Especial 10 anos do "Brasil de Fato"
“Militância é ação”
Viúva de Carlos Marighella, a militante Clara Charf relembra os 87 anos de uma vida que se confunde com a história da política nacional
23/01/2013
Aline Scarso,
da Reportagem
A militante comunista Clara Charf
Foto: Secretaria de Políticas para as Mulheres
Com 87 anos, Clara Charf tem em sua biografia duas ditaduras vividas e a convivência com personalidades históricas como Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, João Amazonas e Jorge Amado. Estima ter vivido quase vinte anos de forma clandestina, junto com o marido Carlos Marighella, época em que acumulou vários nomes.
O mais conhecido, Marta Santos, lhe rendeu seis meses de prisão. “Eu não queria falar meu nome de jeito nenhum. Só falei quando o Partido Comunista exigiu para que pudessem impetrar o habeas corpus para mim já que Marta Santos não existia”, conta, rindo.
Clara havia sido presa durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), com uma mala cheia de livros marxistas, que seriam usados para montar um curso de formação política para os ferroviários de Campinas. Quando foi detida, tentou inventar uma história de um tratamento médico no interior que lhe daria muito tempo livre para a leitura. Não colou. Ficou a maior parte do tempo do cárcere em solitária.
Clara nasceu em 1925 em uma família de judeus pobres. Mudou-se de Maceió para Recife menina. Perdeu a mãe ainda adolescente. O pai não gostava da ideia de que os três filhos se metessem em política com receio de que fossem presos, mas com ela não conseguiu efeito algum.
“Desde 1945, eu fui despertando para a ação”, conta. Mas quem é Clara Charf como militante política? Nas palavras modestas delas, “uma militante como outra qualquer”. E explica: “Para mim a militância política é a compreensão dos problemas sociais e ação. Não existe militante não ativo, militar é fazer, é intervir”.
Hoje ela não sabe precisar com certeza o ano específico de cada acontecimento da sua vida, mas com a voz firme e lucidez fala sobre o período histórico em que cada fato aconteceu (leia a entrevista na íntegra no site do Brasil de Fato). Já nas primeiras perguntas, lembra quando Anita Leocádia Prestes, filha dos comunistas Olga Benário e Luís Carlos Prestes e então com nove anos, passou pelo Recife durante o famoso comício no Parque 13 de Maio, em novembro de 1945.
Clara tinha 20 anos e ficou impressionada com a história da menina nascida numa prisão destinada às mulheres na Alemanha nazista e que era homenageada, naquele momento, “por todo movimento democrático, comunista e não comunista”.
“Fizeram uma grande concentração pública para apresentar a filha do Prestes e eu participei. E esse comício, com seus discursos, marcou muito minha posição política”. Até então, a garota havia trabalhado como bancária, datilógrafa e taquígrafa e guardava consigo um sentimento de justiça social. “Eu era contra as injustiças, mas eu não tinha muita noção de que caminho seguir para acabar com elas”, conta.
O contato com o comunismo
Clara recorda a primeira vez que ouviu a palavra “comunista” e passou a se identificar com a ideologia. “Foi quando o Jacob [pai do fotógrafo Bob Wolferson] foi preso”. O pai de Clara chegou em casa com a novidade. “E eu perguntei, ‘mas ele é ladrão?’ Meu pai me mandou calar a boca e disse que a gente não poderia falar sobre isso em casa”.
Passou-se um tempo e Jacob foi posto em liberdade. Dessa vez, Clara perguntou diretamente por qual a razão havia sido encarcerado. “’Porque sou comunista’, ele disse. ‘Comunismo é assim, vai ter uma sociedade que não vai ter dinheiro, vai ter troca. Se você quer uma camisa, dá outra coisa em troca para satisfazer a necessidade’. ‘Pronto’, eu disse, ‘sou comunista!’”, emociona-se.
Conheceu o Partido Comunista Brasileiro (PCB) quando começou a trabalhar como aeromoça e veio morar no Rio de Janeiro (RJ). Tomou contato com as campanhas realizadas nas ruas e decidiu filiar-se. Tinha 25 anos. Achava que tinha que militar com outras pessoas. “E quando você decide trabalhar com outras pessoas, você tem que ter um instrumento, tem que discutir, planejar o trabalho”, argumenta.
Quando voava, levava as correspondências do partido aos estados, facilitando a comunicação interna partidária. Mas logo saiu da aviação e foi trabalhar no escritório da Fração Comunista, órgão parlamentar do PCB responsável por colher informações e produzir os discursos dos parlamentares do partido.
O local era coordenado por Marighella e ficou aberto até 1947, quando o partido foi colocado novamente na ilegalidade, desta vez pelo governo de Eurico Gaspar Dutra (19461951). Nessa época, o PCB era um partido de massas, e contava com cerca de 200 mil filiados.
A militância se seguiu e Clara assumia cada vez mais tarefas, principalmente na organização da luta feminista. “Sempre fui militante ardorosa pela causa das mulheres, mas também sempre fui militante ardorosa pela causa do povo em geral”, destaca.
A vida com Marighella
A militância aberta ou clandestina variava de acordo com as condições políticas do país, lembra. Mas a maioria dos 21 anos compartilhados com o político e um dos principais inimigos da última ditadura militar brasileira (19641984), Carlos Marighella, foram vividos na clandestinidade.
Recordar essa época e o marido afetuoso e brincalhão, que começou a namorar durante o seu trabalho na Fração Parlamentar, leva Clara às lágrimas. Ela chora, não se sabe se de saudade ou de tristeza pela forma como acabou a vida do companheiro, morto em 4 de novembro de 1969 em uma emboscada organizada pelos militares em São Paulo.
Palavras para definir Marighella não lhe faltam. “Você não pode dizer que era um cara perfeito porque isso não existe, mas ele era um ser humano muito íntegro, deu a vida pela causa do povo, sempre ajudou as pessoas que pode na luta”, afirma. “Era um ser humano pelo qual todo mundo tinha prazer em conviver. Ele não era arrogante. E era também muito brincalhão. As crianças o adoravam. Ele se fazia querer pelas pessoas. E era culto, sempre estudou muito”, enumera.
Perguntada sobre sua relação com ele no que diz respeito às questões de gênero, Clara – feminista que é – considera importante assinalar que Marighella não era machista. “Nas atividades de casa, ele sempre respeitou muito o meu trabalho e dividiu comigo as tarefas”, conta, para logo em seguida acrescentar: “E isso não é comum, ainda mais naquela época. Os homens não dividiam como não dividem até hoje as tarefas domésticas. E ele fez isso em todos os lugares que ele viveu, quando morou com pessoas que eu conheci depois. Sempre valorizou o trabalho da mulher, não achava justo não dividir tarefas, mesmo se a mulher não fosse militante”, ressalta.
Ela conta, com orgulho, um episódio em que Marighella chegou em casa e a viu passando roupa. “Ele olhou e disse: ‘Clara, não passe roupa quando eu não estiver em casa’. E eu perguntei: por quê, se você não sabe passar?’ E ele respondeu: ‘como eu não sei passar, você passa e eu fico lendo para você em voz alta, para você ouvir’. Quer dizer, enquanto eu ia passando, ia tomando conhecimento do material que eu queria ler. Qual o marido que faz isso? Nisso daí ele foi inédito”, ri.
Clara diz que a única vez que viu Marighella chorar foi durante uma reunião da direção nacional do PCB, quando Diógenes Arruda Câmara voltou de viagem da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e confirmou que eram verdadeiras as denúncias contra o regime feitas pelo então primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khruschev.
Em seu famoso discurso durante o 20º Congresso dos PCs, em 1956, Khruschev denunciou os crimes cometidos por Joseph Stalin contra a população e seus opositores, abalando toda a militância comunista internacional.
Clara nunca fez parte da direção nacional do PCB, mas assistiu a reunião porque, como taquígrifa, foi chamada para fazer a ata. “Era como se tivesse ruído um prédio inteiro, pois ficou provado que eles tinham cometido muitas barbaridades”, conta. Na ocasião, ela assistiu aos discursos de Jorge Amado e Agildo Barata, que posteriormente sairiam do partido. E também de Marighella, que defendeu a reorganização do trabalho partidário.
O exílio em Cuba
Viúva de Mariguella, perseguida e com os direitos civis cassados pela última ditadura militar, Clara decidiu que não podia mais continuar no país. Foi para Cuba, onde passou nove anos e só voltou com a anistia. Cuba mudou, conforme relata a militante, mas proporcionou no seu exílio muitas surpresas positivas como a da faxineira que conheceu durante uma internação em um hospital, com nove filhos, todos estudantes na União Soviética. Ou a da garota que guiava uma delegação por uma creche cubana e apontava, com orgulho, os brinquedos que seriam doados às crianças do Vietnã. Ou ainda sobre a livreta que proporciona uma divisão igual dos alimentos entre todos habitantes da ilha, que vivia com constantes problemas de escassez.
De volta ao Brasil
Clara voltou ao Brasil com a Lei da Anistia, de agosto de 1979, depois de ameaçar denunciar o descumprimento da norma pelo governo brasileiro, que proibia a liberação de um passaporte no nome dela pela embaixada do Panamá. Chegou ao país com um salvo-conduto e, para não ser presa, foi auxiliada pelo advogado Idibal Pivetta. Logo reconheceu no PT uma expressão da força política dos movimentos sociais na época e se filiou.
Encontrou emprego numa empresa de engenharia como auxiliar de biblioteca, começou a fazer palestras e se vinculou à 1ª Secretaria de Mulheres do PT de São Paulo. A pedido das companheiras petistas, saiu como deputada federal e conseguiu 19 mil votos. Durante o governo da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-1993), foi Secretária de Relações Internacionais.
Clara também esteve com chefes de Estado como a chilena Michelle Bachelet quando ainda era Ministra da Defesa, o cubano Fidel Castro, o sul-africano Nelson Mandela, além de ser próxima de Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva.
Ela conta rindo que certa vez foi ao Palácio do Planalto visitar Lula durante o seu primeiro mandato e o ex-presidente, “muito gozador”, disse: “Clara, você alguma vez pensou em me ver como presidente?”. Eu naturalmente disse aquilo que sentia: ‘Ah, eu pensei, mas não que fosse pela via eleitoral’. Aí foi uma gargalhada geral”, ri, recordando-se da resposta de Lula: “Vocês estão vendo! A Clara só pensa em revolução”. (Com o Brasil de Fato)
Comentários