Sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis reconhece seis agentes da repressão
Coronel Paulo Malhães, ex-agente do Centro de Informações do Exército, prestou depoimento à CNV e admitiu tortura, mortes, ocultações de cadáveres e mutilações de corpos visando impedir a identificação das vítimas
A Comissão Nacional da Verdade realizou dia 25 de março, no Rio de Janeiro, audiência pública sobre a Casa da Morte de Petrópolis, imóvel usado pelo Centro de Informações do Exército como local de prisão ilegal, tortura, morte e ocultações de cadáveres de opositores da ditadura.
Na audiência, a CNV divulgou seu terceiro relatório preliminar de pesquisa , que teve como fio condutor o depoimento de Inês Etienne Romeu, única pessoa que sobreviveu à casa. Mais de 20 pessoas desaparecidas podem ter sido assassinadas na Casa da Morte.
Inês ficou presa 96 dias na casa, localizada no bairro Caxambu, em Petrópolis, entre maio e agosto de 1971. Depois de solta, Inês escreveu seu depoimento, entretanto só pôde torna-lo público, para sua própria segurança, depois que deixou a prisão, em 1979, com a Lei de Anistia.
No depoimento, Inês relatou em detalhes, as violências que sofreu e informou os nomes pelos quais conhecia os agentes que trabalhavam na casa. Informou também o nome de nove pessoas mortas na casa.
Depois de seu testemunho, as recordações de Inês permitiram, com a ajuda de amigos e jornalistas, a localização do imóvel e de seu proprietário, Mario Lodders, que emprestou a casa, em 1971, para o ex-interventor de Petrópolis, Fernando Ayres da Motta, que a cedeu para a repressão.
O relatório da CNV demonstra que a casa foi criada como um centro de apoio aos DOI-Codis e avalia que as mortes de Chael Charles Schreier, em 1969, na PE da Vila Militar do Rio, e de Rubens Paiva, no Doi-Codi, em 1971, aceleraram seu processo de implementação pelo Centro de Informações do Exército (CIE). A casa foi usada também como ponto de apoio dos Doi-Codis de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco.
RECONHECIMENTO - No último dia 15 de março, a CNV realizou uma diligência de reconhecimento fotográfico e mostrou a Inês imagens de alguns agentes da repressão listados em seu depoimento. Inês reconheceu seis deles: Freddie Perdigão Pereira, que na casa usava o nome de Doutor Roberto, morto em 1997; Rubens Paim Sampaio, o doutor Teixeira; Ubirajara Ribeiro de Souza, o Zé Gomes; Rubens Gomes Carneiro, o Laecato, de 76 anos; Antonio Fernando Hughes de Carvalho, o Alan, um dos autores, já identificado pela CNV, da morte de Rubens Paiva, morto em 2005, todos militares do Exército, e o inspetor da Polícia Civil Luiz Claudio de Azeredo Vianna, o Laurindo.
Paim e Ubirajara foram convocados pela CNV para depor na audiência pública de ontem. Entretanto, não compareceram. Segundo o coordenador da CNV Pedro Dallari, a Comissão vai insistir no depoimento de ambos.
O depoimento de Inês permitiu o desenho de uma planta baixa da casa. Uma equipe de peritos da CNV esteve no imóvel, acompanhada da procuradoria do município de Petrópolis, e elaborou uma planta em 3D da casa. A planta feita com as tecnologias de hoje pelos peritos e a planta da casa, registrada na prefeitura da cidade , também obtida pela CNV, se amoldam perfeitamente ao desenho feito a partir das memórias de Inês.
Após a apresentação do relatório e do vídeo do reconhecimento dos agentes, Inês Etienne foi aplaudida de pé pela plateia ao levantar-se para acompanhar, no palco do auditório do Arquivo Nacional, onde foi realizada a audiência, os depoimentos de quatro testemunhas de seu caso: sua irmã, Celina; Sergio Soares Ferreira, primo de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, uma das pessoas que a ajudou a localizar a sua casa; o advogado Clayton Rennó, que ajudou a família a dar segurança para Inês após sua libertação da Casa da Morte, e o advogado e ex-deputado federal Modesto da Silveira, que acompanhou Inês em seu depoimento na OAB e na diligência de localização da casa, em 1981.
Celina resumiu a história da irmã e o sentimento de orgulho da família pela perseverança de Inês: "A sua história é de heroísmo, você não tem mais o que temer. Você venceu".
A sessão da CNV também foi acompanhada por integrantes e assessores das Comissões da Verdade de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Gerais e ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos.
SEM ARREPENDIMENTO – Também convocado para depor, o coronel da reserva Paulo Malhães, oficial que integrava as equipes especiais do Centro de Informações do Exército, compareceu para depor. O coronel pediu que seu depoimento fosse reservado em virtude de sua condição de saúde. No início do depoimento, o advogado José Carlos Dias, membro da CNV, perguntou se o testemunho poderia ser registrado pela imprensa e o ex-militar assentiu.
Malhães, pela primeira vez admitiu em público que torturou, matou e mutilou corpos, arrancando dentes e as pontas dos dedos das vítimas, para dificultar a eventual identificação dos adversários do regime mortos pela repressão. O ex-militar respondeu perguntas de Dias e da advogada Rosa Cardoso, integrante da CNV.
Perguntado se se arrependia de seus atos, disse que não e que "não tinha outra solução". Malhães, contudo, não quis precisar quantas pessoas mutilou ou matou. Quando perguntado por José Carlos Dias quantas pessoas matou, disse apenas: "Tantos quanto foram necessários". Quando perguntado se teria ideia de quantas pessoas foram mortas na casa, disse que não teria como dizer um número, pois: "a casa não era só minha".
Além de admitir que atuou na Casa da Morte de Petrópolis, Malhães afirmou que participou da chacina do Parque Nacional do Iguaçu, onde foram executados cinco militantes de esquerda liderados pelo o ex-militar Onofre Pinto, assassinado dias depois. Todos continuam desaparecidos até hoje. O ex-coronel informou também o nome de outros agentes do CIE que atuaram na armadilha para atrair os militantes ao Brasil e matá-los. Ele também disse que era o responsável pelas ações do agente infiltrado na organização de Onofre, Albery Vieira dos Santos.
Também revelou Malhães que todos os agentes do escritório do CIE no Rio se envolveram na chamada "Operação Gringo", realizada a pedido da ditadura argentina. Segundo afirmou, a operação consistia em vigiar e tirar fotos dos refugiados argentinos que, depois do golpe de 1976, na Argentina, circulavam pelo bairro de Botafogo, onde funcionava a sede do escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
Malhães modificou o que disse à Comissão da Verdade do Rio e ao jornal O Dia. Ele disse que foi chamado para a operação que retirou o corpo de Rubens Paiva da praia do Recreio dos Bandeirantes, no Rio, mas que não pode participar da missão. Contudo, ele disse que "uma massa", forma pela qual ele se referiu ao corpo de Paiva, foi retirada de lá. Contudo, ele afirmou novamente não saber o destino do corpo, pois, afirma, não participou da diligência final que desapareceu com os restos mortais do deputado.
Segundo Malhães, a Casa da Morte não tinha esse nome junto aos militares. Para ele a casa era um "centro de conveniência" e que a função principal da casa seria a tortura dos opositores com o intuito de convencê-los a tornarem-se agentes infiltrados em organizações de esquerda. Ao ser perguntado quantos opositores teriam "virado" (passado para o lado da repressão) na casa, ele não disse quantos, apenas que houve casos.
Rosa Cardoso questionou a Malhães quem mantinha a casa. O coronel disse que os recursos eram do próprio Exército, mas que a administração do dia-a-dia não era feita pelas equipes operacionais e que nunca viu empresários na casa.
Segundo contou Malhães foi José Luis Coelho Neto, chefe de operações do CIE na época do governo Médici, quem obteve a cessão da casa de Petrópolis para o Exército, por intermédio de Fernando Ayres da Motta, o ex-interventor do município.
Sobre a Casa, Malhaes revelou que Cyro Etchegoyen, chefe de contrainformaçoes do CIE no governo Médici, detinha o controle superior das equipes de torturadores que atuavam Casa da Morte, embora, segundo Malhaes, Etchegoyen não costumasse frequentar o lugar.
Perguntado sobre qual motivo o levava a falar, Malhães disse que achava que deveria dar sua versão. Ele negou que esteja falando por não se sentir prestigiado pelas Forças Armadas, tanto que recebeu três condecorações, entre elas a fatídica Medalha do Pacificador, "com palma", como ressaltou, concedida pelo Exército àqueles que atuaram na repressão.
Entrevistado após o depoimento de Malhães, José Carlos Dias afirmou que avaliou como positivo o depoimento em virtude da admissão pública de torturas, mortes.
Segundo Dias, o depoimento de Malhães não foi um ato de desprendimento. "Ele não foi corajoso. Ele foi um exibicionista", afirmou o membro da CNV sobre a atitude do coronel. (Com a CNV)
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