobiçado prémio na narrativa estratégica mestra que condiciona tudo que acontece no tabuleiro de xadrez geopolítico no futuro previsível – a confrontação sem limites entre os EUA e a Rússia-China.
Já na era Obama, o Estado Profundo dos EUA identificou que para incapacitar os BRICS a partir de dentro o nó estratégico "fraco" era o Brasil. E, sim; mais uma vez, trata-se do petróleo, estúpido.
As reservas de petróleo do pré-sal podem ser avaliadas em até espantosos US$30 milhões de milhões. A questão não é apenas o governo dos EUA querer uma parte disso; a questão é ele quer controlar a maior parte da ligações petrolíferas do Brasil com a interferência dos poderosos interesses do agronegócio. Para o Estado Profundo, o controle do fluxo de petróleo do Brasil para o agronegócio equivale à contenção/alavancagem contra a China.
Os EUA, o Brasil e a Argentina, em conjunto, produzem 82% da soja mundial. A China implora soja. Esta não virá da Rússia ou do Irão – os quais por outro lado podem fornecer à China petróleo e gás natural suficientes (ver, por exemplo, a energia da Sibéria I e II). O Irão, afinal, é um dos pilares da integração eurasiana. A Rússia pode eventualmente tornar-se uma potência exportadora de soja , mas isso pode levar até dez anos.
Os militares brasileiros sabem que relações estreitas com a China – seu principal parceiro comercial, à frente dos EUA – são essenciais, seja o que for que Steve Bannon possa arengar acerca disso. Mas a Rússia é uma história completamente diferente.
O vice-presidente Hamilton Mourão, na sua recente visita a Pequim, onde se encontrou com Xi Jinping, dava a impressão de estar a ler um comunicado de imprensa do Pentágono, dizendo à imprensa brasileira que a Rússia é um "actor maligno" que está a propagar uma "guerra híbrida por todo o mundo".
Assim, o Estado Profundo dos EUA pode estar a cumprir pelo menos parte do seu objectivo final: utilizar o Brasil na sua estratégia Divide et Impera, ou seja, abalar a parceria estratégica Rússia-China.
Isto fica muito mais picante. O Lava Jato, recondicionado como Vaza Jato, também poderia ser descodificado como um jogo de sombras maciço; um cão a abanar, com a cauda composta por dois activos americanos.
Moro era um activo certificado pelo FBI, CIA, DoJ e Estado Profundo. Seu uber-patrão seria, em última análise, Robert Mueller (portanto, Russiagate). No entanto, para a Equipe Trump, ele seria facilmente dispensável – mesmo se fosse o Capitão Justiça a trabalhar para o activo real, o menino Bolsonaro de Bannon. Se caísse, Moro teria a garantia do indispensável paraquedas dourado – completo, com residência nos EUA e palestras em universidades americanas.
Greenwald, de The Intercept, é agora celebrado por todas as vertentes da esquerda como uma espécie de Simon Bolivar americano/brasileiro com esteróides. Mas há um problema enorme. The Intercept é de propriedade de um praticante endurecido da guerra da informação, Pierre Omidyar .
De quem é a guerra híbrida?
A questão crucial pela frente é o que as forças armadas brasileiras estão realmente a fazer neste enorme pântano – e quão profundamente estarão subordinadas ao Divide et Impera de Washington.
Isto gira em torno do todo-poderoso Gabinete de Segurança Institucional, conhecido no Brasil pela sigla GSI . Os integrantes do GSI estão todos no consenso de Washington. Depois dos anos "comunistas" de Lula/ Dilma, estes sujeitos estão agora a consolidar um Estado Profundo brasileiro supervisionando o controle político em âmbito total, tal como nos EUA.
O GSI já controla todo o aparelho de inteligência, bem como a Política Externa e de Defesa, através de um decreto sub-repticiamente lançado no princípio de Junho, apenas alguns dias antes da bomba de The Intercept. Até o capitão Marvel Moro está sujeito ao GSI; eles devem aprovar, por exemplo, tudo o que Moro discute com o DoJ e o Estado Profundo dos EUA.
Como tenho discutido com alguns dos meus principais interlocutores brasileiros informados, o grande antropólogo Piero Leirner, que sabe em pormenor como pensam os militares, e o advogado internacional suíço e conselheiro da ONU Romulus Maya, um Estado Profundo nos EUA parece estar a posicionar-se como o mecanismo de desova para a ascensão directa dos militares brasileiros ao poder, assim como dos seus responsáveis. Conforme a necessidade, se não seguiu nosso roteiro ao pé da letra – relações comerciais básicas apenas com a China; e isolamento da Rússia – pode-se balouçar o pêndulo a qualquer momento.
Afinal, o único papel prático que o governo dos EUA teria para as forças armadas brasileiras – na verdade, para todas as forças armadas da América Latina – é como tropas de choque da "guerra às drogas".
Não há arma fumegante – ainda. Mas o cenário do Lava Jato como parte de uma operação psicológica extremamente refinada, uma operação psyops (guerra psicológica, observação minha, José Carlos Alexandre) com dominância de espectro amplo, uma etapa avançada da Guerra Híbrida, deve ser seriamente considerada.
Exemplo: a extrema-direita, bem como sectores militares poderosos e o império de media da Globo subitamente começaram a propalar que a bomba de The Intercept é uma "conspiração russa".
Quando alguém acompanha o sítio web do principal think tank militar – com muitas coisas praticamente copiadas e coladas directamente da Escola de Guerra Naval dos EUA – é fácil ficar surpreendido com a crença fervorosa deles numa Guerra Híbrida Rússia-China contra o Brasil, onde a cabeça de ponte é fornecida por "elementos anti-nacionais" tais como a esquerda como um todo, bolivarianos venezuelanos, FARC, Hezbollah, LGBT, povos indígenas, pode escolher.
Após o Vaza Jato, uma guerra relâmpago combinada de notícias falsas culpou o aplicativo Telegram ("eles são os maus russos!") por hackear os telefones de Moro e Dallagnol. O Telegram oficialmente desmascarou isso em pouco tempo.
Disseram então que a ex-presidente Dilma Rousseff e a actual presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, fizeram uma visita "secreta" a Moscovo apenas cinco dias antes da bomba Lava Jato. Confirmei a visita com a Duma [parlamento], bem como o facto de que, para o Kremlin, o Brasil, pelo menos por enquanto, não é uma prioridade. A integração eurasiana é. Isso, por si só, desmascara o que a extrema-direita do Brasil elocubra: Dilma a pedir ajuda a Putin, o qual então liberta seus maldosos hackers.
A Vasa Jato – segunda sessão do Lava Jato – pode estar a seguir os padrões Netflix e HBO. Recorde que a terceira temporada do True Detective foi um êxito absoluto. Precisamos de rastreadores dignos de Mahershala Ali para detectar fragmentos de evidências sugerindo que as forças armadas brasileiras – com apoio total do Estado Profundo dos EUA – podem estar a instrumentalizar uma mistura de Vasa Jato e da Guerra Híbrida "dos russos" para criminalizar a esquerda para sempre e orquestrar um golpe silencioso a fim de se livrar do clã Bolsonaro e do seu QI colectivo sub-zoológico. Eles querem controle total – sem intermediários ridículos. Estarão eles a morder mais bananas do que podem mastigar?
22/Junho/2019
[1] Twin Peaks é uma série da TV, combinação de drama policial e surrealismo. O princípio Twin Peaks é que nada é verdade tal como aparece..
[*] Jornalista, brasileiro, colaborador do Asia Times.
O original encontra-se em consortiumnews.com/...
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(Com resistir/info/)
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